08 fevereiro 2009

Diário Político 101


A moda de Salazar

Hoje, em dois jornais, ele há coincidências!, fala-se na moda de Salazar. São livros (meia dúzia deles nos escaparates), é um filme recheado de belas mulheres, são comentários, enfim aqui há gato. Ou melhor: passa-se qualquer coisa que desde o célebre concurso televisivo não tem parado de aumentar.
Salazar desapareceu da cena política há quarenta anos. Uma cadeira velha e moscovita ou, pelo menos maçónica, desimpediu o caminho titubeante de Caetano e precipitou um fim de regime que, e convém lembrá-lo, ainda durou meia dúzia de anos.
Quarenta anos é muito tempo. Dá para esquecer muita coisa. Digamos que as gerações com menos de cinquenta anos não sabem nada desse tempo de urubus. Nada de nada, mesmo que tenham estudado a época. E não sabem porque a não viveram. Eu não quero aqui polemicar sobre a verdadeira natureza do Estado Novo. Se era ou não um fascismo declarado ou tão só um autoritarismo grotesco e clerical, apoiado na crassa indigência política de duas ou três gerações nascidas depois do 28 de Maio. E fortalecida por uma sociedade fortemente rural, analfabeta que via no cavalheiro de Santa Comba o homem que a salvara da guerra. Da Mundial, diga-se de passagem, que de outras não nos safou, antes nos precipitou nelas com as consabidas consequências.
Diga-se, entretanto, que a guerra (ou guerras) colonial com todo o seu medonho cortejo de mortos, de exílios, de matanças indiscriminadas (que não foram tantas como as que se publicitaram nem tão poucas como agora uma história desculpabilizadora nos quer fazer crer) teve na sociedade dos anos sessenta um efeito brutal. Despertou largas camadas da população que viu partir filhos, pais e irmãos. Levou à emigração muitos milhares de portugueses que entenderam mais prudente e mais rentável o trabalho no estrangeiro do que os ares africanos. Trouxe ao mercado do trabalho, rarefeito pela mobilização masculina, muitas dezenas de milhares de mulheres que de outro modo teriam continuado como domésticas, rurais ou criadas de servir. Politizou a sociedade portuguesa ou, pelo menos, obrigou-a a encarar de frente uma realidade que os mapas do Portugal não é pequeno disfarçavam.
E mesmo nas colónias, ou melhor dizendo em Moçambique e Angola, obrigou os poderes locais a abrir escolas e universidades, a permitir a entrada de negros e mulatos na administração pública, em lugares subalternos da carreira política, enfim realizou em meia dúzia de anos o que não fora feito nos anteriores cinquenta anos de política de “assimilação”.
Nada disto, porém, se deve a Salazar mas tão só às circunstancias especiais que a guerra em três frentes o obrigou.
Voltemos pois a este exercício de louvor a uma figura que deve ser tomada como um dos principais responsáveis do atraso português.
E comecemos por um filme que por aí se anuncia onde, pelos vistos, se atribui, ao eremita de S.Bento um número honroso de aventuras femininas. Eu não ponho as mãos no fogo pela virtude (se virtude aquilo era) de ninguém. Salazar conheceu algumas mulheres, sabe-se. Relacionou-se com outras tantas e recebeu (isso sim, bem documentado) milhares de cartas em que por vezes a admiração assumia tons quase libidinosos. Todavia, era voz corrente desde a direita até à esquerda que esse conhecimento da gens feminina era claramente platónico. O homem seria misógino ou apenas tímido, estava moldado pelo seminário e pela austeridade, enfim, ao cavalheiro o namoro e as suas mais evidentes consequências dizia pouco. Como já disse não ponho a mão no fogo sequer por mim, mas parece-me que esta faceta de Casanova lusitano, de macho ibérico discreto mas machão. É que não consta nos numerosos textos que ao longo dos anos fui tendo a paciência de ler. Não sei tudo, provavelmente sei pouco mas espanta-me esta súbita humanização do anacoreta.
A segunda parte desta nova atitude perante Salazar é a glorificação de uma política económica que, a todos os títulos, foi puramente defensiva. Agora, parece que as obras de regime, que as houve, evidentemente, foram algo de refulgente de original e de grandioso. As barragens, as escolas dos centenários (quando seria bom lembrar que só em fins de quarenta é que voltou a ser obrigatória a 3ª classe...), os bairros económicos, o escasso desenvolvimento industrial ou o viaduto Duarte Pacheco foram actos de mera gestão e se se distinguem por algo é exactamente por terem sempre ficado aquém das necessidades mesmo de um pais rural e empobrecido. Nem os lucros da neutralidade, que os houve, foram aproveitados, como aproveitado não foi o plano Marshall.
Nem o turismo, incipiente até sessenta e dois, sessenta e três, foi aproveitado para, a exemplo da vizinha e faminta Espanha, criar um grande destino de férias e de lazer internacional.
Mais curioso ainda: o exército, esteio do regime a partir do momento em que Salazar se desembaraçou da oficialagem republicana que fizera o golpe de 28 de Maio, também não estava preparado para a guerra: os primeiros meses, melhor dizendo os dois primeiros anos de guerra em África foram prova cabal disso mesmo. Pode até dizer-se dessas forças expedicionárias o mesmo que em fins do século XIX se disse do Exército Colonial. Mal preparado, mal enquadrado, armamento mais que deficiente, péssima intendência mas um espírito desenrasca e desenvolto e muito, mas muito, heroísmo individual. Está escrito não por comentadores nacionais mas por estudiosos estrangeiros que dedicaram às campanhas de consolidação do império um estudo que poucos nacionais foram capazes de igualar. O mesmo sucedeu nos primeiros tempos da campanha do Norte de Angola nos anos sessenta. Simples soldados, muitos milicianos e alguns oficiais do quadro fizeram das fraquezas força e reocuparam o território apesar das péssimas condições, da falta de armamento adequado (nem as fardas eram boas...) e da má retaguarda. Isto para não falar da péssima ou inexistente informação social e política. Angola rebentou na cara de um serviço de informações militar e civil inoperante e inculto.
A famosa polícia política de Salazar, a PIDE, a Legião e outras forças do mesmo teor andaram ás escuras durante meses. De facto a primeira apenas servia para espiar os nacionais na metrópole e mesmo aí usava mais os métodos brutais do que a investigação cuidadosa. Corre por aí a este respeito uma autobiografia de um Fernando Gouveia que além de repelente é de uma falsidade pasmosa. A tentativa de branqueamento dos processos de interrogatório, os famosos “safanões dados a tempo”, roça o ridículo tanto mais que se sabe que a policia nunca conseguiu prever sequer desmantelar os vários aparelhos oposicionistas. Os êxitos que teve (e teve-os, claro) devem-se em muito ao clima de medo e intimidação existente, às características plácidas de um pais em que nada acontecia e em que, por isso mesmo, a novidade era sempre insólita e subversiva. A eficácia da PIDE foi sempre uma miragem, basta ver o caso do assassinato de Delgado, muitas vezes engrandecida pelo medo de muitos e pelos exageros de outros tantos.
Mas o pior da herança salazarista não está nisto que já é muito, que já é demais.
Insidiosamente deixou a sociedade vacinada contra a democracia, contra a liberdade, contra a discussão livre, contra a polémica. Governo que se preze pede, antes de tudo, respeitinho. Exige autoridade. Muita e a qualquer preço, em qualquer circunstância, mesmo a mais comezinha. A contestação é considerada um desafio insuportável.
A ideia geral é esta: o governo governa e aos cidadãos compete baixar a cabeça e cumprir. “Deixem-me trabalhar” pedia alguém como se o discutir as suas opções tácticas fosse um crime e uma insuportável violência.
Neste clima tão escasso de discussão, não admira que esta seja postergada como o foi no regime nazi ou no das democracias populares que nem democracias nem populares eram, diga-se de passagem.
Aliás, quer Salazar quer a generalidade dos ditadores sempre recearam e condenaram a vozearia da praça pública ou das assembleias. Ou porque as consideram ignorantes e logo incapazes de decidir. Ou porque entendem que mesmo sem ser ignorantes, a crise aperta e exige medidas urgentes e a salvo da contestação. Ou porque, e este é o caso mais frequente, entendem o poder como algo que vem direito de Deus e que não pode nem deve ser partilhado.
Um último argumento, muito em voga, é o de qualquer cedência é sempre uma porta aberta para a mais completa libertinagem.
É talvez por isto que os nossos partidos estão pouco habituados ao confronto de opiniões. Interna ou externamente. Basta ver algumas sessões na AR ou, melhor, o que se passa nos congressos e estamos aliás em época deles. No CDS. Portas elegeu-se triunfalmente com um número de sins que lembra a saudosa Albânia. No Bloco, há mais discussão mas a coisa explica-se pela sua própria génese inter-partidária. E porque pode vir a ser um dos fieis da balança no caso provável de as eleições legislativas não darem a maioria absoluta a ninguém. Quanto ao P.S., basta ouvir Santos Silva para se perceber que naqueles lados também se está a preparar um heróico quadrado à volta do líder. E quando os quadrados se formam, as “minudências” ficam de fora.
Em países de tradição democrática mais antiga estes unanimismos seriam motivo de estupor. É ver o que se passou há bem pouco em França, no congresso do P.S. .
E até na Espanha tão próxima, tão parecida e tão diferente, as coisas correm de outra maneira. Neste exacto momento, leia-se o El Pais de hoje, quer no PP quer no PSOE para não falar em formações menores ou nas sucursais partidárias autonómicas, a discussão ferve. Defeito deles, seguramente...

d'Oliveira

1 comentário:

Primo de Amarante disse...

O guião foi feito jovem que foi meu aluno. Desconfio que vai reabilitar o Ditador. Este aspecto que a telenovela está a revelar, já era conhecido, mas não entendido como um lado humano, mas como o lado hipócrita de "sacristão" felisteu.