28 outubro 2005

Au bonheur des Dames nº 12

Horário de verão ou
Uma história de amor adiado com final feliz

Vai esta para o JCP, companheiro de blogue
E leitor que se espanta com a terra do Autor.
(E não conhece ele da missa senão o intróito)

Ora oiça, e oiça bem, JCP, esta história fresca, fresquíssima a saltar na areia, naqueles anos de ouro e rosas, na praia entre a Ponte do Galante e Ferro de Engomar. É uma história verdadeira, tão verdadeira e simples como a sardinha, rainha do mar, sustento de ricos e pobres, mais de pobres, digo eu, que naqueles tempos a comiam esticada entre duas fatias de casqueiro, ou de broa das Alhadas, acompanhada por um copo de vinho, daquele vinho tinto que se cultiva em terras pobres e de areia do Paião.
Mas basta desta conversa de molha tolos, amigo JCP e vamos à história tal e qual ma contou K., amigo velho e colega da escola de Buarcos que, com o Ganhitas, o João “Mantana”, o Aranha Eires, o Joaquim João Romão ia comigo aos figos na mata de Sotto Mayor. Permita, amigo JCP, que também a eles dedique esta historieta, dê-lhes com a sua habitual generosidade, uma boleia que, por uma vez e durante o quarto de hora de leitura, sejam os seus nomes conhecidos pelos parceiros deste blogue, tudo doutores e doutoras, gente fina mas boa como a primeira cereja de Maio (que também as roubávamos, pois claro, em quintais vizinhos), mas essa fica para outra vez e agora “à barca que temos gentil maré”.
Estávamos pois nesse compincha, K., que gastou meias solas nas ruas que vão da Praia, mais propriamente de Palheiros (era assim que se chamava o baluarte construído por ordem do espanhol Filipe II para cruzar fogo com o forte de Santa Catarina que fecha a barra e as muralhas de Buarcos que vigiam a enseada) até Buarcos terra de pescadores devotos da Senhora da Encarnação, melhor dito até à Escola Primária onde oficiava o professor Cachulo a quem devemos tudo e perdoamos tudo (e neste perdão vai um cabaz de reguadas, gritos, conselhos, rogos e emocionados abraços na hora de fazermos o exame da quarta classe. E lágrimas que o professor atribuía invariavelmente a um cisco que lhe entrara matreiro nos dois olhos ao mesmo tempo. Nos dois olhos, senhor professor? Que queres, rapaz isto aqui é terra de naufrágios e milagres!...).
K. fez-se rapaz nessa terra e nesses anos em que os meninos iam à escola de tamancos e usavam sacas de lona, produto barato muito em voga em terra de pescadores. Chegados os dez anos, foi para o liceu municipal Bissaia Barreto. E com o liceu mudou tudo: agora palmilhava uns fartos dois quilómetros para sul depois de durante quatro anos ter feito idêntica distância para norte. No liceu já não havia tamancos nem sacas de lona mas em contrapartida havia meninas. Em turma separada, claro, mas suficientemente perto para falar, conversar, tocar caderninhos com “inquéritos” com perguntas atrevidas que iam desde qual a flor de que mais gosta até “namora alguém”, “ama alguém”, “escreva as suas (dele/dela) iniciais” e por aí fora...
Come é bello il primo amore
Mas dois anos passam depressa e ao fim deles K., acabado o primeiro ciclo (o único que havia na terra) foi para Coimbra e daí com a família jornadeou por terras bem mais distantes que para esta história não vêm ao caso. Mas voltou, claro. Mais velho, caloiro na Universidade, começou de novo a fazer férias na cidade que era a sua e que teimosa e longinquamente ainda o é.
Ora foi num desses verões que duravam três meses quase que, na praia de sempre, diante das mesmas casas (stesso mare, stessa spiaggia, lembra-se da canção JCP?) que se cruzou com R. (v. desculpe esta mania das iniciais mas estas histórias pedem cautela, prudência, manhas de índio sioux, que na terra, naquela terra, um amorico de verão dá lenha para todo o inverno e se for caso disso, junta-se-lhe mais molho e dá para umas quantas mais estações invernosas). R., portanto, R. de olho azul e cabelo preto, pretíssimo: ou seja um perigo público absoluto, mar de bandeira preta aos quadrados brancos!!! Está a ver a coisa, JCP? K., armado em carapau de corrida, regressado de lonjuras inimagináveis, caloiro fresquíssimo, a veranear, hospedado na pensão Beira Mar como se já fosse um verdadeiro adulto, sem parentela por perto e R., em flor, ali à mão de semear, sem namoro visível. Foi tiro e queda, JCP.
Tiro e queda é um modo de dizer, que na passagem dos cinquenta para os sessenta, a virtude escrevia-se com V grande e o cúmulo dos atrevimentos não passava dum bejinho à sorrelfa, ou em dias mais clementes, quando o resto do grupo já regressara a penates para almoçar talvez houvesse tempo para uma mão mais distraída mas, alto aí e para o baile.
O Verão, todos os verões, infelizmente, chegou ao fim com este idílio em banho maria, como convinha ao tempo e aos costumes. Depois... depois foram os anos tumultuosos de universidade, outra gente, outras guerras, K em Coimbra, R em Lisboa, ferias trocadas, o raio do Algarve enfim o desencontro. Façamos, um zapping de uma boa dúzia de anos: K., cresceu, casou descasou, vamos encontrá-lo de advogado numa grande cidade. R. idem, aspas, aspas, mas desta feita ali a temos, de médica, na terra natal. Por espantoso que pareça, K., continua de longe em longe a ir à terra por escassos dias, ver amigos, comer uma caldeirada com o Ganhitas e restante pandilha mas a verdade é que nunca cruzará R. até que. Até que...
Mesmo advogando K. não ganha juízo. Mete-se em política, defende presos, implica-se mais do que deve, a pontos de, volta que não volta, fazer uns fretes: ele é alguém que tem de passar a fronteira e lá vai K. de motorista e passador, com a ajuda generosa de um certo Manuel S, de quem alguma vez se falará, são uns recadinhos da cadeia cá para fora, uns papéis a guardar, um livro a imprimir, enfim, o trivial da militância política da época. Ora, num desses sucessos vê-se K. incumbido, dado ser figueirense e ter família na terra, de levar uns papéis e um par de instruções a alguém, clandestino na zona de Buarcos. Como é habitual, K., para o encontro que se fará em local público ainda que pouco frequentado fora do verão (o café da Sacor, frente ao ténis clube) tem duas hipóteses: chegar às três ou às quatro da tarde. K. deverá vir de carro, abastecerá nas bombas e deixará o carro ali enquanto pretexta ir tomar um café. O seu contacto estará lá dentro, numa mesa a jogar xadrez sozinho. K. pede a bica, olha em volta e dirá as brancas dão xeque mate em três jogadas. O contacto reponta, convida-o a sentar e zás o encontro realiza-se, os papéis dentro do “Primeiro de Janeiro” ficam na mesa e K desanda despedindo-se e prometendo voltar alguma vez para um xadrez mais folgado.
K. chega à Figueira, sábado: projecta visitar os tios, ver amigos, jantar onde lhe der na gana e no dia seguinte preparar o encontro. O programa, porém, só em parte é cumprido. À saída da casa dos familiares K. e R. encontram-se. Durante duas longas horas, na Caravela contam-se doze anos de vida, de encontros e desencontros. E tão bem o contam que, uma vez mais, o padroeiro dos figueirenses lhes resolve dar uma segunda oportunidade: K. e R. não a desaproveitam: têm aquela conta pendente e mais vale agora do que nunca.
Chega o fatal dia seguinte com estonteante rapidez para K. Ou melhor K. dá-se conta que o domingo chegou às duas horas e vinte minutos da tarde! Abençoados sejam os inventores da clandestinidade que prevêem sempre uma segunda hora de recurso para os encontros. Da serra da Boa Viagem até ao centro da cidade é um esticão mas K. pára nas bombas da Sacor às três em ponto da tarde. Pára, manda encher, espreguiça-se, olha em volta e a primeira pessoa que vê à porta do café é o conhecido agente Simões, o pide mais conhecido de quantos assolavam os cafés da praça da República em Coimbra. K. sente-se perdido, disfarça, diz duas a abater ao gasolineiro e deixa-se ficar por ali. O agente seguramente que o vê mas, espanto dos espantos, não dá um passo. Espera, sem dúvida, que o alvo da armadilha entre no café e se dirija ao solitário jogador de xadrez, imensamente só diante de três meliantes mal encarados em mesas vizinhas.
K. paga, “entra na viatura e arranca na direcção de Buarcos” (relatório nº 251/73/SC, datado de Coimbra e secção central, ... Direcção Geral de Segurança)
Ninguém, a começar por K., que tinha sobradas razões para o esquecer, se lembrou que nesse exacto dia começara a vigorar a hora de verão isto (sic) a mudança de hora efectuar-se-á adiantando os relógios de sessenta minutos à 1 hora UTC do último domingo de Março ....
Ainda hoje K., que agora recorda continuamente, está convencido que se salvou daquela por milagre de amor ocorrido na terra que Você JCP, como sempre certeiro, qualificou de “fantástica”.

JCP isto foi o máximo que se arranjou para lhe oferecer e para desenjoar do Ministro e da guerra dos magistrados. É pouco mas de boa vontade. que quer Você: um pilriteiro não dá peras dá pilritos. Portanto contente-se com este. Um abraço.

6 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

contentámo-nos, mcr, mas não nos contentamos...!
estes seus pilritos são uma delícia. Venham mais cinco...:)

Silvia Chueire disse...

Concordo com a Kamikaze. Que venham mais.

Abraços,

Silvia

M.C.R. disse...

1) não me provoquem...
2) vocês são umas porreirinhas.
3) eu acho esta história engraçada mas o texto (convenhamos) ficou um pouco aquem...misérias que a pressa traz, mas eu queria muito homenagear o JCP.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caríssimo, não sei se sou digno de tantas honrarias. O meu amigo é um poço de grandes e magníficas estórias. Um abraço.

M.C.R. disse...

Não sou o dr Cavaco por isso posso enganar-me de vez em quando, Porém, ao oferecer-lhe a croniqueta acima tive a certeza que a oferecia bem e a uma pessoa de bem.
Um abraço, mcr

C.M. disse...

Não sei como surgem estas histórias, escritas à pressa diz mcr; pois bem, se são escritas à pressa possuem, mesmo assim, um cheirinho a poesia e à vida , que escorre das mãos com velocidade estonteante. Quando vejo chegar um “Au bonheur des Dames… “helás! Temos história!

Mas onde é que ele vai buscar estas coisas?!

Ai ai estes senhores clandestinos dos anos sessenta….

Imagino, um dia, assim um dia de inverno, de forte chuva, à volta da lareira, um grupinho reunido, e deixar que as “estórias” escorram lentamente, ao som do crepitar da lenha…

Talvez um dia…

Delfim Lourenço Mendes, de Lisboa, com amizade.