24 outubro 2005

A menorização do Ministério Público

O jornal Público de sexta feira relata:

“O Governo está a fazer todos os esforços para demover os juízes de fazerem greve nos próximos dias 26 e 27. Na passada segunda-feira, o primeiro-ministro, José Sócrates, o ministro da Justiça, Alberto Costa, e os presidentes dos vários tribunais superiores promoveram um encontro reservado com os dirigentes da Associação Sindical dos Juízes, para tentar chegar a acordo sobre os motivos que levam os magistrados judiciais a fazer greve nesses dias”.

O extraordinário esquecimento do Ministério Público neste processo, põe-nos a pensar: como foi possível chegar aqui?
Esta absoluta secundarização da magistratura do Ministério Público (impensável há alguns anos) para além de causas externas tem, obviamente, importantes causas internas que urge assinalar (e inflectir). Apontamos três:

- O total alheamento das estruturas superiores do Ministério Público do processo de formação dos seus magistrados, preferindo sempre a quantidade à qualidade (culminando, aliás, com a ideia desastrosa de um curso especial), assistindo passivamente à saída paulatina do CEJ de quem tinha ideias, peso interno e projectos sobre formação.

- Um sindicato dependente da inspiração exclusiva do seu presidente, sem capacidade de se renovar com abertura e qualidade e de fazer emergir novas figuras com dimensão judiciária, ultrapassando as fronteiras da sua própria magistratura.

- Uma Procuradoria-Geral fechada sobre si própria, sem capacidade de gerar reflexão interna/motivar o corpo que dirige e sem qualquer estratégia de (boa) comunicação com a opinião pública.

Com este panorama agora, não há greve que nos valha.
E talvez venhamos a precisar dela mais tarde ...

Casamayor

18 comentários:

assertivo disse...

Estratégia de comunicação da PGR: nem boa nem má, inexistente!

No mais: se quando parecia difícil darem mais tiros nos pés atiraram a matar!

josé disse...

Bem, nem tanto ao mar...

A táctica do ministro é a velha táctica leninista de dividir para avançar e levar a água ao moinho.

O ministro está obviamente preocupado com esta greve e se os juizes a desmarcassem, o problema subsistiria na mesma, com a greve do MP. Em termos de imagem pública que é a única coisa que lhe interessa preservar, o efeito seria o mesmo.
A maioria das pessoas em Portugal ainda nem sequer sabe distinguir as funções de juiz e de magistrado do MP!
Talvez por isso mesmo se fale em "greve dos juizes" um pouco por antonomásia.
Isto é uma tristeza. Se for futebol, toda a gente sabe que o novo treinador do Sporting é o Paulo Bento e que ontem empatou em Barcelos e a equipa não está a jogar bem e até se saberá dizer as razões para tal.
A maioria do pessoal que anda nas filas ou nas bichas, se preferirem a velha maneira portuguesa de o dizer, para os autocarros, lê jornais no escaparate. Livros, só para pôr na estante, para alindar o móvel.
O resto é tv, tv e mais tv.
E a tv dá-lhes "greve de juizes" porque quem alinha notícias pouco mais esclarecido é do que a audiência em geral.

Assim, temos "greve de juizes", pois então!

Quanto ao MP e sua organização interna, aqui, o melhor mesmo, é dizer nada aos costumes. Ou então, moita carrasco.

M.C.R. disse...

Mas há alguma procuradoria geral?

Primo de Amarante disse...

Não queria ser "chato", mas a ideia que me fica é que esta problemática é uma espécie de autobiografia da magistratura.

josé disse...

Caro compadre:

O que deve ser um magistrado, hoje, no Portugal que temos e somos?

Antes de mais nada, deve ser um técnico de direito.
Os técnicos de direito formam-se em cursos superiores, nas faculdades que temos: Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e talvez noutros sítios que nem sei.
A esmagadora maioria dos magistrados actuais, provavelmente formaram-se em duas: Lisboa ou Coimbra.
Em Coimbra, sei do que vou falar.
Aprendia-se Direito por sebentas dos professores catedráticos e por alguns livros avulsos.
Os professores catedráticos raras vezes se deslocavam à aula, com excepção de uns notáveis- precisamente os mais notáveis.
Ensinavam as matérias teóricas e recitavam os autores e as teorias elencadas ao longo de séculos ou apenas de alguns anos antes.
O estudo dessas matérias do longo de cinco anos, permitia ganhar um estofo de sabedoria teoricamente sólida.
Porém, como o Direito é um parente do ramo das Letras e estas são tretas, até o grande Orlando de Carvalho que teorizou solidamente sobre o domínio, disse que o Direiro era uma aldrabice secante.

Assim, o que é que se espera de um juiz ( ou magistrado do MP) para superar esta potencial aldrabice inerente à aplicação da Lei?!
Algo que não se ensina; que não se educa e não se determina por decreto: bom senso; bom senso e bom senso! E como bónus essencial, esperar a honestidade como valor de base e assente em princípios morais sólidos. Mas isso...

Para um juiz, é essencial perceber as leis de processo, mas estas são apenas regras de funcionamento das acções.Primero definem-se quem são as partes e as várias competências para saber a quem são distribuidas e onde são distribuidas essas acções.Depois terá de perceber os actos processuais, praticados por todos os sujeitos processuais.Terá que dominar as técnicas de apreciação das petições, contestações e outros articulados. Terá que saber sanear, especificar, questionar e depois julgar de acordo com as regras de produção das provas.E no fim, sentenciar.
Tudo isto é matéria técnica.
Há juizes que dominam tudo isto na perfeição. Tudo... bem... tudo, tudo, não. Porque o mais difícil de tudo é mesmo o final: o julgamento e sentença!
Houve um juiz sabedor - Carlos Almeida- que aqui há uns tempos, logo depois de ter solto um arguido excelentíssimo no processo pio, que disse publicamente ( em Coimbra) que os( suponho que querioa dizer alguns...) juizes não sabiam fundamentar as decisões porque ninguém os ensinara a tal!

Extraordinária confissão de ignorância! Extraordinário segredo de polichinelo revelado à plebe!

Deste modo, a autobiografia dos juizes ( e magistrados do MP) há-de ser necessariamente recolhida na súmula de todas as decisões tomadas, sobre todos os processos concretos que se decidiram.
É uma tarefa obviamente impossível, mas é a única que nos dará o retrato autobiográfico perfeito.
O resto são daguerreótipos distorcidos pelo tempo que os processos demoram a decidir por motivos que nem sequer são consensuais e por outro lado esses motivos são também a máquina fotográfica para fotografar.
E nisso, que culpa têm os retratados?!

O meu olhar disse...

Com referência a este último comentário do José:
Não há avaliação do trabalho dos juízes? E reflexão conjunta, estrutura e formalizada sobre teorias e práticas? Certamente que há. Não seria a sede ideal para colmatar e/ou atenuar tais problemas?
Quanto ao bom senso penso que é algo que se aprende e que se educa: em casa, na escola, com os amigos, com leituras… com a vida em geral.

Primo de Amarante disse...

Caro José:

Uma pequena nota.

Repare: uma autobiografia conta só a estória que nos interessa. Não faz história, porque põe de lado o mau da nossa "fita", aquela parte em que os outros se queixam de nós.

Pelos comentários que se seguiram, penso que começa a surgir uma biografia (e já não a autobiografia). E, então, a questão em debate, digamos que já tem mais interesse científico.

Primo de Amarante disse...

Uma outra questão: Segundo o diário digital, "o Tribunal deu provimento provimento ao recurso de Fátima Felgueiras pedindo a anulação dos depoimentos de três arguidos e das escutas telefónicas constantes no processo.

No entender de alguns juristas, se os três arguidos em causa, os ex-colaboradores da autarca Domingos Bragança, Horácio Costa e Joaquim Freitas, alterarem o depoimento feito na PJ/Braga contra a autarca, grande parte da acusação poderá cair, ou tornar o processo irrelevante em termos de número e gravidade dos crimes.”

Esta gente (Fátima Felgueiras, Ferreira Torres, Isaltino e Major Valentim) deveria ter uma comenda. É que poucos cidadãos conseguem tanto como ela!
Esperemos pelo próximo 10 de Junho.

Primo de Amarante disse...

Mas o pior é que o problema não é do advogado!!!!!...............

josé disse...

o dito de Orlando de Carvalho tem um contexto. Em 22.10.1997,pouco antes de morrer, o professor deu uma entrevista ao Público, na qual se entregou a diversas especulações singulares.

A parte que interessa:

" VIm para Direito porque me pareceu uma profissão útil. Mas a minha paixão era a Matemática Pura ou a FIlosofia e a Teoria da Literatura.SOu um homem com grande capacidade analítica, aliás foi um dos meus grandes defeitos como professor. É que eu tenteia fazer do Direito uma ciência de rigor. É preciso acabar com a ideia de que o Direito é uma aldrabice. O povo até tem razão, em grande parte é aldrabice.
Sabe-se pouco, conhece-se mal, os juizes não têm tempo para estudar, os advogados estudam pouco. Aquilo que se diz nos tribunais é contraditório, está em grande parte ao sabor do poder."
Perguntava então o Público- O Direito é uma seca?

Respondia o Mestre- O Direito é uma ciência um bocado secante, nisso tem razão. Aquilo seca bastante. Mas eu introduzia no meu discurso jurídico um elemento conotativo muito forte, o que tornava as aulas atraentes: nos Direitos Reais fazia uma citação de Fernando Pessoa; na Teoria Geral citava Rimbaud...Por outro lado, o DIreito obriga a um enorme rigor e isso traduziu-se na busca de uma poesia rigorosa.

E terminou a entrevista com um dito antológico, ao perguntarem-lhe se era um homem vaidoso:
"Sou suficientemente inteligente para ter a modéstia necessária".

Ecco!

josé disse...

A "secundarização" do MP parece-me ser um falso problema.
Além disso, como denota o comunicado do Sindicato do MP, ainda não está definido conceptualmente se o MP faz parte integrante dos Tribunais, como também diz Vital Moreira na sua Constituição co-anotada ( e que ainda não esclareceu, nem esclarece...). Pelos vistos, o Sindicato do MP acha que sim.
Ora isso, implica a paralelização mais completa- o que os juizes não aceitam, como têm sido amplamente divulgado, mas que nesta altura não é oportuno, se calhar, falar...

josé disse...

No entanto, meu caro compadre, estas questões reconduzem-nos ao ponto que salientei: o Direito será uma aldrabice?

Tome-se o caso da decisão da Relação de Guimarães sobre o assunto Fátima Felgueiras.
Leia-se esta pequena passagem citada pelo JN de hoje:

"(...)todas as declarações probatórias prestadas por alguém que não foi, indevidamente, constituído arguido, caem sob a alçada da proibição de valoração do art. 58.º, que aproveita, também, aos terceiros eventualmente incriminados".

"Deviam ter sido ouvidos como arguidos logo no início, o que só aconteceu numa fase tardia do processo", adiantou Artur Marques, o advogado de Fátima Felgueiras.

Os juízes da Relação entendem, assim, que os depoimentos dos três arguidos, enquanto testemunhas, "contêm factos passíveis de integrar crimes por eles cometidos", pelo que "não podem ser valoradas e utilizadas como prova contra a arguida/recorrente".


O que significa "isto"?

Que no Inquérito tem de se saber logo se uma pessoa deve ser constituida arguida, à partida! Sob pena de o depoimento que prestar como testemunha, se relatar factos que posteriormente possam valorizar-se como criminais, valer zero, pois a lei, na interpretação da Relação diz que uma pessoa tem de ser constituida arguida logo que sobre ela impendam suspeitas de comportamenteo criminoso.

Isto que parece linear, não é.
No Inquérito, alguamas vezes ouvem-se pessoas na qualidade de testemunhas por saberem de factos relevantes.
Se durante a inquirição contarem factos que possam consituir crime podem fazê-lo de molde a omitirem a responsabilidade própria, mesmo sem faltar à verdade...

E agora?!
Diz a Relação: tudo nulo! E repare: nem a defesa esperava tal decisão!

Está a ver o caro compadre, o que dizia o professor Orlando?!

O Direito pode servir para fundamentar que é tudo nulo; ou pode servir para dizer que está tudo nos trinques!

Lembra-se da decisão recente sobre as escutas do caso Apito Dourado?!
Seria possível uma ou outra decisão sobre a validade das mesmas.
O problema que se punha( parece-me a mim pelo que li e posso ter lido mal...) era o de saber se são válidas escutas telefónicas em que o juiz, por impossibilidade material de as ouvir todas, em tempo útil, não conseguiu efectivamente controlar todas essas escutas, validando-as por atacado.

Nesse caso o STJ decidiu de uma forma.
Neste caso da Fátima Felgueiras, a Relação de GUimarães acha que 90 dias de intervalo para um juiz poder controlar o conteúdo das escutas, é muito tempo e por isso, invalidou as mesmas escutas!

A lei o que diz sobre isso?!
Diz o que se quiser...caro compadre!

E quando a lei diz o que se quiser, fica ao intérprete o ónus de dizer o que a lei deve dizer.

A Relação de Guimarães, neste caso concreto disse o que disse...

Será que o povo entende?!

O meu olhar disse...

Quando leio estas coisas ocorrem-me questões.
Para quase todas tenho resposta mas para uma não:
Não há gente decente na justiça? Claro que sim.
Não se incomodam profundamente com estas decisões? Claro que sim.
As leis podem ser mudadas? Certamente.
Têm algum tipo de meio consequente para declarar a sua opinião e enquadrar leis e respectivas leituras? Certamente.
Porque não fazem nada face a tudo isto?

Primo de Amarante disse...

De facto, a justiça não pode ser uma questão pitonisiana. E se o caminho da justiça fica bloqueado por questões formais, regressamos à barbárie.

Eu penso que o bom-senso na interpretação contextualizada (e não factualista) é capaz de abrir caminho à justiça. Mas esse bom-senso exige muito saber de experiência feita, muito sentido do dever, muita preparação intectual e moral e mais amor à camisola do que ao preço da mesma. Será que tudo isto se está a perder?!...

Primo de Amarante disse...

Ou então teremos de dizer como já ouvi:«quando me falam em justiça, puxo de pistola».

josé disse...

Caro compadre:

A meu ver, colocou o dedo na ferida.
Parece-me ser esse o busílis da questão.

E agora, como é que isso se concilia com o discurso do seu amigo Canotilho que exige accountability concreta, em termos de autêntico tabelião que quer ver contas feitas?!
E o discurso do governo passa por aí. COmeçou com o procurador geral da República que querem ver no Parlamento a responder a questões dos deputados e vai avançar para a responsabilização concreta, mais do que seria desejável , dos juizes.

Para quê, devemos então perguntar?!
Aí está uma razão para todos protestarmos, porque sabemos o que pretendem de facto estes governantes: rédea solta!
E não me parece que o Cavaco os contrarie...

josé disse...

Assim, perante a rédea solta a juizes que fazem o que se vê por aí e a rédea solta aos governos para arreatarem o poder judicial, como poderemos sair deste dilema?
Será que existe dilema?

Para mim, o problema reside nas leis mal feitas.
Mas é a minha opinião, porque sempre se pode dizer que mesmo estando a lei muito bem feita, se o Direito serve para torcer e retorcer, tanto faz.
Assim, reconduzimo-nos à questão essencial que colocou, mesmo não a colocando expressamente:

Que juizes temos?! Servem o país que somos?
Ou são apenas " o que se pôde arranjar"?

É um problema dentro de outro problema maior, caro compadre: assim como aquelas bonecas russas...

Primo de Amarante disse...

Se as leis estão mal feitas (e disso já há muita gente a queixar-se), modifiquem-se as leis. Por que é que os sindicatos (que devem defender o prestigio da classe) não denunciam isso?!... Não fazem propostas de alteração?!... É que leis mal feitas só servem para desprestigiar o trabalho dos magistrados, como é sobejamente manifesto.