27 agosto 2004

Vítimas

Por EDUARDO PRADO COELHO, professor universitário, no Público de hoje:

O acontecimento teve uma enorme repercussão. Uma mulher jovem, judia, transportando no metro parisiense o seu bebé, é vítima de um atentado, mais concretamente, de uma violação colectiva, por um grupo de negros e muçulmanos, perante a indiferença de outros passageiros que se encontravam no outro extremo da carruagem. Tendo tido a coragem de denunciar este crime anti-semita, a mulher, que os "media" designaram como Marie L., foi considerada um caso exemplar da violência racista crescente em França. O próprio Presidente Chirac se emocionou e defendeu que se criassem medidas para evitar esta vaga inquietante. Pouco tempo depois, veio a descobrir-se que todo o depoimento era completamente falso. Marie L. inventara tudo. Talvez, como tantas vezes sucede nestes casos de mitomania, ela tenha acabado por acreditar naquilo que contava. Talvez de tanto mentir, ela se tenha sentido verdadeiramente violada. Mas ela apostou sobretudo na repercussão mediática do que ia ficcionalmente construindo: ela tornou-se verdadeiramente heroína da sociedade, exemplo de uma evolução em vários planos: a lógica racista, a dimensão sexual da agressividade; o perigo dos negros e árabes, os riscos de sair à rua, a indiferença egoísta daqueles que assistem e não reagem.

O caso levou diversos sociólogos a apontarem uma tendência contemporânea: se as vítimas provocam tanta emoção é porque a sociedade está ansiosa por encontrar vítimas. O seu sentido progressivo da compaixão alimenta-se disso. Por outras palavras, vivemos numa situação em que as vítimas se transformam em heróis mediáticos.

Se isto sucede, é porque não é hoje fácil ser herói. A forma de ser herói tem a ver com o crescimento do individualismo, que deixa o indivíduo entregue à sua própria solidão. Como declara Lucien Karpik, o próprio processo judicial se alterou. Anteriormente, julgava-se em nome do interesse geral. "Agora passou-se a um processo organizado como uma espécie de terapêutica da vítima, com a ideia implícita de que esta é a única maneira de apagar o trauma. Hoje tudo está preparado para que a vítima se transforme no centro do processo. Assiste-se assim a um privatização da justiça que, sem que haja debate, se põe ao serviço de uma causa privada."

Se o leitor vir com atenção um telejornal, verifica que se trata de encontrar vítimas da sociedade e que essas vítimas pretendem designar um nome que represente o rosto da culpa. Na ideologia antipoder que de certo modo substitui a clivagem esquerda/direita, a designação de um culpado é a grande tarefa. Quando podemos dizer que a culpa é de X ou de Y, podemos dormir descansados. A sociedade contemporânea ama a compaixão. E as vítimas encontram no processo que as vitimiza o momento de glória que procuram ao longo de uma vida sem grandeza.

1 comentário:

Kamikaze (L.P.) disse...

Não vejo outra interpretação caro Carteiro. Nos tempos em que a Felícia Cabrita saiu com a "história", toda a gente estava escandalizada, chocada, indignada, a querer justiça para as vítimas de abuso sexual. Esse tempo passou há muito, as vítimas passaram a ser os suspeitos e acusados, por isso o texto de EPC não é, no actual contexto, politicamente incorrecto, pois não? Apenas oportunamente insidioso.