24 maio 2005

Aposentação da Prof.ª Miriam Halpern Pereira

No meio da euforia benfiquista que persiste (parabéns, mas já basta) e do défice que ninguém fez, um facto que não será decerto notícia: a última lição da Prof.ª Miriam Halpern Pereira.
Uma lição notável sobre a história e as outras ciências sociais, entrecortada com algumas notas biográficas bem a propósito. A Faculdade de Letras nos anos cinquenta, em que se apreendia menos do que no secundário, onde alguns professores, às escondidas, ainda falavam nos Annales. De como o director Gonçalves Rodrigues, comissário nacional da Mocidade Portuguesa, a chamou para lhe exigir que revelasse quem a tinha metido na temível comissão de recepção aos caloiros. De como perante a recusa, pôs a correr pela faculdade que era uma perigosa comunista. E ainda há pessoas que dizem que a universidade de antes do 25 de Abril é que era boa, concluía a professora (se calhar estudaram no estrangeiro…).
Como a instauração da democracia abriu novos horizontes, depois de uma longa emigração em França, mas quanta resistência e incompreensão. A quem se doutorara na Sorbonne, exigiam-se aqui exames ridículos para a equivalência, atrasando a carreira docente. Depois, a luta pela abertura dos arquivos dos séculos XIX e XX, que só eram acessíveis aos amigos. De como era preciso ir falar ao presidente da Assembleia da República para se consultarem documentos das cortes vintistas.
Se muito arquivo está hoje catalogado e acessível, devemo-lo à tenacidade da Prof.ª Miriam, que travou uma luta incansável que culminou com a sua passagem pela Torre do Tombo.
Como lhe devemos o seu papel pioneiro no reconhecimento da história económica dos séculos XIX e XX como objecto de investigação histórica. O “Livre-Cambismo e o Desenvolvimento Económico”, publicado poucos anos antes do 25 de Abril foi um marco, numa altura em que rareavam estudos semelhantes em Portugal.
Embora esperemos que continue os seus trabalhos, a Prof.ª Miriam vai fazer muita falta, face ao panorama actual da investigação do século XX e sobretudo do Estado Novo, em relação à qual deixou alguns recados.
Alertou acertadamente contra os perigos de investigações centradas unicamente nos arquivos policiais e no espólio das figuras do regime, que por maiores cuidados que se tenham, acabam por se inserir na sua lógica discursiva. Falou do sempre necessário cruzamento de fontes, das memórias dos resistentes antifascistas. Da dimensão do “não dito”, do “medo” em que vivia a sociedade portuguesa e que não vem nas fontes do regime.
Outro alerta para a história entendida como ciência de análise do discurso, único ou principal objecto do investigador, para o qual a realidade é nada.
Claro que não estava lá comunicação social nenhuma. O que interessa são os historiadores da “ganhunça”, que tratam com respeito as figuras do Estado Novo, em nome da objectividade científica, que passeiam pelos “media” as suas simplificações aldrabadas e que têm escravos a investigar por eles nos arquivos.
A Prof.ª Miriam pertence a outro mundo, o das convicções, pelas quais sofreu o exílio e o da seriedade científica, sem concessões ao que está a dar. Bem haja !

1 comentário:

Kamikaze (L.P.) disse...

Parabéns ao Rebeldino Anaximandro pelo excelente post que se espera (re)inaugure actividades incursionistas mais regulares... :)