21 junho 2005

Au Bonheur des Dames 8ª entrega

S. JOÃO: QUE FESTA?


Uma trindade de santos (os santos populares) marca de forma fortíssima o calendário das festas que anunciam o verão e simultaneamente o momento menos religioso da nossa vida colectiva. Três santos bonacheirões, maliciosos quase três compadres, são alvo de especial atenção de devotos e menos devotos. Lisboa e boa parte do sul onde os grandes calores chegam mais cedo, festejam Stº António e transformam o erudito doutor da Igreja em casamenteiro, sacrificando-lhe força de sardinhas assadas regadas com tinto forte da lezíria. O Santo é caseiro ("o meu santo antoninho") e bom parceiro para negócios familiares.

O Norte divide-se entre S. Pedro, porteiro afável do céu e S. João, amigo dos meninos, das casadoiras e fornecedor de cabritinhos tenros. As zonas piscatórias têm um fraquinho pelo primeiro, pescador humilde e arteiro humano até ao ponto de, num momento de fraqueza, negar conhecer o Senhor. A Figueira da Foz, Braga e o Porto, entre outros, celebram o segundo, emprestando-lhe todavia as características de Stº António na vertente casamenteira. Com diferenças porém: na Figueira fronteira meridional do Norte os romeiros iam, madrugada fora, mar adentro libertando-se do sarro do inverno moldando o corpo das raparigas à camisa finíssima com que o escondiam. Sobre a nudez dos corpos jovens o manto diáfano e sedutor dos leves tecidos encharcados. Imaginem o fim da festa (que saudades, Deus meu!).

No Porto o S. João é terrestre: das Virtudes às Fontainhas, de S. Lázaro a Miragaia, cascatas e arraiais varavam a noite mais curta do ano estontecendo os corpos na dança e a cabeça com os cheiros bons da erva cidreira, alecrim e manjerico. Madrugada alta, comido o cabrito, os pares recém-formados antecipavam núpcias nos descampados, hortas e jardins que a cidade ainda tinha.

E lá do alto, o bom apóstolo, via crescer o rebanho do Senhor pelo milagre do seu nome e de uma noite amena. Suspirava a terra com orvalhadas, riam-se o céu e os corpos em flor.

Hoje tudo mudou. As festas, perderam carácter e importância. Já não são momentos únicos de encontro entre gente que se quer e só tem um dia para se ver. A festa banalizou-se ao longo do ano, a vigilância severa das famílias não tem sentido nem eficácia nas boites, nos pubs, na praia ou no cinema. O mistério dos corpos perdeu-se e soam a falso as quadras que celebram, o beijo roubado, a jura de amor ou a simples troca de olhares prometedores.

O plástico invadiu a noite e misturou-se ao som fortíssimo dos "P.A.", a cidade é um zumbido atordoante, a multidão engole as rusgas e as marchas, os casais perdem-se no inferno de tantas solidões inconfessadas.

A festa perdeu inocência e espontaneidade. Foi municipalizada como a electricidade e os transportes colectivos. Os devotos assinam um livro de ponto mesquinho e burocrático que lhes dá o direito de se arrastarem penosamente, entre encontrões e martelinhos de plástico, desde os Leões até às Fontainhas. Sobra cansaço onde vai começando a faltar alegria. O bom apóstolo merecia mais.
E nós?
Merecemos ainda a noite amiga e quente, o amor, a ternura, os amigos reencontrados?

Responda quem souber.


1989

nota: este texto foi-me encomendado há 16 anos, se a matemática é boa, pelo meu querido amigo Manuel Sousa Pereira, escultor de boa e rude mão, autor de alguns belíssimos desenhos que a sua louca generosidade espalhou por amigos e conhecidos, e que tem feito de tudo e de borla: teatro, ensino, rádio, sei lá que mais. Tem um virtuoso defeito: gosta excessivamente de arroz e ainda mais do belo sexo. Esta croniqueta destinava-se a um programa de rádio que ele animava lá para Vila do Conde.
Vai obviamente para ele, amicus certus in re incerta em 22 de Junho de 2005

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