14 junho 2004

Em torno de um mito – Orfeu


ORFEU REBELDE

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Miguel Torga, in “Orfeu Rebelde”


O mito de Orfeu, um dos mais fascinantes da cultura clássica, é inspirador de diversas criações artísticas dos tempos modernos, que vão da música (Offenbach, Glück, Liszt, Stavinsky…), ao cinema, à pintura, à poesia…
Segundo a(s) lenda(s) – há do mito várias versões -, Orfeu era filho de uma musa e do rei da Trácia (ou do próprio Apolo, segundo alguns) e celebrizou-se pela magia do seu canto e da sua música (foi o inventor da lira), com os quais movia os homens, os animais selvagens e as próprias árvores.
Regressado da aventura dos Argonautas, casa com a ninfa Eurídice que, no próprio dia do casamento, morre ao ser picada por uma serpente. Orfeu, inconsolável, procura-a no Hades/Infernos e, vencendo pela música os vários obstáculos, consegue comover os deuses infernais, suspender os suplícios dos condenados (Sísifo, Danaides, Tântalo,…) e obter o privilégio de trazer de novo ao mundo dos vivos a sua amada Eurídice, desde que não olhe para ela antes de atingirem o mundo da luz. Orfeu, porém, tomado de ansiedade (ou dúvida?) quebra o juramento e olhando para Eurídice perde-a para sempre.
O mito ficará ligado à música, à poesia, mas também aos “mistérios órficos”.

Contributo de Ifigénia

9 comentários:

Primo de Amarante disse...

Lembram-se do velho Priapo?!... A sua lenda fez inveja inaudita a blogueiros de cepa mole e, por isso, o Priapo encolheu-se no silêncio da sua magnanimidade. Mas, este novo contexto mitológico acabará por dar razão ao Priapo e à sua lenda. Pode, por isso, acontecer que Afrodite o devolva ao seio blogueiro para inveja de muitas agrestes divindades.

Primo de Amarante disse...

É sempre reconfortante saber que não estou só. Obrigado, nescio! E a foto é de muito boa qualidade.

Silvia Chueire disse...

Eu ia fazer um comentário. Face ao rumo que as coisas tomaram, desisti...

Primo de Amarante disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Primo de Amarante disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Primo de Amarante disse...

Que rumo, eugénia?!... Não ponha no priapo intenções que priapus nunca priapou! Se quer pôr intenções no compadre, esteja à vontade. O compadre está muito velhinho e já nem intenções consegue pôr.

Silvia Chueire disse...

nada de intenções, compadre. apenas achei que o rumo escapava ao poema. tenho me restrito, ou tentado restringir-me aos poemas.nem o comentário devia ter feito. desculpem-me ...

Primo de Amarante disse...

Esteja á vontade, eugénia. Desde a Revolução Francesa que todos os comentários são possíveis.Viva a LIBERDADE!

Primo de Amarante disse...

Néscio sempre me compreendeu.
Egénia: nesses tempos, o indivíduo não era nada e, por isso, as divindades eram tudo -- tudo na abastança. E, por isso, a estória dos deuses tinha de ser escrita alegoricamente, dando possibilidades aos homens para imaginarem o que poderiam ser, se tivessem o que só os deuses eram capazes de ter. Somos filhos do mito, porque, como diria Pessoa o mito é (na nossa condição humana) tudo e nada. Tudo no plano da imagninação, pois na realidade já viu o que seria de desconfortante se o homem tivesse o que sobra ao priapo?!...Mas sem o mito do priapo, do orfeu ou outros, não havera a poesia, o teatro, a música: nenhuma arte seria possível. A justa medida não é criação dos deuses, mas um padrão dos homens.