24 abril 2005

A véspera

eram os vinte anos vogavam
sobre as águas do mondego
as palavras acesas nas frias
douradas tardes de novembro
nas serenas noites de junho no sossego
da memória os escritos antigos:

coimbra estende as ruas
com uma vaga inquietação.

o rio ainda vai seco e o verão já passou
já passou e a cidade adormece com o rio
que a formou
detrito sobre detrito.

isola-se no silêncio da colina
a cidade
isola-se - mulher estéril mulher vazia.

o rio ainda vai seco e o verão já passou

era outubro, digo
outubro de mil novecentos e sessenta e quatro

de repente é noite:
fecho olivro
um livro de poemas
e da janela olho as casas
- as luzes vagamente foscas -
e eu
que sei do silêncio (...)

era um espaço onde havia amigos
eram os vinte anos também a guerra
baça e sombria como morrinha
encharcava até aos ossos:

de cinzento-vermelho
vestiram-se as árvores
de pedra e veludo
ergueram-se os homens
na estrada até lisboa

na estrada até lisboa
o corpo de sangue do horizonte
caíu ao longo dos braços
perdeu-se no chão
mordendo a noite

mas de lisboa os homens partem
um vento morno
um tempo de esquecimento
um vazio de metal nos dedos
na estrada até lisboa

e no silêncio das fontes
as mãos navegam
no silêncio das fontes em alcobaça.

agora só há conhecidos
os amigos doem nos ossos
dormem na vidraça do pensamento:

caminhaste: na praia um oceano
ainda grita
a tristeza da terra que é tua
e no rosto marcaram-te o silêncio dos punhos.

pesam na sombra da memória
os papéis amarelecidos
novembro de mil novecentos e sessenta e três:

domingo

1. sou um objecto
algures a meio da manhã com um livro na mão.

2. a manhã é cinzenta e eu acordei triste:enlouqueci
aos poucos no meu quarto onde passeio descalço.

3. sou um animal inquieto e acabado de nascer.

eram os vinte anos os nomes na minha
boca as vísceras da guerra o coração
do poema nos verdes anos:

setembro tem
o cheiro da terra e da resina
o sabor total da uva
como o teu corpo novo de menina.

e depois os livros o josé gomes ferreira
escrevendo nos eléctricos:"Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos (...)"

a chuva cai em cada palavra de pedra
como se as pedras amassem um tempo antigo:

no meu país
viajo como um estranho
procuro na terra a semente ou raíz
- mas nem semente nem raíz
nem fonte que as alimente

e na cidade
o meu país é mais estranho ainda
porque nas pedras nos abrigamos e as pedras
permanecem mudas.

mas agora busco o sopro do silêncio
a primeira a única palavra: o aleph os fecundos
dias do nascimento e da morte


Anto
Dezembro /2003

3 comentários:

Silvia Chueire disse...

Obrigada pelo poema que você nos deu a ler. Obrigada.


Silvia

Primo de Amarante disse...

Um poema que nos envolve. Estamos lá como fizessemos parte de cada palavra do poema.
Lindo, mesmo muito lindo e onde a estética se confunde com a emoção de um sonho que ainda nos mantém vivos.

Amélia disse...

Belo poema, este de Anto (como Ant+onio Nobre, o que dizia António, que tristeza ter nascido em Portigal?).Muito menos belo, mas também si«obre o antes do 25 de abril da nossa Alegria, um poema muito antigo meu:


Belo e difícil este país de não
Ternura e sol de meu amor
Reino de fantasmas de navios
Dedos gigantes abarcando o mar

Ah pudesse eu agarrar no meu país
E dá-lo todo todinho a esta esperança nova


(Amélia Pais)

Nota: escrevi estes versos em 1969. Mas não sei se estarão assim já tão datados...