10 julho 2005

Na efeméride do massacre de Srebrenica

10 anos depois, um testemunho e uma homanagem

ZLATA

Ao chegar a Sarajevo, esmorecia já a tarde, o espírito ainda tumultuado dos horrores e das maravilhas já referidas aqui a propósito de Mostar, não consegui ler facilmente a cidade. Ainda que não soubesse que esperar, não era seguramente o que via da janela do carro o que esperava: nem edifícios imponentes, nem arquitectonicamente relevantes, antes um aglomerado algo incaracterístico de prédios que pareciam prestes a ser engolidos pelo emaranhado de modestas moradias que se encavalitavam umas nas outras e todas nas colinas circundantes.
Mas, já a pé, passados apenas um ou dois quarteirões, eis-nos no coração da vibrante zona antiga da cidade, com o seu ambiente tipicamente muçulmano-turco, as lojas e muitos lugares de comidas e guloseimas abertos até tarde, em dédalos de ruas pedonais, por onde hordas de jovens seguiam e se cruzavam apressados, simulando destinos que não apenas os encontros e desencontros - eles de calças e t-shirt bem justa ao corpo, anoraks e muito gel no cabelo, elas muito pintadas e vistosas nas suas roupas baratas de pouco pano e muita cor. Aqui e ali casais de mãos dadas ou mulheres mais idosas a duas e duas, eles vestindo calças escuras e camisa clara, elas o tradicional traje muçulmano, cabeça coberta. Nos frondosos pátios das Image hosted by Photobucket.com mesquitas, o murmúrio das águas dos fontanários e muitos homens fazendo as suas abluções a caminho do Senhor enquanto no céu, já crepuscular, os minaretes e as torres das igrejas - católicas e ortodoxas - pareciam querer tocar-se. Mais discretas, as sinagogas surgiam ao virar da esquina e todos estes templos com séculos e séculos de história nos compeliam a relembrar que, pese embora as marcas ainda visíveis dos obuzes nas paredes das casas por sobre as lojas, o multiculturalismo e a tolerância tinham sido ali uma realidade e um motivo de orgulho.

Peço ao meu filho que se desengome e concretize finalmente as suas vagas combinações com a Zlata, uma bósnia muçulmana de 24 anos, a acabar o curso de engenharia informática, que conhecera noutras recentes andanças por aquelas paragens. Receio que, à última hora, ela não possa vir encontrar-nos e que, estafados como estamos, tenhamos que esticar a noite no bar, que presumo barulhento, onde o namorado, designer gráfico, ganha mais uns marcos convertíveis como dj. Mas Zlata poupa-nos. Comidos uns deliciosos bureks num típico tasquinho de souk e aí vamos, eu toda em ânsias de curiosidade e perguntas.
Encontramo-nos onde começa a simpática e mais moderna avenida que conduz à outra Sarajevo, a dos edifícios e ambiente mittle europa, onde pontuam as lojas de roupa de marca e por onde novas hordas de juventude se apressam em busca do futuro incerto.

Image hosted by Photobucket.comE ei-la que chega, na aparência em tudo tão diferente dos outros jovens passantes!
Num moderno e elegante café/bar, manifestamente muito in, não demorou até que perdessemos o pudor e disparássemos perguntas atrás de perguntas, na ridícula pretensão de, em instantes, tudo querer entender... Mas Zlata é afável e muito simpática, não se incomoda, gosta de contribuir para que "lá fora" se saiba o que realmente se passou. Toma a iniciativa de pontuar que sabe que a sua visão não é isenta, mas é a sua visão, não pode ter outra, é a visão da sua realidade.
Zlata considera-se uma privilegiada. Durante a guerra, da sua família apenas a irmã sofreu ferimentos mais ou menos graves e do património familiar apenas a casa nos campos de Mostar foi destruída (pelos croatas, quando foram obrigados a desocupá-la, no fim da guerra). E espanta-se e pergunta-se como foi possível terem encontrado forças para sobreviver a tanto - não só aos constantes tiroteios vindos das colinas circundantes mas, principalmente, à traição dos até então vizinhos e amigos que, de um dia para o outro, se tornaram nos seus mais perigosos inimigos; ou "apenas" à façanha durante anos diariamente recomeçada, de acordar sem fazer ideia se nesse dia encontrariam o que comer, como o pagariam, como o cozinhariam... sem água, correndo permanentemente o risco de sucumbir a uma bala disparada ao virar de uma esquina (pese embora os panos estendidos a acobertar os que, sem outra alternativa, arriscavam ir buscar água aos tanques de abastecimento colocados nalguns pontos da cidade), sem electricidade, sem gás, consumidos já todos os tacos do soalho, os sapatos, os móveis... ; e os invernos gelados sem aquecimento! Zlata ri, relembrando o luxo em que se tornara lavar o cabelo com água quente e, sobretudo, a odisseia que representava fazê-lo: - que queimarei hoje para aquecer a água? - E os livros, queimavam livros? ... ah, os livros!
Até aqui num registo vibrante mas sobretudo informativo, que procurava aligeirar com notas de humor, Zlata emociona-se e emociona-nos. A custo ela conta-nos do cirúrgico ataque à Biblioteca Nacional, alvo de balas, obuzes e fogo posto e do subsequente incêndio que, alimentado a exemplares únicos, perpetuou a noite por muitos dias nos céus de Sarajevo, plúmbeos das cinzas da ancestral cultura e da alma bósnias.

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Embalada pela emoção, conta-nos de como a revolta a hipocrisia da outra Europa, a que agora vai subsidiar a reconstrução da Biblioteca e que, então, refugiada no alegado desconhecimento da origem dos ataques, nada fazia para proteger os bósnios muçulmanos, mas não hesitava na hora de proteger os seus, sabendo bem para onde apontar o arsenal bélico, sempre que algum dos seus altos dignitários se deslocava à cidade: para as colinas circundantes de Sarajevo (previamente esquadrinhadas por satélite), consabidamente ocupadas pelos sérvios! E conta-nos da revolta que sente pela atitude das forças holandesas estacionados em Srebrenica para proteger as populações, as quais, embora cientes de que apenas a sua presença impedia a invasão e o massacre pelos sérvios, que a cercavam, um dia, repentina e inesperadamente, lhe viraram as costas, dando azo à matança de mais de 8 000 bósnios muçulmanos (uma semana de horror que teve início há precisamente 10 anos).

E conta-nos como é difícil viver sem rancor, de como é impossível esquecer, de como é imperioso encontrar outro modo de viver, todos diferentes todos iguais. Uma pausa, uma sombra de desalento a turvar-lhe o olhar: - Mas está visto que não somos todos iguais, pois não?

Tens força para ser feliz! Felicidades para ti e para o teu país, Zlata!

4 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Um relato extraordinário! Quem escreve assim, devia escrever mais.

Amélia disse...

De acordo com o nosso carteiro.
Terá sido o último massacre europeu
do s.XX.O difícil é entender como os principais responsáveis conti-
nuam à solta e a monte, com a complcência, segura do povo e dos políticos sérvios.Bem faz a juiza Carla del Ponte, que se recusa a ir às comemorações, enquanto tais homens não forem entregues à justiça.Os líderes ocidentais,
"libertadores", mas, que eu saiba pouco têm feito para honrar as vítimas, procurando e entregando à justiça os criminosos, vão lá estar.Não houve bons, nessa guer-
ra - os bósnios foram quem mais sofreu (por parte dos sérvios, mas também de croatas) -em compnente em que o factor religião pesou também.
Há um ano estive na Croácia - onde os croatas contam a guerra como sendo da exclusiva responsabili-
dade dos sérvios...suponho que noutros sítios, entre os sérvios, se contem as coisas de outro modo.Uma coisa é certa - o povo bósnio, de maioria muçulmana, e os do Kosovo foi quem mais sofreu.
Espero bem que a questão do Montenegro se resolva pacificaamen-
te.Pobres povos que a história sempre mal tratou.

M.C.R. disse...

Hoje, segunda feira, o Público traz finalmente um texto que revela o "lado escuro" do caso Srebenika.
Ninguém contesta a infâmia do massacre, obviamente. Mas curiosamente nunca vi escrita a pergunta: porquê? Porque razão os sérvios atacaram tão ferozmente e mataram pelo menos oito mil homens e rapazes?
O Público, com alguns anos de atrazo, vem responder que anteriormente nesta mesma zona, maioritáriamente habitada por sérvios a "Armija" muçulmana tinha liquidado também ela uns dois milhares de servios numa tentativa de limpesa étnica.
Durante bastante tempo foi fácil tornar os sérvios os maus da fita: para uns eles eram dirigidos por um comunista empedernido. Para outros por um nacionalista à outrance. Para todos, a Sérvia era um embaraço. E a Jugoslávia, outro.
Bom, de facto, é um xadrês de pequenos países e uma Sérvia amputada. O resultao horrível é este: a paz das valas comuns, um buraco negro no centro da Europa. Ah e um tribunal internacional em Haia que julga criminosos desde que pertençam a pequenos países.
Disse pequenos?
Disse e repito-o, tendo em mente que Israel é maior do que as fronteiras que constantemente alarga.
E já nem falo da Rússia, da China ou dos Estados Unidos...

Kamikaze (L.P.) disse...

Link para os artigos no Público on line: http://www.publico.clix.pt/shownews.asp?id=1227955&idCanal=16