Michelangelo, David
«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, daí uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis, não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.»
Padre António Vieira, (s.XVII) , pregando em defesa dos índios brasileiros - in Sermão do Espírito Santo
7 comentários:
Bom dia, querida Amélia: Isso é que é acordar cedo. Não me diga que também tem insónias!...
Obrigada pelo texto. Gostei muito.
" Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas" é um começo de toada quase musical, em que facilmente se imaginam timbales a rufar no arranque e tubas a soprar as pedras.
Esta imagem de David, está em Florença, como se sabe. Perto dos Ufizzi e em cópia, cá fora, na praça.
Porém, no Porto, no museu Soares dos Reis e da autoria deste, está uma estátua duma menina que parece impossível de tanta perfeição.
Só por si, a estátua merece a visita, agora que o museu é tão falado por causa de ...um túnel.
Por falar em Firenze, o caro MCR não tem nada para nos contar da bella Italia, no seu jeito tão apreciado?
Não durmo muito, é verdade, compadre.
Li este texto pela primeira vez na minha 4ªclasse.Não devo ter entendido por aí além, mas gostei tanto, que o decorei: pelo ritmo, musicalidade, rigor...
Se Vieira tivesse escrito em francês seria certamente mais considerado que Montaigne...Mas que bo foi ter escrito na nossa língua de que, como disse Pessoa, é mesmo o Imperador...
Isso não acontecia só a Vieira. Leonardo Coimbra , se fosse françês seria o Blondel ou o Bergson do séc. XX.
O nosso designio é ficar nas bibliotecas de alguns curiosos.
tinha para aí sete ou oito anos... e devia ser no Natal quando o meu avõ alcino descia do Porto até á Figueira e trazia livros de estudo do tempo dele e do meu pai. Um desses era uma antologia de textos portugueses da autoria do professor Mendes dos Remédios. Lá vinha "a morte do lobo" de Camilo. poemas do nicolau Tolentino e ete enorme texto de Vieira. E outros.
Vieira é a absoluta perfeição do português: nem antes nem depois se conseguiu tal plasticidade, tal colorido, tanta precisão. A nossa amiga amélia tem este condão de ir buscar coisas que, pelo menos a mim, me recordam os anos da juventude. Ontem mesmo, no mail era um poema de Rabearivelo. Há dias era o Pavese, paixão que partilho com o Anto. E por aí fora...
Caríssimo José: um destes dias falarei de alguns acontecidos italianos, talvez mesmo florentinos que há pelo menos uma florentina, ourives de profissão que conseguiu que eu lhe oferecesse um exemplar do "Portogallo mio rimorso2 uma antaologia de poemas de Alexandre O Neil em italiano editados pela Einaudi. Haverá por aí alguém que me consiga um exemplar?
Assim construiu-se a língua portuguesa, o homem sul-americano.
Obrigada, Amélia, por trazer esta beleza de texto.
Beijos,
Silvia
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