13 julho 2004

Lei nº 5/02 - registo de voz e imagem

Fátima Mata-Mouros, juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal, publicou ontem, 12 de Julho, no jornal Público, um artigo intitulado Quem zela pelo espírito da Lei? em que dá conta da sua recente participação num encontro de trabalho “que reuniu juizes, procuradores, polícias e professores de Direito à volta de problemas colocados pelos mecanismos de combate à criminalidade organizada”, realizado por iniciativa do Centro de Estudos Judiciários, no âmbito da formação permanente, no qual se lê:
“Entre as várias questões abordadas contou-se a problemática da recolha de imagem nas investigações por crimes mais graves. Com efeito, não existe hoje certeza, entre nós, sobre a possibilidade do recurso em investigações criminais à ilustração por filmagens ou fotografias de actividade criminosa detectada pelas polícias, sem que previamente seja obtida autorização do juiz. Não se discute apenas a possibilidade de recolha de imagens no interior de espaços privados. Não, a discussão estende-se à simples possibilidade de um investigador fotografar a consumação do crime cuja preparação tem vindo a investigar há meses e, de repente, tem a ocasião de observar em plena via pública. E, pasme-se, a lei que prevê aqueles meios de obtenção de prova no combate à grande criminalidade já leva dois anos de publicação! Antes, havia relativo consenso quanto à questão. Hoje, são crescentes as dúvidas que muitos colocam sobre a legalidade de um tal procedimento e as incertezas nasceram da própria lei”.
E exclama: “que pena que aquele encontro não fosse gravado para ser apresentado a responsáveis políticos!”.

A gravação, não a temos para apresentar, mas aqui ficam as Conclusões do debate sobre a medida referida por Fátima Mata-Mouros – o registo de voz e imagem – que serão amanhã divulgadas, tal como as respeitantes aos demais temas abordados, no site do Centro de Estudos Judiciários.

1. O artº6º da Lei 05/2002, de 11 de Janeiro, admite o registo de voz e imagem sem consentimento do visado quando necessário para a investigação dos crimes enunciados no seu artº1º, mediante prévia autorização ou ordem do juiz;

2. Analisados comparativamente o seu regime e âmbito de aplicação com o regime e âmbito de aplicação das escutas telefónicas, definidos nos art.ºs 187º a 190º do Código de Processo Penal:
2.1. Constata-se que o catálogo de crimes para cuja investigação este meio de obtenção da prova é permitido é menos restritivo do que o definido para o registo de voz e imagem, mas a admissibilidade da sua utilização é, pelo contrário, mais restritiva, pois a lei exige, no que respeita às escutas telefónicas, que haja “razão para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”, enquanto que para o registo de voz e imagem se basta com o ser “necessário para a investigação”;
2.2. Não é absolutamente clara a delimitação do âmbito de cada um destes dois meios de obtenção da prova, nomeadamente quando se procura definir a especificidade da aplicação do registo de voz e imagem, a não ser a constatação de que, face ao disposto no artº 190º CPP, essa especificidade está, em qualquer caso, na captação e registo de imagem. Se se entender que o regime das escutas telefónicas se aplica apenas à intercepção e captação de voz, aqui se incluindo a intercepção das comunicações entre presentes (artº 190º CPP), então concluir-se-á que, no âmbito do registo de voz e imagem, a recolha daquela tem lugar quando surge associada à imagem que se quer registar. Se se entender que a “extensão” do artº 190º CPP, pelos meios técnicos aí considerados, já permitia a intercepção e registo de imagens quando estas sejam também objecto de comunicação ou a ela estejam associadas, concluir-se-á pela existência de um espaço de sobreposição na aplicação dos dois meios de obtenção da prova, sendo o específico campo de aplicação do registo de voz e imagem a recolha e registo desta, quando a imagem não é objecto ou não surge associada a qualquer conversação ou comunicação;
2.3. Manda o nº3 do artº6º da Lei 05/2002 aplicar ao registo de voz e imagem o disposto no artº 188º CPP, que respeita às formalidades das operações de intercepção e gravação das escutas telefónicas. Numa adequada interpretação deste artigo do Código de Processo Penal, deve o Ministério Público, porque lhe compete a direcção do inquérito, ser ouvido quanto aos elementos recolhidos considerados relevantes para a prova antes de o juiz de instrução criminal determinar a sua transcrição ou destruição;
2.4. Quer o artº 189º (que comina com a nulidade o não cumprimento dos requisitos e formalidades das escutas telefónicas) quer o nº3 do artº 187º (que proíbe a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor), ambos do Código de Processo Penal, deverão ser aplicados, por analogia, ao registo de voz e imagem.

3. O artº 6º da Lei 05/2002 contende com três dos direitos pessoais consignados no artº 26º da Constituição da República Portuguesa: o direito à imagem, o direito à palavra e o direito à reserva da vida privada. No que respeita à recolha de imagem foram expressos três entendimentos diferentes:
a)Este artigo veio restringir a possibilidade de recolha de imagem processualmente válida, na medida em que, com a sua entrada em vigor, tornou inaplicável o disposto no artº 79º do Código Civil, segundo o qual o direito à imagem pode ser sacrificado por “exigências de polícia ou de justiça” (nº2);
b)Este artigo veio permitir a recolha de imagem em processo penal, fora das condições do artº 167º CPP, que anteriormente não era legalmente possível porque o artº 79º C.Civil é-lhe inaplicável;
c)Este artigo veio ampliar a possibilidade de recolha de imagem em processo penal, para além das situações enquadráveis no artº 79º C.Civil.
Qualquer uma destas posições considera que o artº 6º da Lei 05/2002 legitima, verificados os seus pressupostos e formalidades, para além da limitação do direito à palavra, a limitação do direito à imagem e a intromissão na vida privada, sublinhando a terceira das posições expostas que apenas a reserva da vida privada está aqui em causa, na medida em que o direito à imagem sempre cederia por força de aplicação do artº 79º C.Civil. Reservas são colocadas quanto à legitimidade da intromissão, para registo de imagem, na esfera da privacidade, que por alguns é admitida com carácter de excepcionalidade, numa aplicação muito exigente dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação ao crime em investigação.

4. O regime do registo de voz e imagem previsto no artº 6º da Lei 05/2002 respeita tão-só à investigação criminal, ou seja à actividade pré-ordenada à investigação de um crime, à determinação dos seus agentes, da sua responsabilidade e respectiva descoberta e recolha de prova.
Não é aplicável às acções desenvolvidas com fins de segurança ou de prevenção, as quais, desde que legitimadas pelo artº 79º C.Civil ou por legislação própria, podem vir a ser validamente utilizadas como prova em processo penal. São exemplos: as vigilâncias desenvolvidas pela Polícia Judiciária nos termos do nº2 do artº 4º do DL 275A/2000, de 09 de Novembro (Lei Orgânica - na redacção do DL 304/2002, de 13/12); e a vigilância electrónica desenvolvida no âmbito de actividades de segurança privada ( cfr. DL nº35/2004, de 21 de Fevereiro, DL 263/2001, de 28 de Setembro, e nº2 do artº 167º CPP).

5. Importa alertar para as dificuldades que a imprecisão legal na definição deste necessário meio de obtenção da prova traz à prática judiciária e, consequentemente, ao combate à criminalidade organizada e económico-financeira, sublinhando-se a dessintonia entre a leitura restritiva que a letra da lei autoriza e o objectivo pretendido de introduzir, neste domínio, mecanismos de investigação e repressão mais eficazes. E afirmar a indispensabilidade de garantir, através de legislação clara e congruente com o restante edifício jurídico-penal, a segurança na aplicação deste (como de muitos outros) procedimento processual penal.

Caparide, 29 de Junho de 2004

Relator: Rui do Carmo

contributo de Rui do Carmo

1 comentário:

josé disse...

Ora cá temos um serviço ao público...jurista!
Obrigado, Rui do Carmo.