Eiswein ou Jeropiga,
that's the question
Tenho um amigo de há mais de quarenta anos que é a coisa mais parecida com um original que conheço: desistiu de guiar há cerca de vinte anos e portanto usa transportes públicos e táxis de noite ou quando não consegue fazer os seus percursos a pé. Abandonou o velho casarão familiar, logo que se divorciou, comprou um T1 espaçoso que lhe funciona de biblioteca. Vive num hotel onde além de lhe fazerem preços escandalosamente baixos ainda lhe tratam da roupa. Também lhe fazem óptimos descontos ao jantar visto que almoça sempre fora. Contas feitas, garantiu-me que nunca viveu tão bem e com tanto dinheiro disponível. “E também tenho desconto no bar”, acrescentou num sorriso malicioso.
Nada predispunha este abencerragem a tão extraordinária vida. Nem a família, classe média abastada, moderadamente conservadora, nem o seu percurso que foi aliás o percurso de quase toda a geração ainda que em allegro moderato. Fez as greves da praxe enquanto estudante, ajudou alguns amigos mais conspirativos, trocou o Direito pela consultadoria (o que lhe permitiu viajar bem mais do que a maioria dos amigos), casou e descasou duas vezes, tem um filho gerado em terras estranhas que é actor mimo, músico ambulante e veterinário (!!!) ou seja, é mesmo mimo, toca em pequenos grupos de jazz e ostenta um título de veterinário que lhe permite dar consulta aos cães e gatos das numerosas amigas. Pai e filho reúnem-se duas vezes por ano, na Primavera (lá) e no Outono (cá). Cumpre acrescentar que o filho vive numa roulotte nos terrenos de uma quinta da mãe.
Tudo isto para situar a carta que há dias recebi (eu já disse que K. é um original, não disse?, pois ainda escreve cartas num papel espesso e creme, num elegante cursivo que a caneta Aurora -sempre canetas Aurora, italianas e caras, vício que me transmitiu – acentua numa tinta entre o castanho e o azul que ele jura ser também italiana de uma pequena loja de Milão) onde ele me perguntava pelo P.S.
Depois de referir os nomes de vários contemporâneos nossos (cumpre dizer que ele fez grande parte do curso em Lisboa com um intervalo de dois anos estroinas em Coimbra), diz-me “... e esses gajos eram tão, tão esquerdistas, tão dogmáticos, tão cheios de nove horas e agora estão às palmadinhas ao José Sócrates? Então, naquele tempo, diziam-me as últimas por eu achar o sistema sueco uma coisa maravilhosa com a sua social-democracia, o seu Ingmar Bergman e o rei a passear de bicicleta entre o povo e agora essa social democracia, o rei, a princesa que vai casar com um plebeu e o fantasma do Ingmar estão a milhas à esquerda deles?
... Lembras-te que me quiseram forçar a ler o George Politzer, “O Materialismo e o empirocriticismo” e uns romances horrendos do Amado (os subterrâneos da liberdade, a seara vermelha e o cavaleiro da esperança!!!, credo que atentado ao pudor!,) e que me chateavam por eu usar umas gravatas herdadas do meu tio e que além de inglesas eram lindíssimas? E o que me criticavam por eu usar blaser azul escuro, pago e oferecido, de resto pela minha mãe quando descobriu que eu desviava o dinheiro para comprar roupa em livros, copos e cinema usando e abusando de uma coisa informe que em tempos teria sido casaco mas que até puído na bainha das mangas estava?
Estás a vê-los agora, no parlamento, todos enfatiotados, engravatados (convenhamos que com escasso gosto, escassíssimo até...) a trocarem banalidades com a oposição ou em infindáveis e insubstanciais berreiros que soam a falsete? E foram eles quem me exprobaram o facto de logo depois do 25 A eu votar socialista? Votar, nota bem, que não caí na asneira de me filiar... Para esta gentinha eu estava à direita, quase mancumonado com o Freitas do Amaral (que agora é um dos compagnons de route deles!..., ministro e tudo!) e com o ELP...
Quando apoiei (foste tu que me meteste nessa) o Bochecha Mimosa para Belém andavam eles todos enfrascados no pintasilguismo. Ouvi poucas mas boas, como tu também terás ouvido. E por aí fora. Agora estão unha com carne – ou isso parece – com a moção vitoriosa do querido líder proto-coreano que exerce de secretario geral do P.S.. Eu poderia pensar que neles a ideologia se transmutou na palha da mangedoura política. Quem quer bolota “atrepa” e quem quer benesses e vida parlamentar, mete a viola no saco e canta missa com os outros. Se calhar com mais força para que se veja bem a profundidade da conversão.
...Custa-me isso, apesar de tudo. E sinto-me incómodo nesta posição de crítico. É que tenho medo de ser confundido com o bloco de esquerda ou até, sabe-se lá, com o partidão. Logo eu que nunca dei para tais peditórios! E agora, em quem voto? Já sei que me vais falar do papelinho branco mas eu, caríssimo M., tenho uma certa fobia ao vazio. E branco só em paredes. Para poder pendurar quadros ou rechear de estantes com livros. Ou em certos vinhos, de preferência do Reno para não falar de um certo Eiswein que recordarás o velho Prum JJWehler que agora deve andar pelos 900 eurinhos a garrafa, se os preços que tenho ainda são os mesmos.
...Os rapazes da esquerda do nosso tempo meteram a viola no saco e politicamente em vez de vinho branco inclinam-se para a jeropiga. Lá terão as suas (deles) razões. Que lhes aproveite.
De vez em quando um blogger tem de descansar. Sobretudo se, de entre um vasto leque de amigos, puder pescar algo que lhe aproveite. O que é o caso. Resta-me apenas situar o "Eiswein" citado, um JJ Prum que bebemos num dia memorável na Alemanha, à conta de uma namorada dele e de uma garrafa de Porto (Alcino Corrêa Ribeiro, 1946, uma pomada de que o Fernando Assis Pacheco dizia valer um inteiro livro de poemas) por mim trazida para um tio de um amigo nosso que, além de Junker era um notabilissimo vinicultor. Os vinhos de gelo são colheitas ultra-tardias estilo Sauternes que valem o que pesam em metais raros e nobres. São feitos com uvas colhidas á mão, antes do sol raiar, uma a uma, ou quase e o deus que rege estas coisa do vinho dá-lhes um toque, uma cor, um perfume que trinta anos depois ainda recordo com intensa emoção. Como K que obviamente não se chama K. mas que é, garanto, um gajo porreiro. Saravah, mano!
Nada predispunha este abencerragem a tão extraordinária vida. Nem a família, classe média abastada, moderadamente conservadora, nem o seu percurso que foi aliás o percurso de quase toda a geração ainda que em allegro moderato. Fez as greves da praxe enquanto estudante, ajudou alguns amigos mais conspirativos, trocou o Direito pela consultadoria (o que lhe permitiu viajar bem mais do que a maioria dos amigos), casou e descasou duas vezes, tem um filho gerado em terras estranhas que é actor mimo, músico ambulante e veterinário (!!!) ou seja, é mesmo mimo, toca em pequenos grupos de jazz e ostenta um título de veterinário que lhe permite dar consulta aos cães e gatos das numerosas amigas. Pai e filho reúnem-se duas vezes por ano, na Primavera (lá) e no Outono (cá). Cumpre acrescentar que o filho vive numa roulotte nos terrenos de uma quinta da mãe.
Tudo isto para situar a carta que há dias recebi (eu já disse que K. é um original, não disse?, pois ainda escreve cartas num papel espesso e creme, num elegante cursivo que a caneta Aurora -sempre canetas Aurora, italianas e caras, vício que me transmitiu – acentua numa tinta entre o castanho e o azul que ele jura ser também italiana de uma pequena loja de Milão) onde ele me perguntava pelo P.S.
Depois de referir os nomes de vários contemporâneos nossos (cumpre dizer que ele fez grande parte do curso em Lisboa com um intervalo de dois anos estroinas em Coimbra), diz-me “... e esses gajos eram tão, tão esquerdistas, tão dogmáticos, tão cheios de nove horas e agora estão às palmadinhas ao José Sócrates? Então, naquele tempo, diziam-me as últimas por eu achar o sistema sueco uma coisa maravilhosa com a sua social-democracia, o seu Ingmar Bergman e o rei a passear de bicicleta entre o povo e agora essa social democracia, o rei, a princesa que vai casar com um plebeu e o fantasma do Ingmar estão a milhas à esquerda deles?
... Lembras-te que me quiseram forçar a ler o George Politzer, “O Materialismo e o empirocriticismo” e uns romances horrendos do Amado (os subterrâneos da liberdade, a seara vermelha e o cavaleiro da esperança!!!, credo que atentado ao pudor!,) e que me chateavam por eu usar umas gravatas herdadas do meu tio e que além de inglesas eram lindíssimas? E o que me criticavam por eu usar blaser azul escuro, pago e oferecido, de resto pela minha mãe quando descobriu que eu desviava o dinheiro para comprar roupa em livros, copos e cinema usando e abusando de uma coisa informe que em tempos teria sido casaco mas que até puído na bainha das mangas estava?
Estás a vê-los agora, no parlamento, todos enfatiotados, engravatados (convenhamos que com escasso gosto, escassíssimo até...) a trocarem banalidades com a oposição ou em infindáveis e insubstanciais berreiros que soam a falsete? E foram eles quem me exprobaram o facto de logo depois do 25 A eu votar socialista? Votar, nota bem, que não caí na asneira de me filiar... Para esta gentinha eu estava à direita, quase mancumonado com o Freitas do Amaral (que agora é um dos compagnons de route deles!..., ministro e tudo!) e com o ELP...
Quando apoiei (foste tu que me meteste nessa) o Bochecha Mimosa para Belém andavam eles todos enfrascados no pintasilguismo. Ouvi poucas mas boas, como tu também terás ouvido. E por aí fora. Agora estão unha com carne – ou isso parece – com a moção vitoriosa do querido líder proto-coreano que exerce de secretario geral do P.S.. Eu poderia pensar que neles a ideologia se transmutou na palha da mangedoura política. Quem quer bolota “atrepa” e quem quer benesses e vida parlamentar, mete a viola no saco e canta missa com os outros. Se calhar com mais força para que se veja bem a profundidade da conversão.
...Custa-me isso, apesar de tudo. E sinto-me incómodo nesta posição de crítico. É que tenho medo de ser confundido com o bloco de esquerda ou até, sabe-se lá, com o partidão. Logo eu que nunca dei para tais peditórios! E agora, em quem voto? Já sei que me vais falar do papelinho branco mas eu, caríssimo M., tenho uma certa fobia ao vazio. E branco só em paredes. Para poder pendurar quadros ou rechear de estantes com livros. Ou em certos vinhos, de preferência do Reno para não falar de um certo Eiswein que recordarás o velho Prum JJWehler que agora deve andar pelos 900 eurinhos a garrafa, se os preços que tenho ainda são os mesmos.
...Os rapazes da esquerda do nosso tempo meteram a viola no saco e politicamente em vez de vinho branco inclinam-se para a jeropiga. Lá terão as suas (deles) razões. Que lhes aproveite.
De vez em quando um blogger tem de descansar. Sobretudo se, de entre um vasto leque de amigos, puder pescar algo que lhe aproveite. O que é o caso. Resta-me apenas situar o "Eiswein" citado, um JJ Prum que bebemos num dia memorável na Alemanha, à conta de uma namorada dele e de uma garrafa de Porto (Alcino Corrêa Ribeiro, 1946, uma pomada de que o Fernando Assis Pacheco dizia valer um inteiro livro de poemas) por mim trazida para um tio de um amigo nosso que, além de Junker era um notabilissimo vinicultor. Os vinhos de gelo são colheitas ultra-tardias estilo Sauternes que valem o que pesam em metais raros e nobres. São feitos com uvas colhidas á mão, antes do sol raiar, uma a uma, ou quase e o deus que rege estas coisa do vinho dá-lhes um toque, uma cor, um perfume que trinta anos depois ainda recordo com intensa emoção. Como K que obviamente não se chama K. mas que é, garanto, um gajo porreiro. Saravah, mano!
1 comentário:
Não me importava nada de brindar com uma “pomada” dessas à vossa amizade. O pretexto podia também ser o ouvir as vossas queixas relativas às transformações ideológicas das pessoas, sobretudo se ocorridas num período superior a vinte anos.
Bom, dê os meus sinceros parabéns ao seu amigo pelo desabafo porque está um mimo! Isto para não falar no filho dele que também me parece merecer os parabéns.
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