Apesar de toda a informação disponível e do rasto de destruição que ainda se deixava ver no centro histórico de Dubrovnick, os olhos, alagados em paisagens da costa da Croácia e do Montenegro, não estavam preparados para o que os esperava na zona muçulmana da Bósnia i Herzegovina.
Os ataques da Sérvia à Croácia tinham perdurado por muito menos tempo (até àquele dia em que os respectivos presidentes, tendo decidido partilhar gastronomia, se entretiveram, à sobremesa, a partilhar também a BiH, logo ali desenhando, num qualquer guardanapo de papel, o seu novo mapa - este bocado para mim, aquele para ti) . E a Unesco e a UE tinham já providenciado por muito dinheiro para a reconstrução de toda a muralha de Dubrovnick (mais que justamente classificada como património da humanidade) e a reconstrução dos edifícios intra-muros (os mais devastados) progredia visivelmente.
Na zona muçulmana da BiH, atacada desde então já não apenas pelos vizinhos sérvios da Sérvia e pelos seus ainda mais vizinhos sérvios da Bósnia, mas também pelos também duplamente vizinhos croatas, não ficara pedra sobre pedra.
Em Mostar, uma cidade de novo cheia de vida, a marca deixada pela dominação otomana permanece viva na religião, na cultura, na gastronomia, na arquitectura. No centro histórico, qual cidade turca, com o seu bazar e as suas mesquitas debruçando-se sobre o rio ofuscante do verde das águas e das margens, pejadas de pequenos restaurantes empoleirados em socalcos, a par da reconstrução faz-se questão de manter a memória da tragédia.
Na ponte outrora medieva, que ligava a zona muçulmana de Mostar à zona de predominância croata, totalmente destruída pelos bombardeamentos croatas e agora reconstruída em "estilo" pastiche, jovens mais ou menos musculados exibem os seus atributos, aparentemente na mira de suscitar um donativo que justifique o arriscado mergulho nas águas de perigosas correntes e baixios, quiçá na mira de se exibirem, apenas.
Em Mostar, quer no centro histórico quer na zona mais moderna que a envolve, quer nos bairros residenciais, quer em qualquer parte por onde se caminhe ou olhe, prédios inteiros completamente destruídos e abandonados convivem com aqueles outros (todos os demais!) que ficaram habitáveis (e habitados) apesar de todas as suas paredes exteriores terem sido alvejadas por todos os tipos de projécteis. Constroem-se novos edifícios e aqui e ali reparam-se as fachadas mas, ao lado, o testemunho do massacre permanece.
Ao longo das estradas, nos campos, muitas casas novas, lado a lado com aquelas (todas!) destelhadas e de que só restaram as paredes exteriores, esburacadas como queijo suíço e, aqui e ali, aldeias inteiras ou casas isoladas totalmente abandonadas - porque reconstruir nem sequer é viável.
Já um pouco mais distantes dos campos de Mostar, a caminho de Sarajevo, pisados os olhos por esta paisagem do horror contra o esquecimento, a beleza impôs-se: durante horas acompanha-nos, mesmo ali à beira da estrada, em curvas e contra-curvas, um largo rio de transparentes águas cor esmeralda e margens ora escarpadas ora frondosas, ao longe mas tão perto, a alvura dos altos picos nevados, em telão de fundo um forte azul celeste.
4 comentários:
Gostei também da descrição. Tudo tão lamentável e belo.
Abraços,
Silvia
Obrigada pela partilha!
Obrigada pelo incentivo, amigos!
Faço parte dos sortudos que ainda viram Mostar inteira. Mas já nesses longínquos anos de 1976/7 algo havia que não se enquadrava: Entre as nacionalidades da ex-Jugoslavia (eslovenos, croatas, servios, montenegrinos, macedónios e albaneses ou hungaros havia uma religião com direito a uma zona que historicamente fora sempre a fronteira dos servios e dos croatas! Aliás quando o Tito constituiu essa pseudo nacionalidade todos os juristas do país fizeram esta exacta crítica que aliás está transcrita em tudo o que é livro sobre a Jugoeslávia.
Nada permite passar disto para o crime, o genocídio, a deslocação de populações mas o meu ponto é este: constroi-se algo a partir de diferenças religiosas? E porque é que se fez esta habilidade? Ora apenas para evitar (Tito era croata)uma Sérvia ainda maior.Ele já tinha dado à Croacia a Dalmácia, expulsando as minorias italianas lá instaladas há séculos. (Aliás Dubrovnik é uma típica cidade veneziana...)
Não esqueçamos que durante a guerra a maioria dos croatas ( os famosos "ustachis" de Ante Palevich) se bandeara com os nazis, no que aliás foram imitados por albaneses e fortes minorias muçulmanas...
Todavia o texto da nossa querida Kamikaze merece ser lido, quanto mais não fosse, pelo prazer que suscita, pela elegância, pela agudeza da descrição. Não tivesse ele todas essas belas qualidades e talvez eu não me atrevesse a"meter a minha colherada" como diz o inimitável José, que já devia ter também vindo a este terreiro. Não há nada melhor do que uma boa discussão.
Resumindo: queremos (ou eu quero) mais diário dessa viagem. E do México, também, vá lá, dê ao dedinho e desculpe este desviante historiador: é que eu também gosto daquele(s)desgraçado(s) país(es)...
abraços do mcr
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