Canhoto, desajeitado e ignorante
À partida o cronista vê-se forçado a confessar que é canhoto. Canhoto, de nascença, sem apelo nem agravo. Chuta a bola com o pé esquerdo, usa a mão esquerda para lavar a dentuça, idem para jogar ping-pong (já lá iremos) etc...etc... Este facto tornou-o desde sempre alvo de piadas fáceis que isto de pertencer a uma minoria não é pêra doce. E na escola primária de Buarcos as tarefas nobres (escrever, desenhar e fazer contas) competiam ao trambolho da sua manápula direita senão a régua cantava na mão prevaricadora. Durante anos a letra do cronista foi uma inenarrável série de rabiscos que provocava a gargalhada dos ignaros e o espanto do senhor Pannoyatis que, ao enxergar aqueles caracteres pela primeira vez, persignou-se ao contrário (era ortodoxo) e jurou a pés juntos que aquilo lhe lembrava o linear B de Creta. E os desenhos laboriosamente traçados a lápis de cor adquiriam fulgurâncias dignas dos neo-selvagens dos anos 90, infelizmente desconhecidos e portanto absolutamente desvalorizados nessa época de noite cultural.
Ser canhoto nesses primeiros anos foi uma maldição: o mundo está feito para os dextros. O mundo e as maçanetas das portas que põem um canhoto a fazer força ao contrario para a rodar. E o mesmo sucede quando se usa uma chave de parafusos.
Aos dezasseis anos tive, porém, a primeira compensação: no colégio para onde fui enviado pela pátria potestas havia umas mesas de ping-pong para uso dos prisioneiros, digo alunos internos. A direcção escolar lá pensava que muito exercício físico distrairia os alunos de outras práticas menos exaltantes. Ora para alguém se manter a jogar tempo que se visse (e o divertisse) era mister ganhar os jogos. E foi aqui que a esquerda (a mão, leitor José, a mão...) me ajudou acima de toda a esperança: os rapazolas que se punham do outro lado, habituados a jogar só com dextros, eram varridos pela minha esquerda. As bolas saíam-me da mão condenada para o lado errado deles, os puxanços então eram absolutamente fatais. Aquilo era abadas sobre abadas, até um júnior do Benfica, aportado ao colégio sabe-se lá por que malfeitorias, sofreu os mais humilhantes capotes da sua vida de pingponguista Dezasseis anos de humilhações esfumaram-se graças ao são exercício físico e a uma mesa de ping-pong.
O segundo pecado que cedo se atribuiu ao escriba foi o de ser desajeitado. À uma porque era canhoto. Os canhotos são como os dromedários: para o vulgo falta-lhes sempre uma bossa. Amigos, conhecidos e familiares que me viam manejar qualquer instrumento acusavam-me de torpeza e apressavam-se, os mais amáveis, a dizer “larga isso que faço eu”. Sobre ser torpe, o escriba sempre foi preguiçoso, de modo que se algum preopinante se oferecia para uma tarefa em sua substituição, não recusava. Depois, segundo defeito, o escriba era um leitor fanático. Ora é bem sabido que os leitores são tidos sempre por gente pouco dada a coisas práticas. Como, entretanto, de canhoto de pata, passei a canhoto de convicções, tornou-se claro, para o meu pequeno círculo de amigos que estes dois defeitos juntos se potenciavam e me convertiam, por muito sapiens sapiens que fosse, no primeiro vero homo inhabilis.
De nada me serviu saber montar e desmontar a primeira “Underwood” que tive e que, comprada em quinta mão, tinha mais pannes do que o comboio da Lousã. Quando me viam pregar um prego com o martelo na esquerda, uivavam um ai estremecido. Se o prego entrava, prognosticavam que caía logo que nele pendurasse qualquer coisa. Se os quadros, e são cento e muitos, continuam pendurados, é por milagre dos três pastorinhos.
Poderia continuar a dar sucessivos exemplos da capitis diminutio (esta é só para o nutrido grupo de juristas que frequenta este blogue) com que me mimoseiam mas fico-me por uma girândola final. Aliás duas.
A primeira, e isto já têm a ver com a 3ºa parte do título desta crónica, tem por pano de fundo essa novidade que se chama televisão por cabo. Pela mesquinha razão de querer continuar a usufruir da RAI e do ARTE entendi dever ter uma “power box”. Todavia, como nunca achei graça à seriação de canais que a tv cabo propõe, resolvi elaborar a minha listagem de canais eliminando de passagem alguns que me não interessavam. Trata-se, lendo o papel das instruções, de algo ao alcance duma criatura moderadamente catatónica. Lido que foi o papelucho instrutório, proferidas as azedas observações da praxe sobre o estilo da exposição, agarrei no comando e aí vai disto. Um a um, fui seriando os canais a meu gosto, eliminando patacoadas como o “blomberg” e similares e atirando para os cafundós aqueles canais em que só por insónia absoluta alguma vez me atreveria a zappar. O problema, aliás esperado, sucedeu quando eu quis substituir a lista original pela minha. Dez vezes tentei e dez vezes levei a nega da praxe. Desesperado liguei para a “assistência” da tv cabo. Ao fim duma eternidade fui atendido por uma criatura que me disse para fazer o que eu já tinha feito. Com evangélica paciência advertia-a que já tinha dado esse passo. Duvidando, convidou-me a repetir enquanto aguardava do outro lado da linha. Repeti. Tiro na água. Para encurtar, fui sendo passado de assistente para assistente e progressivamente tratado como um débil mental com menos miolos do que um protozoário. Farto daquele circo, exigi em alta grita que viessem até minha casa. Que eu pagava fosse o que fosse. Depois de múltiplas insistências, cá me apareceu um rapazola, que depois de me olhar como quem olha um saco de batatas, anunciou que aquilo era uma “fervurinha”.
Envergonhado, sentei-me numa poltrona enquanto o “expert” dedilhava o comando da power box. Ao cabo de meia hora, o optimismo do manguela estava bastamente reduzido. Na dobra da primeira hora resolveu telefonar à comandita da tv cabo com ar levemente enfiado. No segundo tempo, suava, murmurava inconveniências e redobrava angustiados telefonemas para todo o bicho careta que apanhava a jeito. Finalmente, com ar abjectamente rendido conseguiu que alguém lhe explicasse que as instruções que ele e eu lêramos diziam respeito a um modelo anterior e que havia que fazer já não sei que manigância. Despediu-se de mim como quem se despede de um colega mais velho e juntos dissemos da tv cabo o que Mafoma não disse do chouriço. Vitória por KO!
Segunda e última salva de 21 tiros, toda ela dedicada, à amabilíssima Kamikaze minha explicadora de “bloguesofia”. Saibam, leitoras gentis, e demais passantes, que como um mal nunca vem só, além doutras, tenho a bizarria de usar Macintosh. A supracitada K., quando soube disto, escreveu que já estava mesmo à espera duma extravagância deste teor. E com a resignada paciência que se usa para com um ancião pouco dado a estas coisas lá me tem vindo a acudir neste doloroso parto de escrevinhar para o éter. Todavia nem mesmo, ou até por isso mesmo, uma Kamikaze consegue aturar um matumbo da minha (fraca) espécie. E quando finalmente lhe pedi para me ensinar a pôr itálicos, cores variadas e letras diferentes nos pobres textos que vou parindo com o suor das enfraquecidas meninges, ela retorquiu-me, com um sarcasmo elegante mas eivado de reprovação, que o facto de eu usar um mac não me incapacitava de ver uma tal função compose e as fonts e os itálicos enfim tudo o que aparecia na página do blogue. Abatido pela vergonha e vergado à lembrança de alguns antigos insucessos lá parti, de corda ao pescoço, à procura dessas maravilhas tecnológicas porque “está tudo lá no écran...mesmo de um Macintosh – a sério!” (sic).
Duas longas horas procurei desesperado as tais “funcionalidades” (re-sic) no tal écran. Niente, rien, nichts, népia de népia.
Em desespero de causa telefonei para a Apple. O primeiro desinfeliz que me atendeu apanhou logo para tabaco. “Ouça lá ó seu mariola. Onde raio meteram a funcionalidade compose e toda a restante parafernália de que me fala a coordenadora do meu blogue neste momento ausente em terras do falecido Josip Broz Tito?”
Aturdido por este tom ameaçador, o meu interlocutor murmurou que provavelmente o browser (um sinistro criaturo chamado safari ) não teria essa valência e que seria necessário recorrer ao Internet Explorer ou a outro colega, Firefox, raio de nome!, com as mesmas potencialidades. De todo o modo como é sexta feira e a hora já não se presta que deixasse isso para mais tarde, ou seja para depois do 25 A. E a partir desse dia tudo mudou nos meus textos como já devem ter reparado.
Entretanto a rainha da ironia pirou-se para a Eslovénia pelo que não posso varrer a testada e mais uma vez salvar-me da acusação de ignorante com que tão amigável quão perfidamente fui atingido. Fica para a sua volta, ilustre coordenadora, que a vingança é como o sável de escabeche: sabe melhor fria!
Finale presto gioioso: com o browser Firefox isto é como mergulhar de chapa. Viu, Madame Kamikaze?
08 maio 2005
Au Bonheur des Dames nº 5
Marcadores: Au bonheur des Dames, mcr
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5 comentários:
Na mouche, caríssimo mcr, ups! Porta-aviões ao fundo, AH AH AH, cautela consigo!De futuro tentarei ser mais gioiosa e menos jocosa...:)
E essa da "esquerda"...tem pano para mangas!
Quer começar o corte?
Ando com vontade de lhe tomar as medidas e traçar a giz, o círculo que se impõe.
No outro dia, motivei-me para esportular quase 7 euros por uma número especial de "Les Collections de l´Histoire", sobre "200 ans de combat- Le grande rêve du socialisme" e a leitura é estimulante. O tempo também é propício, pois Maio foi sempre um mês de grandes acontecimentos e o (re)nascer da folhagem nas árvores, com as flores a acompanhar a sinfonia campestre, torna-se um bom quadro para pintar a manta de retalhos.
Além disso, aviso já que tenho também em meu poder, outra arma perigosa: uma revista Leer, de Outubro de 2003, sobre "Qué Izquierda" e outras armas secretas...a mais perigosa das quais será talvez o atrevimento.
Ou seja, o tempo é de guerrra...de ideias!
Também tenho ( e até já o li no essencial) esse número da col de l'histoire. Vou tentar ver se tenho essa "leer", que me soa. Vejo que temos em comum uma imensa curiosidade, coisa que me deveria irritar pois gostaria de dizer que a curiosidade (intelectual) é de de esquerda. Mas não, não é nem me sinto irritado. Antes: sinto-me estimulado. meu meu caro José, aos 18 anos lia os primeiros números do "Tempo Presente" sabendo que era uma revista de direita. Mas publicava Ezra Pound!...Como provavelmente V. lerá Pablo Neruda. Nem V nem eu ficamos diminuídos por ler o que é bom e por abominar o medíocre. uso gravata (e se possível boa e inglesa; nao suporto as italianas. E aos fins de semana de inverno uso um lenço de pescoço: nunca me preocupei pelo facto de quem me enxergar poder pensar que sou um menino da Foz ou o seu correspondente actual. A única discussão interessante tirando o bridge é a de ideias. Chute que eu cá estou, canhoto de pata e de cabeçorra. saravá, meu caro José.
ps: já me esquecia: o círculo de giz de que me fala é o do Bertolt Brecht? com que então a ler os comunistas alemães, hã?
De facto..."como é difícil governar!"
Fica aqui, a ponderar o dia de amanhã, o dito que rebusquei por aí...e serve como mote para a conversa se tal se proporcionar ( se o tempo,a disposição e o serviço o permitirem, quero dizer)
"Dificuldade de Governar -Bertolt Brecht
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra.
E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?
Bertolt Brecht
Tradução de Arnaldo Saraiva"
Como isto é datado, só mesmo "cum grano salis" pode ser lido.
Eu, por mim, leio mais "tongue in cheek".
Um post delicioso, este. Foi mesmo um prazer.
As aventuras e desventuras de um canhoto somadas ainda à dificuldade com a tv a cabo e o navegador...Ah, diverti-me. Obrigada.
Abraços,
Silvia
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