Álvaro Cunhal
Eu tinha 16, 17 anos e acabava de ser vítima, sem saber porquê, duma carga policial em Braga. Explicando melhor: alguns familiares, descontentes com a “excessiva liberdade” que eu gozaria em Coimbra, como aluno do sexto ano do liceu D João III, convenceram a minha paternidade a enviar-me para o internato anexo ao liceu de Braga, onde a bondosa mas firme mão de um senhor padre Abílio não sei quantos (perdi-lhe o nome, sinal de perdão) me afastaria das tentações mundanais a que estaria sujeito se continuasse em Coimbra na acolhedora Pensão Alentejana.
Claro que as prevenções dos familiares prudentes e sacanas saíram furadas: foi nesse mesmo internato que aprendi a jogar poker aberto (e fechado) com os irmãos Sumavielle. Oficiava-se a jogatina numa tranquila salinha usada pelos jovens da JEC (Juventude Escolar Católica) e da Conferência de S. Vicente de Paula, organizações onde, a conselho dos mais experientes, me arranchei para gozar de pequenos privilégios que terminaram quando fomos apanhados numa gloriosa sessão de batota.
Deixemos porém estas minúcias autobiográficas e passemos ao essencial: a sessão de paulada policial no lombo juvenil e ingénuo deste vosso criado. Em 1958, o país foi atravessado pelo furacão Humberto Delgado, candidato às presidenciais contra Craveiro Lopes. A emoção suscitada pela candidatura deste ex-filho predilecto do regime ultrapassou tudo o que imaginar se possa. Onde ele chegava, multidões entusiastas e destemidas recebiam-no numa euforia espantosa. O regime tremia.
Ora num certo domingo, dia de saída para os presos do internato, fui com um grupo de amigalhaços ao cinema ver A ilha ao sol, filme com Harry Belafonte e Dorothy Dandridge. Fomos lá por causa dos calipsos que Belafonte cantava muito mais do que pelo drama das relações inter-raciais.
À saída a polícia bracarense, ajudada pela GNR afadigava-se a distribuir cacetada pela populaça que enchia as ruas e a Avenida esperando um Delgado que, suponho, não terá podido vir. Depois de copiosamente espancados refugiámo-nos num dos cafés da Arcada e alguém começou imediatamente a fazer a nossa educação política: numa tarde ficámos a saber que havia uma coisa chamada fascismo (que nos doía no costado) e que a oposição tinha um campeão, na altura preso, chamado Álvaro Cunhal.
De Braga e até finais do liceu (intermediados por uma breve tuberculose, na altura diagnosticada como pneumonia coriácea) passei por mais dois campos de concentração: o colégio dos Carvalhos e o Almeida Garrett. De ambos como, aliás, de Braga, fui “aconselhado a sair” por “bom comportamento”. Cheguei assim, e finalmente, à Coimbra de lavados ares, com um par de sólidas convicções: que a disciplina em demasia me fazia mal aos humores e que as instituições vigentes ligadas ao ensino eram nocivas. Como corolário: era preciso lutar contra elas. E que essa luta havia de ser pertinaz, continuada e “científica”, à la lumiére du marxisme (para citar o nome de uma revista lida às escondidas, importada com dificuldade e comprada sabe-se lá com que sacrifício). Como é que, apesar de tudo, não me deixei tentar pelas sereias do PC é coisa que me espanta. Os meus despudorados defeitos burgueses e a proverbial prudência dos militantes do partido ter-se-ão aliado para me evitarem esse traumático passo da adolescência à idade da razão.
Portanto, Coimbra, esquerda estudantil, assembleias magnas, Associação Académica e conspiratas da manhã à noite. Nesse cocktail tão perigoso quão generoso, Cunhal foi adquirindo o estatuto (merecido) de herói. Só era ultrapassado pelo Che [erro crasso, admito-o hoje em dia: teoricamente o Che era uma nulidade e Cunhal sabia a sério da poda, era persistente, inteligente e construiu um partido bolchevique, o último partido bolchevique (estou a escrever bolchevique e não bolchevista, caro José, leitor que me vai escalpelizar tudo isto à lupa...)] da história europeia e, quiçá, mundial. Com a fuga de Peniche, o mito cresceu ainda mais: à inteligência brilhante, ao heroísmo perante a PIDE, acrescia a aura do fugitivo audaz e do artista delicado cujos desenhos começavam a aparecer. Com o “Até amanhã camaradas”, que alguns, desde logo, lhe atribuíram, la boucle fut bouclée. Cunhal entrava directo no Valhala dos heróis míticos que dão nome e substância à saga gloriosa e sangrenta do socialismo europeu. Depois da sagrada trilogia (Marx, Engels e Lenin), depois, mas já perto, dos arcanjos (Jaurés, Rosa Luxemburgo, Liebknecht Trotsky, Thorez, Dimitrov, Togliatti e tutti quanti) é Cunhal que vem, ensombrado é certo pela vizinha Ibarruri que, se é mais emblemática, não tem a mesma dimensão da construção de um partido coeso, disciplinado, actuante e que, queira-se ou não, determinou em larguíssima medida os destinos de Portugal.
De quarenta até noventa, cinquenta exactos anos, meio século XX, Álvaro Cunhal, foi o rosto do PCP, a cabeça do PCP, da sua comissão política, do seu comité central, foi, queira-se ou não, o seu verdadeiro teórico.
Por outras palavras: foi o PCP. E foi-o até nesse ultra-valorizado “Até amanhã camaradas”, breviário para uso de clandestinos nos anos em que, segundo uma feliz expressão de Pacheco Pereira, o partido e os seus abnegados militantes foram a honra de Portugal.
Conheci, dada a minha deambulação permanente pela “oposicrática” desde 60 a 74, muitos velhos militantes do “partido”. A maior parte deles fora-se desligando que não é em vão que houve Budapeste, Praga, o conflito sino-soviético e mais um par de acontecimentos decisivos. Eram homens e mulheres de um excepcional carácter, gente que me honrou com a sua confiança e amizade, gente de palavra e de coragem, cujo exemplo me tem guiado nos melhores momentos. Todos eles me falaram longamente de Cunhal, que era um pouco a sua juventude e o melhor do seu compromisso político-social. Não eram brandos na crítica, haja Deus!, mas todos, sem excepção, reconheciam nele um líder, um intelectual de grande craveira e um político inteligente e obstinado. Daí sentir-me também eu, que nunca militei (e que, já Abril-74 ia a todo o vapor, fui por um par de segundas linhas do CC do PCP apelidado de “inimigo do Partido”, título injusto mas que orgulhosa e gozosamente ostento) um pouco de luto. A morte de Cunhal fecha o seculo XX português e fecha porventura também a história do partido comunista que ele reorganizou. A bem dizer o pc já era pouco desde que à sua frente se sentia, pesada e espessa, a ausência de Álvaro Barreirinhas Cunhal, um revolucionário no século.
m.c.r.
Nota: o presente texto integra a secção “Au Bonheur des Dames” que estava suspensa para permitir a publicação da série “Gaudeamus Igitur” que celebrava o 1º aniversário do INCURSÔES. Tratava-se de não atafulhar o blogue com escritos de um só comentador. Espero que me desculpem esta sobre-colaboração.
11 comentários:
Querido Companheiro:
Quando o meu pai morreu, alguém teve a crueldade amiga de me recordar uma palavra de Torga, aquando da morte do pai: Agora é a minha vez.
Começa o tempo a apertar-se sobre nós testemunhas que fomos (e ainda somos) dum país que exilava internamente os seus cidadãos.
Já é longa a lista dos meus mortos e para citar de nome apenas alguns que no texto refiro: Jorge Delgado, Armando Bacelar, Carlos de Oliveira, Paulo Quintela, Fred Fernandes Martins, Luís de Albuquerque,Joaquim Namorado, todos eles com tantos outros, que injustamente silencio,estudantes de Coimbra e da reorganização do pcp. ah que falta fazem! Que enorme falta me fazem!!!
Foi a pensar nestes gajos e no que eles diriam que arranjei a coragem necessária para não abrir o bico na pide. E sempre foram 6+5 dias de sono e estátua. Bem hajam, onde quer que estejam.
um abraço mcr
"construiu um partido bolchevique, o último partido bolchevique (estou a escrever bolchevique e não bolchevista, caro José, leitor que me vai escalpelizar tudo isto à lupa...) da história europeia e, quiçá, mundial."
Ah, caro MCR, obrigou-me desta vez a consultar o meu Il DIzionario di Politica(Utet Libreria, edição de 2004, da original de 1976) de Norberto Bobbio e outros( só são mais dois: Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino) que adquiri em boa hora na Feltrinelli.
Bolchevismo, ,em russo "bolscinstvó", em russo, parece querer dizer "maggioranza", maioria e que se opõe a menchevique, ou minoranza, minoria.
A história dessas duas correntes da social democracia russa,circa 1903,fora da Russia, é contada resumidamente para dar conta da divisão entre apoiantes da causa única, esta centrada na tomada do poder pelo proletariado através da revolução.A divisão, para além desse objectivo comum e pacífico, centrava-se na organização do partido.
De um lado, Lenine que defendia a pertença ao partido reservada àqueles que davam a sua participação inseridos nas suas organizações e de outro lado, Martov que propunha uma fórmula menos rígida, incluindo a Colaboração pessoal regular. Se fosse, hoje, tal expressão incluia os "compagnons de route"...
Os bolcheviques entendiam o proletariado como incapaz de se organizar autonomamente, sem ajuda de uma força externa.Os mencheviques entendiam o atraso do povo russo como impeditivo de aceleração da luta política.
Com o advento dos sovietes e de uma conferência em Praga, em 1912, formou-se o partido, abrangendo as duas facções.
Antes disso, os bolcheviques organizaram-se clandestinamente,acolhendo grupos e tendências, com a ideia bolchevique a ganhar predominância, no partido: o processo revolucionário deveria aguardar durante um certo período histórico dentro de um quadro democrático-burguês, fosse por impulso das lutas operárias ou sob a direcção do proletariado e camponeses pobres, segundo Lenine.
Entre uma série de governos provisórios, que reagrupavam diversas fórmulas liberais, socialistas revolucionários e mencheviques, e uma miríade de conselhos operários, soldados e camponeses, a ideia de Lenine, associada aos bolcheviques e sovietes, que prometia o controlo operário, o fim da guerra e a distribuição da terra, acabou por triunfar, no assalto ao palácio de inverno, em 1917.
Caro MCR que acha desta história dos bolcheviques, segundo Bobbio?!
Caro José:
Vamos por partes. Na generalidade tudo isso é certo. Aliás quem sou eu para contrariar um inteiro dicionário, ainda por cima do Bobbio?
Diz muito bem: bolchevique quer dizer maioria que se opunha à minoria, claro. MAs há mais: a maioria, de Lenin, afirmava a necessidade de um partido de revolucionários profissionais, a tempo inteiro, teoricamente preparados e, de certo modo, implacáveis estratégicamente. A extensa bibliografia de Lenin - os seus folhetos: 2 tacticas..., Um passo em frente..., uma faísca..., etc... vão todos neste sentido. Partido de profissionais que não são obrigatóriamente oriundos do proletariado mas que defendem a posição de classe deste último. Anos mais tarde, Gramsci veio dar força e mais conteúdo a isto com a sua histórica definição de posição de classe, origem de classe e situação de classe (remeto-o para o mesmo dicionário, caso queira). No caso português foi isso mesmo que se passou com a "reorganização" de Cunhal. O partido era generoso mas amador, demasiado aberto, anarqueirão,e profundamente permeável ao "oportunismo" (estou a usar os termos dos marxistas, linha ortodoxa partidária: há jargões em todo o lado, como decerto sabe). Cunhal cria um partido mais pequeno, muito mais pequeno no inicio, mas disciplinado, organizado em células estanques, dotado de um fortíssimo centralismo democrático e perfeitamente capaz de sobreviver nas mais duras condições. Era a isso que nos anos 40 se chamava o espírito bolchevique. Estamos como vê simultaneamente longe e perto da fórmula de 1910 (data em que, julgo, se deu a famosa cisão maioria- minoria. Contra esta regra "cunhalista" de feliz adaptação ás condições de um país isolado governado por um ultra conservador há a concepção aberta do partido do povo em que quemquer se inscreve (casos francês ou italiano) mas onde nem todos chegam aos escalões máximos, convém precisá-lo. Um partido comunista não é um albergue espanhol...
O resto do meu texto que (admira-me) V não comentou, só se entende a partir desta constatação teórica. Por estas e por outras é que não fui militante: conhecia demasiadamente as regras e as teorias que li e estudei aplicadamente. Do Lenin só me escapou o "Materialismo e o empiro-criticismo" que, dizem-me, era uma indigestão. Quanto aos pais fundadores li tudo e alguns bocadinhos mais digeríveis do Capital. Como dizia o vocalista dos "Ena pá 2000" numa entrevista imortal: "Se a gente tem de ser puta ao menos que seja puta fina!" Não é lá muito elegante mas como observação é duma justiça inabalavel. E para quem andou em todas, de 60 a 74, foi útil e não me estragou o prazer de uma boa partida de bridge, jogo em que Deng Xiao Ping era campião...
Continuamos?
um abraço
O PCP de CUnhal, em 1981 poderia resumir-se nesta parte de uma entrevista que o mesmo deu a Maria João Avilez, ao Expresso e que transcrevo parte:
" A democracia de tipo ocidental não pode ser vista apenas no aspecto político. Tem também de ser vista nas suas estruturas socio-económicas. A democracia de tipo ocidental - França. Inglaterra, Itália, RFA, etc- tem duas características essenciais:
No plano político tem as chamdas liberdades democráticas ( digo chamadas porque têm muitas limitações, como disse há pouco ao falar da lei eleitoral) liberdade de constituição de partidos, de sindicatos, de manifestação, de liberdade de imprensa, etc.em suma as liberdades democráticas, a democracia política. Mas no aspecto económico, o que caracteriza todos estes paises é a existência de estruturas socio-económicas em que o capital monopolista, e mais concretamente o capital financeiro, domina a vida económica. São as duas características simultâneas das democracias ocidentais. Dominam os grupos monopolistas, o grande capital, o capital financeiro, oi seja a interpenetração e a fusão do capital bancário com o capital industrial e o capital comercial, e há as liberdades políticas. Em Portugal, a revolução criou outra realidade...(...) que é a destruição do capital monopolista: os grandes grupos económicos, o império do capital financeiro, esse desapareceu."
Era assim que Cunhal via o Portugal de 1981, antes da CEE.
Como está à vista de todos, perdeu!
O Portugal actual jã não é o que ele então via!
E esta evidência, deveria servir para prova do erro do velho comunista.
Mais à frente:
QUerem restaurá-lo. Ora aí é que nós dizemos: esta democracia não é uma democracia de tipo ocidental. Também por isso, quando se fala na integração no Mercado Comum, uma das exigências que se põem é que as estruturas socioeconómicas de Portugal sejam conformes com as do MErcado Comum. Ora o que é que isso significa? Restauração do capitalismo monopolista que vigora nesses paises."
A ideologia prática de Cunhal e do PCP NUNCA saiu disto!
BOlchevique?!!
Exactamente!
Meu Caro José:
Ontem fui para a cama com a incómoda sensação de que o meu "exactamente" poderia ser mal entendido.
V. refere uma entrevista em 1981 para daí retirar algumas conclusões que não merecem total concordância minha e uma pergunta "Bolchevique?"
Ora bem: a palavra bolchevique também tem direito à sua pequena semântica, por muito dicionário que haja. Começou, como disse, por significar maioria, e só. Continuou, depois, a definir uma concepção de partido de quadros e de tomada do poder. Logo que os comunistas chegaram ao poder serviu para definir com clareza o triunfo dessa linha e as primeiras derrotas de Kamenev e Zinoviev que eram aliás membros da direcção do partido. Também indefenível mas com sentido de futuro apontava para a futura derrota de Trotsky por um lado e dos radicais que se oporiam à NEP. Com o triunfo de Stalin bolchevique passa a repositório de virtudes, revolucionário profissional, e tudo o que se segue . Por exemplo é bolchevique seguir- contra todas as cautelas e contra a história que lhes iria cair em cima- a palavra de ordem alemã "Klasse gegen Klasse" de tão funestos efeitos.
Passemos agora ao ano de 81. Lembre-se José que é por aí que se estabiliza a democracia portuguesa: Eanes é presidente, os retornados estão mais ou menos absorvidos e o bloco central é uma realidade. De fora só há o burburinho das brigadas e do otelismo já em fase convulsa e perdida. O PCP é tão só um bastião defensivo.
E no mundo? no mundo: mais do mesmo, os partidos comunistas estão definitivamente fora da área do poder (incluindo em França onde Miterrand os ensanduicha com habilidade)e a "resistência popular" dessas anomalias que são a Rote Armée Fraktion, a Action Directe, as Brigate Rosse e a generalidade da extrema esquerda pistoleira espanhola(com excepção da ETA) também já quase não mexem. Maio de 68 foi enterrado, a guerra do Vietnam acabou e as fissuras no Leste aparecem á luz do dia. Brejnev e comandita não passam de cadaveres adiados. Ou seja o comunismo perde terreno em toda a parte e também em Portugal, É por isso que a resistência de Cunhal se articula nos pontos que V refere. Cunhal não é autista, nada disso, basta ler bem o que ele diz. Cunhal, com o optimismo histórico de quem já viu outras e piores, tenta o golpe de rins, a resistência e lança a sua mensagem ao futuro que espera e deseja. Demorará muito? Não importa. O seu partido, o partido de quadros, pode perder as bagagens em excesso e inuteis, mas deve embarcar outra vez no comboio da história( ou melhor, se me permite a alusão elíptica que terá de descobrir á sua custa, no
vagão jota)e embora que se faz tarde. Ou. se me permite mais literatura política: Cunhal é um bom leninista e sabe perfeitamente, e di-lo com clareza, que uma centelha pode incendiar toda a pradaria.
José, caro amigo que me obriga a pensar mais do que eu quereria e o pobre cérebro permite,V de facto não tem a matriz da esquerda e isso não sendo defeito de maior também não é virtude: a esquerda está habituada a levar na tromba. Desde sempre. Cai aqui e levanta-se mais adiante, cai, outra vez e outra e outra mas tem a certeza (a ilusória certeza ?...) que mais cedo ou mais tarde se levantará. A esquerda, José, não tem paraísos no outro mundo, acredita que os terá neste, e por isso aí vai aos baldões com uma cereja e uma granada (granada quer dizer também romã...)a caminho do futuro, Está atrazada? Estará mas tem a pequeníssima ideia (uma faísca?) que lá chegará. Bolchevique Cunhal?
Bolchevique!!!
Um abraço muito grato
De facto, não me considero incluido nessa concepção matricial. Mas ando lá muito perto, no idealismo do Bem. Ou, pelo menos, assim espero.
A razão para a minha divergência quase de nascença, não tem a ver com o que classicamente se pode apontar e é costume ver como critério de escolha: a diferença de classe e a radicalização entre quem detém capital e quem detém força de trabalho.
Essa dicotomia base que com maiores ou menores nuances ( os pequenos e médios empresário, etc. e tal)tem sido a pedra angular de uma filosofia política. Ter ou não ter- eis a questão!
Desde cedo ( para aí desde os 15 anos), para mim, estes problemas se colocaram através de leituras espúrias em relação às matérias escolares. Por isso , a partir 5º ano nunca tive notas que se pudessem ver ou que pudesse mostrar, orgulhoso, às minhas filhas (que até me gozam , com certa razão sempre que me apanham um ponto do liceu...guardado na badana de um livro qualquer).
Daí, a minha qualidade de diletante activo e militante, desde sempre que me conheço.
A política, como meio de mostrar e convencer as pessoas sobre as virtualidades de uma certa organzação social, sempre me interessou intelectualmente.
Mas vamos ao ponto:
porque é que sempre aborreci o comunismo?!
Primeiro, pela educação recebida nos verdes anos. Porém, isso nada quererá dizer. O Vasco Pulido Valente tem hoje no Público um artigo sumamente interessante, sobre "crescer com`Álvaro Cunhal" em que relata a circunstância de nos anos 40 e 50 ter uns pais comunistas que conheciam e conviviam com Cunhal e os seus próximos.
Comigo, porém, a educação não chega como explicação. Incluo na educação, a religiosa, extrema e devotamente seguida durante a infância e a pré-adolescência. Marcou-me?! Sim, mas não tanto como isso. Chegou-me apenas para fundar as bases que me levam hoje a reconhecer este Papa como extraordinário.
Porém, o que me levou a nunca embandeirar a Internacional, foi a educação autónoma. As leituras à margem. Raymond Arond sempre suplantou Sartre, mesmo que os não lesse integral e academicamente. Li-os diletante e basicamente e foi por aí, com aproximações a Maritain, Mauriac, e a uma certa sensibilidde encostada à direita, mais do que à esquerda que fui moldando o meu espírito, gradual e firmemente.
A direita que refiro, sempre me pareceu mais consonante com a minha tradição e com o meu modo de viver em comunidade. Não advogava a guerra entre classes e não defendia o uso de armas para conquistar um poder, através das execuções em massa, como fui sabendo através das leituras que me eram permitidas na biblioteca itinerante da GUlbenkian. Muitas e variadas! Foi a minha universidade avant la lettre, como Gorki escreveu - e eu li.
Para além disso, o fascínio da América começou com a leitura das Selecções do Reader´s Digest. Montes e montes de meses, comprados no pequeno alfarrabista do Arcádia de Braga ( conhecia, de certeza). Pelos 13, 14 anos, só sonhava em sair do local onde voluntariamente me encalusurei durante 4 anos, para chegar ao Arcádia e ao alfarrabista ambulante.
Guardo muitas dessas revistas e foi aí que conheci em primeira mão a história "tenebrosa" dos Rosenberg e da execução do "CHE", na Bolívia, por exemplo.
Assim, quando cheguei a 73-74, a minha formação estava formatada num sentido ( crítico) porque me parecia que tinham razão aqueles que desmereciam do comunismo como força única para a boa evolução económica e social.
Lia já Soljenitsine, antes do Arquipélago de Gulag, com a história de Um dia na vida de Ivan Denisovitch e isso foi a gota de água que me fez afugentar o comunismo do horizonte das minhas opções políticas.
Não obstante isso tudo, aos poucos aparece uma contradição ainda hoje não resolvida e com a qual tenho convivido muito bem, paradoxalmente: a música e as artes em geral.
Quase todos os artistas musicais que admirava eram de esquerda!
COmo conciliar a audição do Era um Redondo vocábulo, com a recusa do punho no ar que o acompanhava nos catos livres?! Ora! A música para mim, não tem ideologia e o José Afonso parecia-me um gajo porreiraço. Aliás, até um dia, em 1980 fui a falar com ele, sobre música, no combóio de Vigo ao Porto. Gajo porreiro, continuo a dizer.
E esse porreirismo que sempre me habituei a ver e sentir nos tipos de esquerda mais flexível,foi sempre um modo que me permitiu ser tolerante e aceitar as diferenças de opinião.
Porque normalmente gosto das pessoas e as de esquerda são geralmente muito mais interessantes para o convívio, mesmo intelectual, do que as de direita.
Paradoxos?!
Obrigado, por me aturar estas intimidades que só partilho, não para eu próprio me situar e perceber "porque não fui por aí".
Creio que os que foram, também terão as suas razões e gosto de saber, sem qualquer espécie de voyeurismo social, mas apenas para perceber como as pessoas escolhem e que influência tem o meio exterior nessas escolhas.
Obrigado pela atenção.
Cumprimentos aos dois por este magnífico "bate-papo".
Cumprimentos a todos nós, meu caro JCP, a todos sem excepção. Se me fosse possível indicar uma escola de democracia, de cultura e de liberdade haveria de certeza farto lugar para este blogue e estes bloguistas que tão fidalgamente me acolheram e acolhem.
Eu sou um conversador nato e gosto como diz o nosso amigo José de situar as coisas que vou dizendo um tanto ou quanto para me perceber outro tanto para me explicar ao Outro. durante anos tenho praticado esse são exercício com vários amigos e particularmente com dois colegas de blogue: o Simas Santos e Anto. ainda hoje, no enterro do eugénio foi um aviar de conversas, recordações, pedaços de poemas e de vida, que só visto. Os enterros também servem para os vivos se sentirem vivos.
Caro José: eu passei por Braga "a idolátrica" (Luis Pacheco) há mais de 40 anos pelo que perdi esse alfarrabista. Mas não perderei da proxima vez que me calhar ir lá: adoro alfarrabistas embora me entristeça ver às vezes seguidos numa lógica de proprietário amoroso uns quantos livros que se vê terem sido comprados com gosto e sacrifício. Por essas e por outras ando a pensar fazer testamento: livros, discos e quadros tudo para a excelente biblioteca da Figueira da Foz.
V. lçeu boa excelente gente. Aron ou Mauriac valem bem a pena. O Zeca era mais do que um gajo porreiro , um homem de coragem: conheci-o muito bem e tive mesmo a honra de ter sido um dos três primeiros leitores do poema Meninos do bairro negro. com o Anto fui a um concerto em que o Zeca saía dos moldes habituais e aviava farta dose de surrealismo. O Anto babava-se de alegria e gozo. Os poetas são assim, sabem reconhecer as pepitas á primeira e cheias de ganga ainda... Foi uma boa conversa e espero que, como se diz no fim de Casablanca (filme que me parece muito sobrevalorizado) isto seja o princípio dum belo diálogo e duma boa amizade.
abraços a todos
Artigo de Vasco Pulido Valente no Público - copy paste de O insurgente
"Parece que Álvaro Cunhal foi uma figura "importante, "central", "ímpar" do século XX português. Muito bem. Estaline não foi uma figura "importante", "central", "ímpar" do século XX? Parece que Álvaro Cunhal foi "determinado" e "coerente". Hitler não foi? Parece que Álvaro Cunhal era "desinteressado", "dedicado" e "espartano". Salazar não era? Parece que Álvaro Cunhal era "inteligente". Hitler e Salazar não eram? Parece que Álvaro Cunhal sofreu a prisão e o exílio. Lenine e Estaline não sofreram? As virtudes pessoais de Álvaro Cunhal não estão em causa, como não estão as de Hitler, de Estaline, de Lenine ou de Salazar. O que está em causa é o uso que ele fez dessas virtudes, nomeadamente o de promover e defender a vida inteira um regime abjecto e assassino. Álvaro Cunhal nunca por um instante estremeceu com os 20 milhões de mortos, que apuradamente custou o comunismo soviético, nem com a escravidão e o genocídio dos povos do império, nem sequer com a miséria indesculpável e visível do "sol da terra". Para ele, o "ideal", a religião leninista e estalinista, justificava tudo.
Dizem também que o "grande resistente" Álvaro Cunhal contribuiu decisivamente para o "25 de Abril" e a democracia portuguesa. Pese embora à tradição romântica da oposição, a resistência comunista, como a outra, em nada contribuiu para o fim da ditadura. A ditadura morreu em parte por si própria e em parte por efeito directo da guerra de África. Em França, a descolonização trouxe De Gaulle; aqui, desgraçadamente, o MFA. Só depois, como é clássico, Álvaro Cunhal aproveitou o vácuo do poder para a "sua" revolução. Com isso, ia provocando uma guerra civil e arrasou a economia (o que ainda hoje nos custa caro). Por causa do PREC, o país perdeu, pelo menos, 15 anos. Nenhum democrata lhe tem de agradecer coisa nenhuma.
Toda a gente sabe, ou devia saber, isto. O extraordinário é que as televisões tratassem a morte de Cunhal como a de um benemérito da pátria. E o impensável é que o sr. Presidente da República, o sr. presidente da Assembleia da República, o sr. primeiro-ministro e dezenas de "notáveis" resolvessem homenagear Cunhal, em nome do Estado democrático, que ele sempre odiou e sempre se esforçou por destruir e perverter. A originalidade indígena, desta vez, passou os limites da decência. Obviamente, Portugal não se respeita."
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