07 março 2005

A Sucata da Justiça

(...) "não são eles, de facto, a verdadeira imagem do actual estado da Justiça portuguesa?"

Pergunta-se e ilustra-se, no Random Precision, em mais um oportuno e lúcido post de Luís Grave Rodrigues.

6 comentários:

josé disse...

Lê-se no preâmbulo do D.L. 31/85 de 25 de Janeiro:

" Através da Lei nº 25/81 de 21 de Agosto, nomeadamente pela aplicação dos artigos 10º a 14º, pretendeu evitar-se que os veículos automóveis apreendidos no decurso de um processo crime permanecessem longos períodos sem utilização, ficando reduzidos pelo tempo, e muitas vezes, pela intempérie, a destroços sem utilidade.
Este objectivo não foi alcançado, além do mais em virtude da necessidade do despacho judicial que se tornava indispensável para se iniciar tal utilização.
Encontravam-se assim , apreendidas até há pouco tempo várias centenas de veículos automóveis(...)
O presente diploma visa obviar á situação descrita(...)"!!!
O diploma foi assinado por Mário Soares, Mota Pinto, ALmeida Santos, Rui Machete e Ernâni Lopes.

Como se pode verificar pelo exemplo do postal, resolveu...e há vinte anos que o assunto é notícia!

Como é que se faz agora?
Assim:
"Decorridos 90 dias sobre a apreensão, em processo crime ou de contra-ordenação, de um veículo automóvel susceptível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, o agente do MP(...) após exame e avaliação, com recurso a meios fotográficos, se possível (!), comunicará á Direcção Geral do Património do Estado, as características do mesmo(...)
A partir da comunicação o veículo automóvel fica à disposição da DGPE(...)
O dono será notificado de que o veículo foi posto á disposição da DGPE e de que poderá requerer ao JIC que aprecie provisoriamente a susceptibilidade de perda, a final, a favor do Estado.Se for declarado insusceptível de perda, é restituido.

Temos assim, uma burocracia nascente e uma corrente jurisprudencial: o JIC é quem mais ordena.
Sendo declarado perdido, ao longo de um processo que se pode arrastar anos, a carcaça restante dará para fazer postais humorísticos como o do LGR! :-)

Mais interessant ainda:

O MP tem a incumbência de vender os objectos perdidos afavor do Estado, todos os anos pelo mês de Janeiro. É assim que manda uma lei de 1944, em formato de Portaria ( 10765 de 18.8.44) de uma outra lei de 1926 em formato de Decreto( 12487 de 14.10.26) e finalmente do artigo 1321 nº1 al. f) do Código das Custas.
Ora bem: alguma jurisprudência rebelde a anos e anos de boas práticas :-) resolveu agora dar o dito por não dito e deixou de se considerar competente para apreciar judicialmente a venda de coisas perdidas a favor do Estado...diz que o Estado não carece de tutela jurisdicional para promover essa venda que lhe faltará por isso interesse em agir e que de todo o modo, os tribunais não são competentes para esse efeito! Na essência, a argumentação é no sentido de inexistir um conflito de interesses que um juiz possa dirimir!
Estamos assim: o processo voluntariamente jurisdicional ou mesmo especial, não tem hoje razão de ser, perante a descoberta,recente,dos senhores juizes!

Quem vai então vender os objectos?!

Who cares?!
Entretanto, a imagem da justiça simbolicamente degradada, faz as delícias de quem olha para o retrato que é, afinal, o exemplo simbólico da ineficácia de todas as reformas que se vão fazendo, sempre com a melhor das intenções mas esquecendo o básico: a burocatização e a preocupação excessiva com assegurar direitos, liberdades e garantias redunda paradoxalmente e muitas vezes, no oposto daquilo que se pretende!

Deve haver por aí, algures, uma lei do comportamento humano que explica este fenómeno! É pena ninguém se lembrar de a descobrir...

josé disse...

O problema da "desapreensão com injustificada dificuldade" prende-se com um sentimento prosaico, bem expresso pelo filósofo José Gil, (agora vilipendiado depois de adulado...). É o MEDO! O medinho de ficar mal no retrato processual para inspector ver! O medinho estúpido de pensar pela cabeça própria e perceber que a lei é feita para se aplicar com senso comum que geralmente é o senso bom. E perceber que seria preferível resolver logo a questão dos veículos ou objectos apreeendidos, obrigando os OPC a fazer o que é preciso: fotografar; examinar, avaliar e perceber se há efectiva e real susceptibilidade de perda. COmo isto acontece geralmente em casos de furto, falsificação ou droga, torna-se complicado, pois entra a PJ; entra a burocracia e a inércia faz o resto...

Além disso, o ´inspector´ inspeccciona de três em três anos ( ou de cinco em cinco; ou de sete em sete...) e em vez de reconhecer esse hiato como impeditivo de uma pedagógica formação ao longo de um tempo já longo, lança anátemas silenciosos, através da análise recolhida em gabinete e "bocas" por fora, em convívios com os pares: " epá! Vejam lá que na comarca tal, fui inspeccionar o delegado/a e vi lá um processo em que o tipo/a deixou um carro esquecido durante anos a fio, num processo já em arquivo...!" Epá! Fui ver mais e não era só um! havia três! E motas! E facas!"
"Não pode ser! Não pode ser! "
Isto é dito com ar de quem diz "estou chateado, claro que estou chateado!" E são estas pequenas coisas que afligem os maçaricos da profissão e também os veteranos...

Enfim...parece que estas coisas da justiça tem que levar uma volta bem grande!
As culpas não residem apenas na esfera de baixo...

PS: reparo agora que faltei ao prometido silêncio. Que se lixe!

Primo de Amarante disse...

José: receba as minhas calorosas saudações. Já tinha saudades suas. O silêncio em si representa para mim nostalgia de neurónios a funcionar. Vilipendiar José Gil (se isso aconteceu!...)só por estranha brincadeira. O último livro"Portugal, Hoje - O medo de existir" é um autêntico tratado de problematologia.Em torno do problema - "que homem queremos?" --José Gil obriga-nos a colocar imensos problemas. E, como o José sabe, as boassoluções resultam de problemas bem colocados.
Nada sei dedireito, mas as fotografias colocadas são, em relação à justiça, um discurso perlocutório, atingem o fundo da questão. Este assunto "dá pano para mangas", não é assim que se diz?!...

josé disse...

Ah! Caro compadre! Não diga nada, mas já entrei a comentar por aí dois postais sobre assuntos candentes: o Sindicato e as celebrações eleitoraleiras de juizes que não sabem conter-se na reserva exigível.
COmo vê, para arranjar amigos de peito, não há melhor...

Quanto ao mais, o filósofo Gil, já começou a provar do veneno que descobriu na sociedade portuguesa: disse numa entrevista à Pública que "Em Portugal a inveja não é um sentimento, é um sistema".
Seja o que for que isso queira dizer, parece-me muito! É um retrato de um Portugal feito de mediocridadezinha e de preocupaçõezinhas pelo tachinho ao fim do mês e pelo vizinho que parece ser aquilo que nós não somos...e talvez gostássemos de ser.
Assim em abstracto não se nota, mas passando para os meios em concreto fica logo à vista o bichinho da peçonha e talvez o GIl tenha razão.
Há falta de espíritos abertos e vistas largas, de coração ao alto e palavras soltas! Conices é o que se vêem mais, e isso é só um eufemismo...
Sei lá! Se calhar nem é tanto assim e sou eu que exagero.

No resto, retribuo as saudações calorosas.

Primo de Amarante disse...

Caro José: só há linha justa: é, como diria José Régio, criar desassossego.
Um abraço.

Kamikaze (L.P.) disse...

Tem razão o compadre e o José, lá no fundo, bem o sabe, por isso de vez em quando não resiste e ... que se lixe! É assim mesmo José, os seus comentários sempre foram muito mais que um exercício crítico-opinativo, atendendo ao manancial de informação útil que geralmente incorporam. Por isso fale, escreva e...que se lixe, a bem da Nação!:)

Sobre o tema do post:
o actualmente procurador-geral adjunto Domingos da Silva Carvalho de Sá passou a letra de forma, há já bastante tempo, um "guião" sobre os "OBJECTOS" - sua apreensão e destino. O último exemplar que conheço diz no final:
"Póvoa de Varzim, 3 de Fevereiro de 1994
Integralmente revisto e actualizado em 30 de Setembro de 1996 e 25 de Maio de 2002."
Trata-se de um útil auxiliar no dsbravar dos caminhos burocráticos já acima referidos, ainda que muito pontualmente desactualizado.
Desconheço publicação e não são muitos os magistrados do MP que tiveram acesso a estes apontamentos (69 áginas), que circulam, quando circulam, pela passagem de fotocópias. É que, muito amavelmente, o Dr. Domingos de Sá disponibiliza, por vezes, pessoalmente, uma cópia a colegas do MP - depois de os inspecionar ... :(

Aqui fica uma sugestão, a bem da igualdade de oportunidades e da difusão de boas práticas nesta matéria: a divulgação do trabalho, p. ex., por via do site da PGD.