30 novembro 2008

Diário Político 92




368 anos depois...


Terá sido no ano de 1963, em Coimbra, que a “latada” de Letras ditou o fim de todas as latadas. Entendamo-nos: as latadas, que começaram por ser uma festa exclusiva dos estudantes de Direito que celebravam o fim dos exames, passaram, em data incerta, mas já no século XX, a realizar-se no inicio do ano lectivo e serviam para os quartanistas de cada faculdade usarem definitivamente o grelo, a fita estreita que prenunciava um próximo fim de curso. Nesses cortejos, os caloiros mobilizados e vestidos de maneira estapafúrdia levavam cartazes maliciosos e/ou de charge política. Era nos anos sessenta uma das maneiras de mostrar que a Academia coimbrã cortara relações com o regime (que se não nascera em Coimbra, tivera nesta cidade e na sua universidade alguns dos principais teóricos para já não falar no alfobre de governantes em que a Faculdade de Direito se tornara). As faculdades competiam entre si por se mostrarem mais ousadas, mais inventivas e mais contestarias. A velha praxe coimbrã cobria com o seu espesso véu estas audácias juvenis e, de certo modo, protegia-as.
Todavia, depois da fortíssima (e mal conhecida) participação coimbrã na crise académica de 62, as autoridades estavam já mais atentas e pouco dispostas a aceitar a “irreverência da mocidade estudiosa”.
Ora, a latada de “Letras” (uma das primeira a ter um argumento único) era, do primeiro ao último cartaz, uma fortíssima manifestação política que aliás começava pelo título geral patente no primeiro cartaz: “Os velhos não devem governar”, piscadela de olhos ao texto teatral “Os velhos não devem namorar”, de Castelao, um dos pais do independentismo galego. Dentre os cartazes, quase todos notáveis e engraçados destacava-se um mais violento: “Há governos que caem pela força. Este cairá pelo ridículo”.
A reacção das autoridades foi rápida e dura: os responsáveis pela “latada” (que só recordo o António Luis Landeira) foram detidos pela PIDE e passaram umas semanas nos calabouços da delegação coimbrã. Recordo com ternura e emoção as muitas manifestações de solidariedade de que foram alvo e lembro-me que o Landeira recebeu não só muitos maços de tabaco mas um belíssimo isqueiro enviado por uma querida amiga nossa, perita em abrir latas de atum como, tantos anos depois, ela se retrata.
O governo não caiu, claro. Demorou ainda 11 longos anos, como se sabe. Demorou o governo mas a esse sobreviveu-lhe um certo espírito que ainda hoje anima muito governante. E não caiu pelo ridículo mas quase, porquanto bastaram umas escassas tropas mal armadas e uma rajada de metralhadora no quartel do Carmo.
Contudo, o ridículo continuou a sua triunfante caminhada (basta ver as declarações de vários lideres políticos com especial referencia a Jerónimo de Sousa, Santana Lopes e Maria de Lurdes Rodrigues, para não citar outros, muitos! Que se acotovelam na praça pública. Abramos ainda um pequeno espaço para a inerme Juventude Socialista, um ajuntamento de rapazinhos de que normalmente não se ouve falar a menos que entendam, a contra-corrente, aviar uma proposta “fracturante” que depois não defendem. Não defendem porque não acreditam, diga-se de passagem. E de que se esquecem logo que se apanham com uma sinecura com que habitualmente se calam os vagos opositores e os meninos bem comportados.
Eu não quero que o governo caia pelo ridículo nem creio que isso possa ocorrer. Infelizmente, governo e regime estão ameaçados por algo bem mais grave e maior: a democracia, flor frágil, necessita de ar puro, coisa que com estes sucessivos casos financeiros vai escasseando. Parece que, e até nisso o engenheiro Sócrates tem sorte, o escândalo está a ser habilidosamente circunscrito ao BPN e a Dias Loureiro. Vozes autorizadas fazem o possível por dizer que a avalanche que ameaça engolir o BPP tem causas diferentes. Terá. Mas ninguém me convence que a impossibilidade de continuar tem a ver com gestão desastrada, com ambições desmesuradas, com imprudência, com má avaliação da conjuntura. Também ninguém me convence que o plano salvífico que mete vários bancos ao barulho não vai custar nada aos cidadãos, como eu e como quem me lê. Porque é que o Banco de Portugal, tão distraído quanto às carências gritantes de supervisores capazes no seu quadro, se mostra tão atento ao plano de salvar uma centena de fortunas de cavalheiros que só acorreram aos balcões do BPP porque havia extraordinárias e miraculosas retribuições dos depósitos. Será que estes senhores não achavam que essa fartura poderia ter pés de barro? Convenhamos: se os outros bancos, mesmo na função private banking não davam tanto juro como é que este pequeno banco gestor de fortunas oferecia tanta remuneração? Será que o dr. Rendeiro era o moderno Laffite da banca nacional? E se era, porque é que agora tem de ser afastado da solução do problema? De um problema que, por força ele conhece melhor do que ninguém?
Passemos adiante. Há por aí alguém que me possa garantir, modestíssimo depositante de poucos centos de euros que mais nenhuma instituição financeira está em risco? Que não há mais políticos do bloco central a viver de benesses derivadas do seu ziguezaguear entre governo e privado, num entra e sai suspeito, em que cada entrada parece uma promessa de melhor saída e cada saída um prémio de favores passados, presentes ou mesmo futuros?
O país, pelo menos aquele que se interessa e não é ainda totalmente analfabeto, vê diariamente esta trasfega de interesses e pessoas, de pessoas e interesses, este toma lá dá cá, tudo no mais escrupuloso respeito de uma auto-denominada “ética republicana” que nenhuma lei acolhe e que na generalidade do mundo é considerada inaceitável. Alguém acredita que em França um Conselheiro de Estado venha de motu próprio dizer um par de banalidades que rapidamente são desmentidas e não seja substituído? Alguém acredita que nos Estados Unidos (país onde se recrutam governantes na elite dos negócios e das financeiras) se passe assim, de um pé para a mão do público para o privado, sem rede nem garantias especiais?
Alguém acredita que um cavalheiro de modesto rendimento e situação financeira condizente apareça meia dúzia de anos depois com um pecúlio notável, fruto de “muita economia, muito tino, muita sorte e incomparável inteligência”? Então as criaturas andavam por aí a beber, com conta peso e medida, um café com cheirinho – e só aos domingos e dias santos de guarda! – e agora passam as noites nos restaurantes e bares da moda a aviar whiskies escoceses de nomes impossíveis, vindos de ilhas desconhecidas e preços extravagantes? E pendurados em charutos de meio metro que fariam empalidecer de inveja um dos meus respeitáveis confrades de blog (que paga do bolsinho, e com o suor do rosto, o charuto que fuma)? E que passam subitamente das férias de oito dias em campismo para os fins de semana na neve, o verão nas Maldivas e os cruzeiros em Bora-bora? Que substituem o Corsa a prestações pelo BMW, série 5 (isto quando são modestos...)?
Amanhã, daqui a menos de uma hora, aliás, faz anos que um duque de Bragança convocado pelo Rei Filipe IV para fazer a guerra na Catalunha insubmissa, entendeu restaurar a independência pátria, coisa que, soit-disant, conseguiu ao fim de vinte e oito anos de guerra de fronteiras e de alianças espúrias com ingleses cobiçosos que ainda hoje nos fazem pagar esse favor. Trezentos e sessenta e oito anos!
Eu não sou iberista. Não que não gostasse mas, realista, sei bem que os espanhóis não estão para nos aturar. Muito menos para pagar os nossos pecados, a nossa incúria, o nosso eterno sentimento de frustração. Ainda por cima conseguem impingir-nos os seus produtos, as suas Zaras, a sua imprensa cor de rosa, as suas praias e o seu Corte Inglês sem a maçada de ter de nos governar.


PS que não tem nada a ver (ou terá?): o PCP está em congresso. E resolveu homenagear o “imortal” partido comunista cubano, o único que teve o direito a discursar. E alguém, Jerónimo?, teve direito a receber uma fotografia dos manos Castro! É obra! E uma fotografia de Stalin? E outra de Mao? Ou do Enver Hodja? Não servem? E do Ulbricht esse génio? Ou do Gomulka? Força, malta, força que nós somos a muralha de aço...

d’Oliveira fecit

1 comentário:

JVC disse...

"Todavia, depois da fortíssima (e mal conhecida) participação coimbrã na crise académica de 62"

É verdade. Já não me lembro bem mas sei muito bem que foi a minha estreia de caloiro em lides não imaginadas na terra distante. No dia 24 de Março não fui a Lisboa, porque nem me ocorreu, não estava ainda consciente, mas fui à assembleia magna dessa noite, onde se decretou a greve académica. Foi o meu despertar para uma vida, mal ou bem, de rotura com todo o meu hábito de jovem provinciano. A partir dessa noite, nada mais foi o mesmo para mim.

E recordo a figura que impressionava, na tribuna, como orador, do presidente da AAC: Carlos Candal, hoje esquecido.