O dia está magnífico, sobretudo para quem, como eu, se pode dar ao pequeno grande luxo de vir ler os jornais (o de hoje e os suplementos literários atrasados de uma série de jornais espanhóis e franceses) nesta esplanada frente ao jardim. O diligente Senhor Américo ja me trouxe a bica em chávena fria, o copo de água e o troco, que eu pago sempre adiantado.
Vem-me de longe, de muito longe, esta mania de pagar logo no momento da entrega do meu pedido. Foi o João Quintela, querido e desaparecido amigo, quem me meteu esta mania no coco. O João pretendia que, assim, se podia fugir mais depressa da policia que eventualmente entrasse no café onde estávamos. Se juntarmos a essa ideia, um tanto ou quanto fixa, estoutra que era a de ficar sempre de costas para a parede como se, em vez de inofensivos estudantes a fazer tirocínio para conspiradores, fôssemos pistoleiros de um imaginário far-west lusitano está feito um retrato a la minuta do que éramos ou do que julgávamos ser. Hábitos da clandestinidade diria alguém mais propenso a tirar-nos a bissectriz com dados de há quarenta e tal anos como, por exemplo, o Jorge Conceição emergido de um longínquo ano de 64, no Mandarim, sob a égide de Orlando de Carvalho, homem de muitos saberes que a azia ou outra maleita canalha haveria de converter estranhíssimamente em ogre e carrasco de gerações de estudantes de Direito! (Olá Jorge, a malta tem se encontrar um dia destes, manda-me o teu mail para ver numa das próximas descidas á capital te ponho a vista em cima: havemos de ter muita conversa atrasada…).
Mas eu estava na esplanada, sob um sol madrugador mas quente, a ver passar uma avó de muito bom ver maila filha e a neta bebé… Até isso alegrava o dia. Ou melhor: isso alegrava definitivamente o dia! Eu sei, leitoras, eu sei, que não devia olhar com concupiscência as avós engraçadonas que me passam á distancia de tiro, mas que querem? Deus, ou a mãe natureza, deu-me um par de lúzios que se comprazem em provocar o chamado pecado menor, que é aquele só de pensamentos (se é que esta distinção útil e desculpabilizante, tem valor canónico e/ou teológico). Portanto passava a avó, acenava um fugaz cumprimento, passavam dois cães alucinados pela manhã e pela pequena liberdade que os donos lhes tinham concedido ao retirar-lhes as coleiras, passavam apressados para os escritórios dois ou três que ainda têm muito que penar até poderem refastelar-se como eu numa esplanada a ler os jornais da manhã.
Estava a metade do jornal quando me apercebi que uma coisinha vermelha e redonda trepava animosamente o copo de água. Era uma joaninha, a primeira do ano… De súbito apercebi-me que a primavera estava a rondar. Uma joaninha! E o sol. E mulheres bonitas. E cães estonteados numa corrida sem sentido, só felicidade pura, pelo jardim. E a bebé a ensaiar inseguros mas determinados passos.
Joaninha “avoa”, “avoa”
Que o teu pai está em Lisboa
Com um saco de broa…
Num repente é toda a minha infância que regressa a galope, o avô comigo pela mão, o meu irmão ao colo dele, um rancho de tias e tios muito novos, a minha mãe, lindíssima!, a minha avó gordinha (gordinha é favor, goooorda!) a contar histórias mirabolantes, a avó Aldina, a Velha Senhora, o meu pai, jovem médico a regressar dos Açores para onde fora mobilizado: um estranho para nós, meninos a espreitar aquele homem que beijava e abraçava a Mãe. Felizmente a “guerra” dos Açores ensinara-o: ao ver que o mirávamos desconfiados, tirou sei lá de onde dois brinquedos, julgo que eram duas camionetas de madeira, enormes, e aí quebrou-se o gelo todo e só se viu dois meninos a deixar-se abraçar por um pai desconhecido ou esquecido enquanto abraçavam duas camionetas de madeira quase do tamanho deles…
O pai, os avós, alguns tios já não estão entre nós. Permanece deles, como um velho aroma entre roupas guardadas numa arca, uma memoria fanada uma dor mansa, um aviso da morte que nos há-de irmanar. Mas eles é que não estão. Mas a joaninha, essa, está. E continua a subir no seu passo miudinho o copo. Quererá beber-me a água? Ou, mensageira alada e vermelha, veio tão só lembrar a primavera que está a chegar, mensageira benévola que vem cumprir a tarefa de comer umas bichezas que estragam as plantas. A esta joaninha entregaram-lhe este jardim, o Jardim Machado de Assis, homenagem simpática a um dos maiores escritores da nossa língua. Sozinha? Espero bem que lhe mandem umas colegas que o jardim é apesar de tudo grande e a joaninha demasiado pequena para tanto trabalho.
Ai amigas e leitoras, isto hoje saiu ainda pior do que o costume. É este vício de escrever de carreirinha, quem vier atrás que feche a porta... Ai mcr, mcr… É a primavera que me está a perturbar o juízo e a escrita. A primavera, o calor anormal para a época, os fantasmas familiares, as mulheres que passam e um ror de memórias que me assolam desde Moçambique até Coimbra, viajem sem regresso, no regresso desta viajem pela solidão amável da lembrança.
Vem-me de longe, de muito longe, esta mania de pagar logo no momento da entrega do meu pedido. Foi o João Quintela, querido e desaparecido amigo, quem me meteu esta mania no coco. O João pretendia que, assim, se podia fugir mais depressa da policia que eventualmente entrasse no café onde estávamos. Se juntarmos a essa ideia, um tanto ou quanto fixa, estoutra que era a de ficar sempre de costas para a parede como se, em vez de inofensivos estudantes a fazer tirocínio para conspiradores, fôssemos pistoleiros de um imaginário far-west lusitano está feito um retrato a la minuta do que éramos ou do que julgávamos ser. Hábitos da clandestinidade diria alguém mais propenso a tirar-nos a bissectriz com dados de há quarenta e tal anos como, por exemplo, o Jorge Conceição emergido de um longínquo ano de 64, no Mandarim, sob a égide de Orlando de Carvalho, homem de muitos saberes que a azia ou outra maleita canalha haveria de converter estranhíssimamente em ogre e carrasco de gerações de estudantes de Direito! (Olá Jorge, a malta tem se encontrar um dia destes, manda-me o teu mail para ver numa das próximas descidas á capital te ponho a vista em cima: havemos de ter muita conversa atrasada…).
Mas eu estava na esplanada, sob um sol madrugador mas quente, a ver passar uma avó de muito bom ver maila filha e a neta bebé… Até isso alegrava o dia. Ou melhor: isso alegrava definitivamente o dia! Eu sei, leitoras, eu sei, que não devia olhar com concupiscência as avós engraçadonas que me passam á distancia de tiro, mas que querem? Deus, ou a mãe natureza, deu-me um par de lúzios que se comprazem em provocar o chamado pecado menor, que é aquele só de pensamentos (se é que esta distinção útil e desculpabilizante, tem valor canónico e/ou teológico). Portanto passava a avó, acenava um fugaz cumprimento, passavam dois cães alucinados pela manhã e pela pequena liberdade que os donos lhes tinham concedido ao retirar-lhes as coleiras, passavam apressados para os escritórios dois ou três que ainda têm muito que penar até poderem refastelar-se como eu numa esplanada a ler os jornais da manhã.
Estava a metade do jornal quando me apercebi que uma coisinha vermelha e redonda trepava animosamente o copo de água. Era uma joaninha, a primeira do ano… De súbito apercebi-me que a primavera estava a rondar. Uma joaninha! E o sol. E mulheres bonitas. E cães estonteados numa corrida sem sentido, só felicidade pura, pelo jardim. E a bebé a ensaiar inseguros mas determinados passos.
Joaninha “avoa”, “avoa”
Que o teu pai está em Lisboa
Com um saco de broa…
Num repente é toda a minha infância que regressa a galope, o avô comigo pela mão, o meu irmão ao colo dele, um rancho de tias e tios muito novos, a minha mãe, lindíssima!, a minha avó gordinha (gordinha é favor, goooorda!) a contar histórias mirabolantes, a avó Aldina, a Velha Senhora, o meu pai, jovem médico a regressar dos Açores para onde fora mobilizado: um estranho para nós, meninos a espreitar aquele homem que beijava e abraçava a Mãe. Felizmente a “guerra” dos Açores ensinara-o: ao ver que o mirávamos desconfiados, tirou sei lá de onde dois brinquedos, julgo que eram duas camionetas de madeira, enormes, e aí quebrou-se o gelo todo e só se viu dois meninos a deixar-se abraçar por um pai desconhecido ou esquecido enquanto abraçavam duas camionetas de madeira quase do tamanho deles…
O pai, os avós, alguns tios já não estão entre nós. Permanece deles, como um velho aroma entre roupas guardadas numa arca, uma memoria fanada uma dor mansa, um aviso da morte que nos há-de irmanar. Mas eles é que não estão. Mas a joaninha, essa, está. E continua a subir no seu passo miudinho o copo. Quererá beber-me a água? Ou, mensageira alada e vermelha, veio tão só lembrar a primavera que está a chegar, mensageira benévola que vem cumprir a tarefa de comer umas bichezas que estragam as plantas. A esta joaninha entregaram-lhe este jardim, o Jardim Machado de Assis, homenagem simpática a um dos maiores escritores da nossa língua. Sozinha? Espero bem que lhe mandem umas colegas que o jardim é apesar de tudo grande e a joaninha demasiado pequena para tanto trabalho.
Ai amigas e leitoras, isto hoje saiu ainda pior do que o costume. É este vício de escrever de carreirinha, quem vier atrás que feche a porta... Ai mcr, mcr… É a primavera que me está a perturbar o juízo e a escrita. A primavera, o calor anormal para a época, os fantasmas familiares, as mulheres que passam e um ror de memórias que me assolam desde Moçambique até Coimbra, viajem sem regresso, no regresso desta viajem pela solidão amável da lembrança.
4 comentários:
Uma delícia esta sua crónica. É um sortudo, é o que é! Jornais, sol, esplanada e belas vistas e nós aqui, enfiados em gabinetes, com as janelas fechadas para não entrar o ar poluído… eu sei, eu sei que a inveja é uma coisa muito feia!
Trocamos de sexo, de idade, fico com o seu latifúndio duriense, com a casa do quintal enorme V fica com a minha... quem ganha e quem perde?
Latifúndio? Ora, ora, não me importava não. É “apenas” um pedaço de paraíso na terra, nomeadamente porque é uma varanda sobre uma paisagem magnífica do Douro, mas não se esqueça que não tenho tempo durante a semana para usufruir desse bem precioso. Tenho que ganhar dinheiro para o “latifúndio”. É a vida. Mas não me queixo, bem pelo contrário.
Olá, Marcelo!
Quiz encontrar-te novamente no teu blogue mas, não sei como, perdi-lhe a sequência. Reencontrei-a hoje no Água Lisa do João Tunes. Entretanto reparei que mudaste de estrutura base, agora para o sapo, pelo que não sei este comentário te irá parar às mãos. Mas vou tentar e, se nada acontecer, procurar-te-ei naquela base. Mando-te então o meu endereço: jconceicao@netcabo.pt. Fico à espera que desças à capital para o encontro prometido. Mando-te o nº do telemóvel?
Um abraço.
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