14 outubro 2004

Brincar aos processos

É uma pequena mas reveladora história sobre o (mau) funcionamento da justiça penal:
Um cidadão comprou num estabelecimento do Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, um pacote de leite, que, chegado a casa, percebeu estar estragado.
Apresentou queixa crime na Comarca de Lisboa.
Algum tempo depois, um ilustre e empenhado procurador despachou dizendo que a Comarca competente era a do Porto, por aí se situar a sede da empresa produtora do leite da marca que o pacote ostentava.
Chegado ao Porto o processo, com o pacote apenso, outro ilustre e não menos zeloso procurador entendeu, apesar de tudo, que a competência era da Comarca de Lisboa, tendo suscitado o competente conflito.
Cerca de um ano e meio depois, o conflito foi resolvido no sentido de atribuir a competência ao MP da Comarca de Lisboa, para onde transitaram de novo o processo e o pacote apenso.
O narrador não sabe qual o desfecho final de tão intrincado e bizarro caso.
Tem uma certeza apenas: o pacote vazio já não cheira sequer a azedo, tresanda a inoperância e brincadeira de duvidoso gosto.

21 comentários:

Anónimo disse...

E os exemplos multiplicam-se...

josé disse...

Quase que posso apostar que o processo tem nesta altura vários apensos...e despachos doutos e fundamentados, com citações de ofícios circulares e referências múltiplas aos artigos 24º, 26º, 27º, 28º, 29º,30º e sgs do C.P.P. e ainda ao artigo 3º do C.Penal.
Terá ainda os despachos de vários magistrados e será, a meu ver, o espelho perfeito da perfeição do nosso Código de Processo Penal.
Não adianta vir argumentar com bom senso quando a lei o não tem...

Anónimo disse...

A Lei tem as costas largas...

Anónimo disse...

A Lei e o lei(te) também, neste caso....

Anónimo disse...

Procura-se "blog" que comente um caso positivo ocorrido na "Justiça" portuguesa.
Para variar, "just in case".

Cronista Oficioso da 3R disse...

Esta estória parece que envolve dois anónimos procuradores, mas será bom destacar que o verdadeiro protagonista é um Procurador-Geral da República ou um Vice-Procurador-Geral da República responsável pela demora de um ano e meio a proferir uma decisão (provavelemente simples) pois era a quem competia resolver o conflito de competência... Ou será que o problema é suscitar uma intervenção nos termos da lei quando o visado parece que precisa de ser ressuscitado.
A pertinência do post seria assim reforçada se fosse melhor intitulado, por exemplo: Procuradoria-Geral da República demora uma ano e meio para proferir uma decisão - será azelha ou azeda?

Anónimo disse...

"Provavelemente" este (silêncio ao) último comentário está a incomodar muita gente...

~

Anónimo disse...

Creio que será fácil ao autor do post recolher todos os elementos que permitam fazer uma avaliação do caso, incluindo o tempo que a PGR teria demorado a decidir. Parece-me que a questão central não terá a ver com a PGR mas com um caldo de uma cultura judiciária que sobrevive chutando para o lado.
Falando das estórias com finais felizes: há muitas, ainda que só agradem a uma das partes. É uma boa sugestão.

Anónimo disse...

Parabens :)) factos rigorosos e objectivos seguidos de comentários judiciosos e fundamentados. Viva a inteligência, a objectividade, o rigor dos factos, a transparência de procedimentos.

Parabéns mesmo estamos perante - já que se fala de pacotes de leite - a nata... de pessoas que provavelmente se vêem a si proprios como exemplos de absoluta imparcialidade.

Confesso que é retemperador ver nesta instância incursões tão dignificantes.... e exemplares.

PS- É possível recorrer desta instância retemperadora para outra estância? Por exemplo a da elevação dos principios ?

Anónimo disse...

Concorda-se... mas levar a sério o que é sério faz sentido não acha? Mesmo que se esteja a bloguear...

Cronista Oficioso da 3R disse...

Provavelmente (desta vez sem toques inadvertidos de teclado) não disse o que queria ou como queria:
a. a ideia do post não foi minha e na saudável diletância do blogar não ponho em causa a sua pertinência;

b. parece é que nos factos enxutos apresentados, existe uma clara violação de deveres e esta não será em primeira linha dos anónimos procuradores (aqueles que aparentemente seriam os responsáveis por brincar aos processos, mas que podem ter apenas apresentado uma posição juridíca contraditória) mas de quem demora por um tempo inaceitável a proferir a decisão determinante;

c. a lei tem as costas largas, mas nesta matéria não me parece que a paragem do(s) processo(s) derive da mesma - à partida não parece haver razão para actos urgentes não serem praticados na pendência da resolução do conflito de competência, mas mau será que quem o deva resolver também espere que a questão se resolva pela ~desenvolvimento do processo e consequente inutilidade superveniente da decisão;

d. se a ideia do post é, como penso, através do exemplo suscitar a reflexão sobre práticas judiciárias dificilmente sustentáveis numa sociedade moderna nada de criticável se lhe aponta;

e. no plano construtivo algo podia ser dito: os órgãos competentes pela resolução de conflitos (PGR e tribunais superiores) bem que podiam assumir de forma clara os critérios que adoptam informando os afectados, e a partir desse momento o suscitar dos conflitos de forma insustentada, impunha para além da rápida resposta ao conflito processual o accionar dos mecanismos repressivos quanto aos magistrados que violarem os seus deveres profissionais - mas se os órgãos superiores não assumem as suas responsabilidades, bem se pode continuar na simples crítica e desabafo.

f. a propósito da cultura de «passa culpas» e de «fuga à responsabilidade» terá algum fundamento a notícia de hoje do Correio da Manhã sobre a dança / fuga de desembargadores no processo pio? E em matéria de conflitos de competência o presidente da ASJP tem competência de tribunal superior para numa situação controversa dizer qual deve ser o colectivo (sendo curioso que a sua opinião peremptória seja oposta à dos outros contactados pelo jornal)?

Manuel disse...

Eu sei que não percebo muito de Direito, muito menos de Leis, sei que o Direito não é a tal ciência exacta que se desejaria mas parece-me que ou a coisa está muito mal desenhada ou o "Quase" ainda percebe menos que eu (admitindo de barato que esperneou de boa fé). É que pela mais elementar lógica - se há uma - e de umas consultas no DR "parece-me" que quem tem de derimir questões "geográficas" deste calibre não é o PGR mas sim os PGDs, pelo que se a ideia era (tentar ?) "enterrar" Souto Moura o que terá sido atingido foi... Dias Borges, putativo candidato a candidato a candidato a sucessor e Procurador Geral Distrital de Lisboa.

É a vida, mas como dizia, eu não percebo nada de Leis. E também não percebo, como alguém antes escreveu, o silêncio, e a ausência de esclarecimentos, ou se calhar percebo, vicissitudes das pequenas boutiques...

josé disse...

Caro anónimo a puxar ao sério:
Tal como Pinto Nogueira diz, em blogs assumo atitude diletante. De propósito e por também não me querer levar demasiado a sério. Mas às vezes levo. Por isso, por aqui, quando escrevo, apenas faço exercícios e tentativas de me levar a sério...

Assim,diga-me, por favor, o que leva mais a sério:

1.O pacote de leite estragado, vendido numa superfície do Sul, depois de ter sido embalado numa leitaria do Norte e transportado para o sul em camiões;
2.O problema da vítima que detectou o leite estragado, depois de o comprar na superfície e o ter deixado não se sabe onde nem como;
3.A questão jurídica de se averiguar em que local exacto se haveria de investigar o facto atinenente à avaria do produto lactio.
4. A lei processual que permite tantas interpretações que os conflitos negativos de competência acerca da competência territorial, em casos como este, podem multiplicar-se por todo o país.

Diga lá, por favor, o que lhe parece ser mais sério...

josé disse...

Lácteo...que vergonha.

Anónimo disse...

A paródia dos conflitos negativos pode parecer inócua quando se trata de um pacote de leite avariado, de artigos contrafeitos, de falsificação de veículos...
Já é mais preocupante quando - como se escreve no Expresso de hoje (16/10/04) - tal tipo de conflito (negativo, de competência territorial) entre Tribunais (TCIC e outro) leva à libertação de arguidos acusados por tráfico de droga.
Mas, neste caso, a culpa é do sistema, já sabemos.

Cronista Oficioso da 3R disse...

1. A entidade com competência para resolver conflitos entre magistrados do MP de dois distritos judiciais diferentes é o PGR (por força do CPP, lei a que suponho que está vinculado e sem que tenha proposto qualquer alteração da mesma, pelo que reforçdamente tem de cumprir a lei como a generalidade dos magistrados)
2. A entidade com competência para no âmbito do MP definir os critérios de resolução de situações duvidosas em termos de competência também é a PGR (ao que sei a mesma não tem sido exercida, pelo menos relativamente a casos mais controversos).
3. Referir os factos a propósito de um post alheio não visa ninguém, a não ser a verdade... que alguns tanto proclamam (digo isto sem acrimónia pois até aprecio muitos dos textos daquele Manel que me visou mas às vezes há exageros a propósito da teoria da conspiração que são acompanhados do perigo de se colocar num saco de inimigos quem a entrar nessa guerra até preferia estar na sua barricada!)

Anónimo disse...

José: o seu sentido de humor - talvez devido a tanto queijo :)) - não diria que está avariado, como no caso sub iudice, mas que, neste caso, parece ter ficado esquecido e passado do prazo de validade, desculpe que lhe diga que parece. Não percebeu ainda a seriedade das «coisas»? Leia os comentários do PN...e já agora do (seu) Manuel.

«A base da sociedade é a justiça; o julgamento constitui a ordem da sociedade: ora o julgamento é a aplicação da justiça». (Aristóteles)

a)«Quase»: você - quase :))) aposto - é um «aplicador» profissional da Lei do Direito da Justiça, e por isso lhe pergunto: Quando aplica a Justiça, em Nome do Povo, investiga-arquiva/acusa-decide com base nos seus pré-juizos? Decide sem factos? Basta-se com as opiniões? Dirá (estou segura) que não e então questiono ainda: Porque não faz o mesmo aqui? [Imagine que julgavam do seu caracter apenas com base - por exemplo - nos seus clarividentes comentários supra?]

b)«Quase»: será que já esteve profissionalmente envolvido em algum conflito negativo de competência? Há quantos anos? Pode dizer-nos? :)))

Manuel disse...

"Quase" releia o que escreveu, ok ?

"Esta estória parece que envolve dois anónimos procuradores, mas será bom destacar que o verdadeiro protagonista é um Procurador-Geral da República ou um Vice-Procurador-Geral da República responsável pela demora de um ano e meio a proferir uma decisão (provavelemente simples) pois era a quem competia resolver o conflito de competência... Ou será que o problema é suscitar uma intervenção nos termos da lei quando o visado parece que precisa de ser ressuscitado.
A pertinência do post seria assim reforçada se fosse melhor intitulado, por exemplo: Procuradoria-Geral da República demora uma ano e meio para proferir uma decisão - será azelha ou azeda?
Você bem pode vir agora discutir a questão em abstracto mas o facto é que você fulanizou-a e bem fulanizada, e não me venha com alegação de teorias da conspiraçõa em comentários na GLQL. Se a ideia não era essa - fulanizar, azar, porque foi isso mesmo que passou. E não sendo jurista deixe-me que lhe diga que no limite toda a responsabilidade é da PGR e do PGR mas "parece-me" que no terreno a não ser que as partes explicitamente chutem para cima a responsabilidade objectiva em casos com este do pacote de leite é dos PGDs por delegação objectiva ou implícita do PGR. Se o actual organigrama de funcionamento do MP funciona como deve ser, ou tem sequer cabimento nos tempos que correm, é outra história, e como já escrevi por mais de que uma vez eu acho que não tem mas, mais uma vez, você não foi por aí...

Cronista Oficioso da 3R disse...

1. O comentário foi a um post sobre uma alegada situação concreta, e nesta o órgão competente para decidir é a PGR.
2. Divergiu-se do sentido do post que ao adjectivar os anónimos procuradores, embora com ironia, assumiu um juízo de valor crítico sobre o desempenho dos mesmos, quando da estória, como foi contada, parece que há sim quem violou o dever de celeridade e foi por força das regras do CPP o PGR ou o vice-PGR (único em quem o primeiro pode delegar essa competência) por força do art. 266.º, nº 3, do CPP).
3. Comentar um post sobre um incidente concreto indicando quem na perspectiva do comentador no caso terá tido um desempenho insatisfatório não é fulanizar nem tecer considerações em abstracto é opinar (de forma que se tentou fundamentada).
4. Sublinhando que em relação aos procuradores do conflito em princípio um tinha razão pelo que agiu de forma adequada.
5. Quanto ao anónimo que me pergunta se estive envolvido em conflitos de competência, respondo-lhe que como operador de um sistema pouco claro, provavelmente, mas que sobretudo assisti a muitos. E em termos de funcionamento do MP lembro-me de um curioso, era PGR um outro senhor houve um conflito no inquérito entre MP's de distritos diferentes, o último procurador a suscitá-lo prosseguiu as diligências urgentes e acusou, decorrido cerca de um ano depois e já realizado o julgamento o vice-pgr pergunta para o processo se ainda interessa a resolução do conflito para espanto de todas as partes e do juiz do processo...

josé disse...

Anonymus anonymus:

Não descortinou sentido de humor no meu escrito?! Então a culpa é minha- que não lhe dei o toque qb. Para a próxima faço isto: :-)

Anónimo disse...

Tomas: não acha que deve completar as explicações já dadas no comentário que antecede confirmando junto da sua «fonte» :)) (um procurador anónimo que suponho foi o que não pretendeu azedar o processo) das exactas razões da demora de um ano e meio? É o mínimo - acho eu - para retemperar esta sua incursão de cariz (ao que percebo do que agora nos veio dizer) pedagógico sobre os maleficios de alguns conflitos (e de alguns conflituosos) negativos...além de que poderia servir de explicação para o Quase.

Se puder esclarecer com factos objectivos na sua totalidade a história que narrou... seria, estou certa, muito bom. Afinal o que é importante é verdade não as meias verdades ou verdades incompletas.

Quase: o meu amigo quando colocou os seus esclarecidos (e reicidentes) comentários tinha (tem) conhecimento integral dos factos? Sabe onde ocorreram as demoras e porquê? Se sim documente...assinale...demonstre.. Se não ... peça desculpa e... passe a pensar menos no passado. Obrigada.


José: porque o assunto me pareceu sério terá sido por isso que não apanhei a nota de humor :)) de qualquer modo agradeço o esclarecimento e registo a seu crédito ;)