20 setembro 2004

Palavra

Silêncio

Chuva de Outono,
gotas cristalinas banham copas despidas
Um ligeiro vento de norte,
prenúncio de sorte,
celebra, por entre portadas, uma recordação distante,
povoação que já não existe no roteiro do viajante
Lembrança confusa que a chuva apaga,
que a lareira incendeia cruzando um azul gélido com um amarelo quente
Mistura fascinante,
tela atenuante,
para uma chuva que arde lá fora.
O rio,
melancólico no entoar de um movimento
Engrossa o seu caudal com as dádivas do frio
Dobram-se as árvores ao autoritarismo,
é o vento que dita o conformismo,
sereno o rio prossegue
Sem se atrever a questionar o que persegue,
as regras anuncia-as o tempo
Atarefado o rio existe,
preso ao fardo
de escrever o testamento.
Chuva de Verão,
cheiro a terra escaldada,
no horizonte trovoada
e um castanheiro que morre de pé
Espectáculo de pirotecnia divina,
ressoam bombos sem batuque,
ilusão que maravilha sem recorrer a truque,
no dia de nossa senhora da ravina
Santa sem altar,
padroeira de castanheiros que a trovoada transforma,
em cinza por cremar.
Ainda a trovoada,
incompreendida,
prepotente,
agora e sempre mal amada,
bailando desacompanhada
pela seara incandescente
Adivinha-se no seu seio o suor de gente,
mas a seara: ferida,
procura, somente,
a sua semente,
último sopro de vida.
Manhã,
inesquecível palco ao dispor do orvalho,
contracena com o velho carvalho,
arrastando um olhar descomprometido para o horizonte
Visão matinal de uma humilde ponte,
despretensiosa no entrelaçar de duas margens,
diferentes aragens,
mundos fantásticos que a manhã reclama seus
Afinal pertença das letras,
aquelas que o amanhecer omite,
quando soberano proclama: adeus.
Uma brisa de Agosto,
refresco para um qualquer rosto,
transpira pela enxada
Admirável na ousadia,
inconsequente na acção,
está longe de ser aura marinha,
mas sempre convida ao mergulho
Á falta de praia: o riacho
Fica adiado o sacho
A brisa é rainha
e o seu leito merecedor de um ardente engulho.
Por fim a noite,
absoluta, sufocante
Violada, aqui e ali, por pirilampos,
lanternas que se acendem e apagam nos campos
ao som de grilos e cigarras
Frágeis guitarras
de uma, ao invés, consistente melodia,
não fosse a noite escura: alegre sinfonia
Encerram-se todos os cenários,
espaços onde a palavra pernoita: inocente,
premissa de um silêncio que lhe é subjacente.

Palavra

Verbos, vontades, sensações,
desejos, coacções;
caos
multiplica verdades,
por vielas: ansiedades;
cidades enlameadas,
confusas,
maltratadas;
olhares,
rostos,
sons,
cores,
não se discutem os gostos;
uma só designação:
poupados os nomes,
retalhados os tronos;
reinados sem rei,
príncipes sem princesa,
conto sem ponto
e tudo… tudo…
tudo
tudo e nada e ainda mais;
sangue que escorre de nascentes,
criações descrentes,
virgens que reclamam lesadas
a satisfação prometida;
orgasmo, contudo, é palavra,
idealizada,
com furor apresentada,
depois de proferida
resta a crónica adiada;
são assim as palavras:
pedras petrificadas,
ruído metálico,
gatilhos invisíveis,
balas escondidas,
perfurando fachadas incríveis;
vidas vendidas
a um culto fálico;
são assim as palavras:
ideias estereotipadas,
irresponsáveis,
inimputáveis;
voláteis quando ditas,
deturpadas quando escritas;
esquecimento
e interpretação
não os leva o vento,
guarda-as a palavra;
sonho desfeito,
leme interdito,
navio ancorado,
naufragando com um grito;
desespero alado
herói de um só feito;
são assim as palavras:
belas,
insinuantes,
obscenas feras,
a soldo das mais altas esferas,
decadentes
mas crentes;
são assim as palavras:
expressivas e mortas,
anteriores e ulteriores,
para cada tempo um só rumo;
múltiplos os sentidos,
única a direcção,
o gesto,
força despojada de protesto,
que animais resumem,
tardiamente;
são assim as palavras:
muralhas inexpugnáveis,
utopias inalcançáveis,
fortificações com guarita
para os guerreiros da vida,
denunciados pelos vendilhões a troco de tostões;
são assim as palavras:
aliadas ao poder,
à estética
de um escultor qualquer,
escravas;
que delas abusa,
narcisistas,
que as usa;
escravas
do auto elogio;
contradições,
analogias,
comparações,
metáforas;
são assim as palavras:
reinventadas,
sem e com,
mas no fundo,
já gastas,
divindades castas,
pagam a factura;
hemorragia sem cura,
febre de meia-noite;
são assim as palavras:
paraíso perdido,
corpo nu,
véu desajeitado,
sonegando à cobiça o cru;
pecado deitado
indiferente ao seu sentido;
são assim as palavras:
ilhas afundadas,
navios sem porto nem cais,
perdidos,
no oceano que separa dois ouvidos;
nesse espaço existe a mediocridade e a eloquência,
convivem a ignorância e a magnificência,
a palavra entrega-se à criatividade,
acredita na originalidade;
do espaço que sobra abdica;
aí refugia-se a existência,
faz sentido a essência
e o silêncio desafia a palavra;
silêncio
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra?
palavras
palavra
palavras
palavras
palavras
singulares silêncios,
unicidade de um só vazio,
pluralidade de um só trilho,
distante,
entre receptores surdos,
mudos,
no silêncio;
palavra
silêncio
palavra
silêncio
palavra

Silêncio.

André Simões Torres
26/09/2002

3 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Olá Compadre. Deste lado lê-se e sente-se e faz-se silêncio.
São magníficos os poemas do André. Obrigada por partilhá-nos connosco.

Primo de Amarante disse...

Uma espécie de filme que passa do fim para o princípio interpela-nos --«será que foste um receptor surdo e mudo?!...» A interpelação causa-nos um suor frio e deixa-nos um peso de uma irremediável tristeza. Ao menos que este testemunho possa ser útil!

Silvia Chueire disse...

O poema é um dos lugares mais concretos que a angústia atravessa. A angústia e todas as perguntas .
Também gostaria de tê-lo conhecido. E conversar, com o mesmo à vontade com que converso com os meus filhos.