Foi bom para as nove pessoas que não tiveram de se deslocar propositadamente a Coimbra. Foi bom para mim, que arejei, experimentei de novo a sensação de trabalhar num gabinete com mais de 7 m2, revisitei Arganil, o mesmo lugar húmido, no dia em que uma menina tinha colocado na montra das lojas a sua fotografia com a cadela Serra da Estrela perdida – “um ano de idade, grande, ladra como cão adulto” -, que me sabe ainda aos dias diferentes e à tigelada das festas de Esculca para onde, citadino, ia a pé com os meus pais porque a estrada acabava na vila. Ou o Procurador da República do Tribunal de Família e Menores de Coimbra “on the road”, agora não na onda de Kerouac, mas para instruir inquéritos tutelares educativos.
O Jorge foi no tractor buscar um metro de areia para o pai acabar de assentar a parede que as galinhas precisavam para terem uma nova casa – uns dias mais tarde, já com 16 anos, teria sido detido; assim, ficou a chamada de atenção porque, de educação para o direito, basta. O Eduardo deu um murro a um colega na escola, ciumeira, gostavam os dois da mesma rapariga, eram amigos e já são outra vez, da mesma equipa dos juvenis de futebol – o grande problema é que, com a vergonha diz ele, este rapazola de 14 anos nunca mais foi às aulas e este ano nem se matriculou; mas estar ali permitiu juntar a advogada que o defende, os pais e a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, e estou convencido de que em Janeiro vai ser outra vez colega de turma do Álvaro. O Frederico, que os pais pensavam que tinha ido dormir a casa de um colega, fez uma directa com os amigos depois da festa do fim do ano escolar, o primeiro em que saiu da aldeia, e de manhã cedo pegou numa motorizada alheia para ir para casa, a corta-mato – a brincadeira ficou cara aos pais e ele, que já pediu desculpas ao dono, vai ter de se portar direito.
Direito quanto baste, conhecimento da vida e bom senso em doses reforçadas. Foi a receita da manhã. De facto, a suspensão do processo pode ser a “forma preferencial de términus do processo tutelar”.
O almoço estava à distância do Piódão.
Estrada estreita, a serpentear pela Serra, a crista do monte e o vale profundo ora à direita ora à esquerda, sempre a vista larga, o voo do Açor que esbarra na imponência da Estrela. O sol ainda não conseguiu penetrar nos recantos, derreter o gelo nas curvas mais apertadas. Mas faz o vale libertar uma espessa nuvem, como se ardesse.
Quando se começa a descer e o destino já só pode ser um, acentua-se, talvez por isso, aquele sentimento de liberdade que nestas ocasiões acompanha a solidão, até que se começa a ver Piódão, lá em baixo, aninhado no regaço da Lomba de S.Pedro. Do xisto sobressai a igreja, branca, mas também o vermelho da telha que o vai substituindo nos telhados. No casario, conservado, o alumínio disfarça bem nas janelas mas já não tão bem nas portas, e o ferro trabalhado e pintado de azul cativa o olhar. Em frente, no alto, uma Estalagem do Inatel a que também deve ter faltado o estudo de impacto ambiental.
O almoço foi frugal, a broa fez as honras da mesa.
Em 90 quilómetros estava num Lar de Jovens às portas de Coimbra. Depois, voltei aos 7 m2.
21 dezembro 2004
sexta-feira, dezassete
Marcadores: Rui do Carmo
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2 comentários:
Gostei da crónica, da forma agradável com que nos dá conta de (no mínimo) três Incursões: na retemperança dos 7m2, nos lugares da memória e numa outra forma de estar na jurisdição de família e menores.
Venham mais!
Gostei e muito, de ler este texto.
Abraços,
Silvia
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