23 novembro 2005

estes dias que passam 6

Europeu até dizer basta,
tão ibérico quanto o presunto
e mais português do que o cozido.

Eu gosto de títulos, mesmo se não perco muito tempo a procurá-los. E estou convencido que os títulos (como os nomes das pessoas em África) têm propriedades especiais, quase mágicas. Recordo uma historieta sobre Isaak Babel o malogrado autor de “Cavalaria Vermelha”. Conta-se que, quando ele era apenas um rapazola com fumos literários, se dirigiu ao famoso círculo literário dos “irmãos Serapion” e conseguiu que lhe permitissem ler um conto. Começou obviamente pelo título:”na Sibéria não crescem coqueiros”. Num grito uníssono e fraterno os serapiões todos levantaram-se aplaudiram-no e disseram-lhe: Não precisas de mais nada. Estás admitido neste grémio pois vemos que tens veia de escritor”. Si non è vero...

Vem esta balivérnia a propósito de um par de efemérides. De facto, há um ano pisei pela primeira vez este palco virtual e logo uma generosa criatura que não nomeio (para não a tornar ainda mais vaidosa...) me fez um comentário tão amável quão exagerado. Depois, passaram anos e anos sobre três eventos maiores que conformaram o mundo em que nasci, cresci e vivo. Refiro-me ao Julgamento de Nuremberga e à transição espanhola (não tanto a ela em si própria mas ao que de certo modo representou: o fim da guerra civil). E finalmente porque este é o mês em que nasci, sabe-se lá há quantos anos.
Ora então, amigas e amigos, pratiquemos sobre estes temas que dão, espero-o, substância ao título desta entrega do meu cahier d’écolier (este cheirinho de Éluard refere o mês da sua entrada na eternidade, Novembro é claro...).
As novas que nos vão chegando nem sempre honram os trabalhos passados e as “conquistas” civilizacionais do último meio século. Assim a ONU desistiu de inspeccionar a base de Guantánamo porque as autoridades americanas lhe negaram o direito de falar com os prisioneiros lá internados. Estamos num trágico mundo orwelliano: esta gente nem sequer tem os direitos que o julgamento de Nuremberga concedeu aos criminosos nazis. O direito a um julgamento justo, o direito à defesa, o direito a serem reconhecidos como pessoas. Com uma decisão destas, quem, neste momento, representa o país de Lincoln, manda às malvas as palavras admiráveis dos seus representantes naquele julgamento. Eu bem que rezo a S. John Ford, a S. Ernest Hemingway ou a S. Louis Armstrong e a mais um milheiro de santos como estes para tentar conservar na memória e no coração a terra de Dylan e Pete Seeger.
E isto dói sobretudo a quem, maravilhado, pisou uma vez o chão de Nova Iorque e sentiu-se em terra sua, quase em Buarcos. Não que tenha sido essa a vez primeira de entrar em terra desconhecida e senti-la súbita e calorosamente minha: sucedeu-me o mesmo com Berlim, terra de antepassados longínquos e de leituras mais próximas (e por todos cito o assombroso “Emílio e os Detectives” de Erich Kästner que me deram quando eu tinha dez anos...) e Paris que eu palmilhei de lés a lés entre memórias de Lagardére, Balzac, Hugo e Dumas. Ainda hoje, tantos anos depois, não passo sem me comover pelas ruas onde “viveram” d’Artagnan, Porthos e Athos). Nova Iorque foi um pancadão de filmes vistos em salas enormes e confortáveis onde se sentia a respiração do público, onde havia intervalos e corredores com as fotografias dos “artistas”. Agora é o que sabe: salecas absurdas, onde se ouve o mastigar de pipocas industriais, e se lobrigam três gatos pingados.

Mas deixemos isto e passemos, reconfortados por esse momento altíssimo da história do direito, que se chamou Nuremberga, para uma notícia mais animadora. O miserável Pinochet foi pela primeira vez acareado enquanto réu com outro meliante do mesmo calibre, o sinistro director da DINA (Dirección de la Inteligência Nacional), o almirante ou general Contreras que não quer estar sozinho na cadeia e acusa Pinochet de ter dado as ordens para a matança, a tortura e as prisões. E diz mais o loquaz Contreras. Diz que “Pinochet traiu os seus e deixou-os sós quando eles apenas cumpriam ordens”. Ora aí está!
A terceira notícia que merece referencia é esta: há 50.000 portugueses a trabalhar em Espanha como operários. E destes, 12.000 são clandestinos!!! E desses claro, vão morrendo em acidentes de trabalho uns quantos. As máfias de engajadores ganham fortunas com este tráfico moderno.
E tudo isto se passa na nossa vizinha Espanha, que entretanto celebra trinta anos de transição. Para os da minha geração, que tantas vezes cantaram o Ay Carmela, estes trinta anos têm um gosto doce e amargo. Doce porque trinta anos de liberdade sabem bem a qualquer um. Amargo porque a transição fez-se (não ocultando a história dos vencidos mas) sobre a premissa de não recordar demasiadamente os atropelos da guerra civil.
E com isto não pretendo dizer que o crime morou só de um lado, longe disso, que há muita merda infamante na herança da república, mas que bom seria que, de uma vez por todas, se enterrassem honradamente os mortos assassinados pelos franquistas. E são muitos, demasiados, até. Sabe-se que logo depois do “levantamento nacional” foram sumariamente fusilados aldeia por aldeia, cidade por cidade, bairro por bairro, mais de 150.000 pessoas (na contabilidade criminosa cada nacional vale quatro virgula três republicanos). E foram enterrados em milhares de fossas comuns, a beira dos caminhos, nas serranias e barrancos, por vezes em buracos abertos pelos próprios mortos. Sem sombra de julgamento como no fim da guerra ocorreu para mais cento e tal mil homens e mulheres, julgados em tribunais de guerra sobre a acusação espantosa de “rebelião militar” (como se não tivessem sido os ganhadores da guerra a rebelar-se contra um governo legítimo, saído das urnas e internacionalmente reconhecido...). Começa agora, lenta e prudentemente a tarefa amaríssima de abrir fossa após fossa, recolher ossos, fazer as perícias para dar sepultura a mortos duplamente mortos pois muitos há que nunca serão reconhecidos ou identificados. Apetece lembrar Bernanos, o grande escritor católico francês e o seu Les grands cimetiéres sous la lune.
De todo o modo, e como último conselho de leitura: La guerre est finie o grande argumento de Semprun para um filme do mesmo nome de Allain Resnais.
E com esta guerra finita, relembremos, o livro de Lobo Antunes Deste viver aqui no papel descripto, a que, muito justamente, o JL acrescenta hoje cartas de guerra de Manuel Beça Múrias, Afonso Praça e Fernando Assis Pacheco, morto há dez anos traído por um coração maior do que o mundo em frente à livraria Buchholz, o mesmo que disse:
Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.
.....................................
dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.
Outro companheiro do mesmo tempo, apetecia-me dizer: heróico, dedicou ao Fernando estas belas palavras:
Um poeta vestiu-se de versos e ficou nu
Dentro dos versos....
..........................
E agora? Perguntou.
Tinha acabado de morrer e renascia.
Trazia um povo aflito na canção.

Gostaria de ser lembrado assim: trago também um povo aflito no que vou dizendo; só me falta a pura palavra viva para o dizer.

atendendo ao momento político o 2º poeta fica anónimo mas com o rabo de fora

11 comentários:

josé disse...

"E finalmente porque este é o mês em que nasci, sabe-se lá há quantos anos."

Vosselência não me diga que faz anos...hoje! Se faz, ficam já os parabéns.
Se não faz hoje, fica convocado para postar no dia e dar conta disso, mesmo em charada!
Fica à sua escolha. Pode ser uma destas prosas fleuve, em que se cita Dylan e Guthrie... não foi Guthrie?!
Então poderia ser...
Seja como for, torna-se obrigatório que nos dê qualquer coisa para festejar virtualmente.
Ficamos à espera de mais.

M.C.R. disse...

Não, não faço anos hoje mas sábado. Sou pouco dado a aniversários porque, tola e sentimentalmente, me lembro sempre, vá-se lá saber porquê, do meu Pai. Bom médico, conservador quanto baste, muito coimbrinha, generoso como poucos e sempre, mas sempre ao lado dos filhos que se metiam em todas as loucuras da esquerda.
V., meu prezadíssimo José, blasona de direita e sabe mais da esquerda que muitos que eu conheço. Com que então Guthrie, o inimitável Woody? Só mesmo V., José, só mesmo você...Eu citei Pete Seeger, homem de grande generosidade e discípulo do Guthrie, que deixou um rol de belíssimas canções. Conheci-o graças à Maria João Delgado, minha primeira e lindíssima mulher, a quem devo outros e bons encontros musicais. A coisa (o casamento) não deu certo mas continuamos bons amigos. Há mesmo coisas, situações que só a ela posso dizer, à espera de um clik, rápido que me diz "mensagem recebida". Pete Seeger, algum Brel, Fucik, o homem que escreveu á sombra da forca, e Joan Baez devo a essa mulher que foi uma boa companheira em anos péssimos. Não mereci a maioria das mulheres que cruzaram a minha vida. Paciencia, terei de viver com isso. Claro que, para castigo, também me saíram algumas na rifa ue nem para comida de animais do zoo serviam... Deus nao dorme!
Estou a pensar num texto sobre a clandestinidade. Coisa curta, claro, que eu sou mais preguiçoso que uma jiboia de papo cheio. Permita-me meu caro Amigo, que lha ofereça se (e quando) a conseguir passar a limpo).
Um abraço reconhecido

josé disse...

Caro M.C.R.:

Ninguém hoje em dia protesta como W.Guthrie protestou a cantar."This land is your land" é uma balada que ninguém sabe cantar. Como não sabem "do-re-mi", apesar de uns certos Mungo Jerry a terem retomado em 1970, aquando de um éxito pop: "In the Summertime" ( bela canção de dança!).
Assim, Guthrie morreu em 1967, e deixou apenas o legado ideológico humanista e esuqerdista à maneira americana aos cantores de protesto que se lhe seguiram: Phil Ochs e Tom Paxton. São dois que não dispenso, caro M.C.R.! E são ambos de esquerda! Tanto me faz, porque há muitos anos que não ouço as versões originais de "outside of a small circle of friends" e "the war is over" do primeiro e "Peace will come" do segundo. Então esta última, soa imediatamente a inícios dos setenta. E nunca mais a ouvi meu caro! Porém, tenho a certeza que bastaria ouvir os primeiros acordes para dizer: É esta! Mas não tenho esperança alguma em ouvi-la na rádio. E em disco, temo que nem estaja editada já.
Por isso, são esses os meus esquerdistas preferidos: memórias estéticas!
E ainda há o filho de Woddy, chamado Arlo Guthrie. Tenho quase todos os discos do pequeno génio. E ouço-os com gosto.
E assim se vê a força da...folk!

josé disse...

...o Arlo é um pequeno génio que é mais velho do que eu 10 anos!
E tem uma das canções que ficam no meu top ten pessoal: City of New Orleans, nome de um comboio . E a canção "Coming into Los Angeles", serve de banda sonora de abertura ou fecho a um filme culto: Woodstock, do festival com o mesmo nome.
Memories..

M.C.R. disse...

Pois claro. O Arlo. Comecei por vê-lo no cinema: uma fita chamada "Alice's restaurant" do Arthur Penn. Também entrava o Pete Seeger. E aparecia o Woodie a morrer na pele de um actor chamado
Joseph Boley. O filme er obviamente "contracultural" e devo-o ter visto entre 70 e 75, muito provavelmente em Paris ou em Berlin.
Tenha fé, homem de Deus! Veja a loja de discos na Amazon (amazon. com) ou alapage.com: Neste há um disco com outside... e the war is over.

josé disse...

Ah! Mas não é das rodelinhas de plástico recoberto com brilho, aquilo de que falo e a que chamam cd. Disso tenho eu, numa colectânea do Phil Ochs ( o irmão Michael coleccionva e tem um livrito). Embora não tenha o Tom Paxton.
Porém, neste caso,só me interessa o original. Em rodela grande, plástico de azeviche e sulcos para lavrar. Tenho um bom arado da Thorens e ainda há pouco dei um balúrdio por uma aiveca japonesa.
O "Peace will come" só hei-de ouvir se for assim. De outro modo, será uma diferença equivalente a uma foto digital de uma tradicional: ainda não tem a resolução exacta.

Silvia Chueire disse...

É um prazer ler esta conversa de vocês.

Abraços,
Silvia

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, apesar do pendor sentimental, erga-se o copo no próximo sábado!

M.C.R. disse...

Meu caro JCP: muito obrigado.
Excelente Sílvia: o seu prazer nunca será tão grande quanto o meu (nosso??) quando a leio.
Meu caríssimo José: v. é um carácter! com que então o vinilzinho, rien que le vinil!!!
E um thorens, e aquela japonesice... Estou vendo, estou vendo como dizia o cego...
Eu também andei nessas aventuras da hifi dificil: coluas bi-amplificadas da meridien, pré também da meridien (agora substituido por outro "musical fidelity"). O giradiscos é um velho cavalo de batalha, um DM101 com braço Linek e uma agulhinha Kiseki blu S.
A coisa custou-me uma soma infame há cerca de 20/25 anos e deu, dá, muita e boa alegria. Confesso todavia que me converti ás rodelas. Eu já não tinha pachorra para me levantar cinco vezes quando queria ouvir o Barbeiro... Como V. sabe sou preguiçoso...
todavia, e voltando á vaca fria: parece que há cá uma loja de vinil, só vinil. Vou informar-me e logo lhe direi.
Mantenho, porém, que V. me saiu melhor do que a fotografia...

josé disse...

Uma Kiseki?! Uma Blue Silverspot?
Aposto que remoeu a instância suprema de uma Lapis Lazuli ou ponderou a macieza de uma Agate Ruby...ou remirou a possibilidade de dar o braço a uma Koetsu.

Pois escolheu a flor de laranjeira da delixadeza sonora.Parabéns e resguarde a preciosidade que já não há. Redoma com ela- e veneração.

A minha japonesinha, é uma simples flor de lotus, uma moving coil sem história e fabricada em massa: uma simples Audio Technica.
Mas boa e que me satisfaz... os tímpanos.

E leio que a florzinha de laranjeira assenta no colo de um Linek, como se já não fosse pouco ter um dossel de luxo, herdade da nobre família Linn.
Muito me conta, caro M.C.R.
Tem pergaminhos, essa linhagem. Oh se tem!
E junta-lhes as Meridien? Puxadas pelo MF?! Imagino como cantarão juntinhos o
"Heaven, I’m in heaven
And my heart beats so that I can hardly speak
And I seem to find the happiness I seek
When we’re out together dancing cheek to cheek."

Frank Sinatra nem precisava de tanto cuidado...mas aposto que Tchaikowski lhes exige respeito.

M.C.R. disse...

Convenhamos: nessa época em que os pardaus corriam por terras de Basto mais do ue os coelhoe e em que, eu estava bem dentro da sociedade afluente, deu para estas sofeguidões. A bem dizer ia meter-me num Rega Planar e acessorios a condizer. foi então que o meu "disqueiro" dessa época (o dono da Clave de saudosa memória me murmurou, satanicamente, que um pindérico local tinha uma belíssima instalação mas que a ia vender. Pertencia à classe dos parolos que não tinha tempo mas tinha dinheiro. Chegara a criatura à conclusão que empatara muito bom conto de reis numa aparelhagem que nem para ouvir a Tonicha lhe servia. Vai daí, vendia-a em saldo. Bem, a palavra saldo aquí é uma ofensa a 99,99% dos portugas dessa época... Ora eu tinha esse cacauzinho disponível e com uma louca vontade de conhecer novas algibeiras. Juntaram-se pois a fome e a vontade de comer.

E faça, V. o favor de não chamar modesta à audio Technicha... Isto são objectos que se amofinam por muito pouco. E devo dizer-lhe que deve ter um som muito mais potente e aberta que a minha adorável mas idosa Kiseki.
De todo o modo vou guardá-la ad aethernam até porque me deu, e dá de vez em quando, muitas horas de alegria.