Cosi fan tutte
Os estimados clientes ficam avisados que este título não pretende mais do que homenagear o imortal Wolfgang Amadeus de quem neste ano se celebra o 250º aniversário. Claro que os mais desconfiados que tiveram a coragem de me ler nos últimos dias poderiam ser levados a pensar que com este título eu ia insistir na vexata quaestio do envelope. Nada disso, meritíssimos e excelentissimos. Se fora esse o caso eu teria grafado tutti e não tutte.
Realmente é à ópera que me refiro, uma das melhores desse génio de Salzburgo. E uso o título porque a) gosto; b) dá jeito para o que vem a seguir. A seguir a seguir não, que isto perdia a graça (se é que alguma vez a terá...).
Portanto Mozart. 650 obras em trinta e poucos anos de vida. Muitas delas escritas de rajada sem um risco, uma alteração. A perfeição não consente alterações. Por esse mundo fora, vai ser uma cabazada de Mozart. Cá é o que se vai ver.
Duma homenagem lembro-me eu como se fosse hoje. Foi num outro tempo bem pior do que este mas que agora aparece nimbado pela doce nostalgia da mocidade. Africa, 1962. Nampula uma cidadezinha bonita no planalto makua. Mas já lá vamos...
62 foi um ano agitado para quem andava na universidade. Em Coimbra, depois de variadas peripécias e no auge de uma greve estudantil a polícia invadiu o antigo convento dos Grilos, sede da Associação Académica, e prendeu toda a gente que encontrou. Digo encontrou porque houve um estudante que se escondeu num desvão dos forros do telhado durante dois dias e não foi caçado. Era um maníaco de barricadas, pregava tábuas em qualquer lado para impedir a entrada da polícia e, durante a primeira ocupação da sede da AAC ao fim de um larguíssimo par de horas quando perguntado por gente de fora sobre o queria pediu pregos, muitos pregos. Trouxeram-lhe para grande espanto dele e maior regozijo nosso umas dúzias de bifes em pão (pregos!!!) que nos amenizaram a fome. Isto de ser novo, grevista e estar esfomeado não dá bons resultados mas por vezes há milagres. O Zé dos pregos fez como antes a padroeira de Coimbra, mas ao contrário: ela transformava pão em rosas e ele transformou as pedidas ferragens em comidinha muita e boa. Tivera eu melhores relações com o Papa Bento XVI e pedia para o Zé uma beatificação.
Depois de uma saudavel passagem por Caxias sur mer fomos devolvidos á alma mater onde entrementes se expulsava estudantada ás mãos cheias. O esquema era simples: á medida que os archeiros lobrigavam um quidam que se tivesse notabilizado na "agitação" indicavam-no á polícia ou ao Reitor e, pimba!, processo disciplinar.
Conhecedor dessa habilidade dos archeiros guardei-me de passar a Porta Férrea e achei que era melhor ir fazer férias tão longe quanto possível. Aproveitei o facto da paterna potestas estar nas Áfricas e ala que se faz tarde: para Lisboa a fazer fila numas viajens baratuchas que a malta de Moçambique tinha para lá. Enquanto não embarcava consegui com mais dois outros refugiados o milagre de ser aceite numa casa da Mocidade Portuguesa ali para a Visconde de Valmor. O problema era que não tínhamos (ou isso alegávamos para ser mais verdadeiro) dinheiro para pagar a dormida e o chope-chope. O dirigente da casa amerceou-se de nós e fez-nos prometer que uma vez chegados a casa logo lhe enviaríamos o dinheiro em dívida...
Até hoje... Agora já o posso confessar pois acredito na infinita virtude da prescrição: durante quinze dias comi e dormi á custa da MP sem desembolsar um centavo. A luta anti-fascista também passava por aqui, dizíamos, já no avião para as Áfricas. Com esta excelente desculpa esquecemo-nos de pagar a dívida.
E Nampula outra vez. Ou melhor: de vez. A família acolheu-nos como não podia deixar de ser com uma ameaça e um sorriso. Não se metam em política, cuidado isso é perigoso. Mas no fundo o meu pai, conservador como se deve, mas coimbrinha e "antigo estudante" até dizer basta, olhava-nos ( o meu irmão também foi) com um certo orgulho.
Além de médico, caçador de caça grossa, fumador inveterado, maníaco do brigde, grande comilão, o pater familias era melómano. Disco que chegasse á "Casa A. Teixeira" transitava primeiro pelo consultório dele e se interessasse ia directo para casa.
Foi assim que numa bela manhã aterrou lá em casa um disco com um título atroz "In the gardens of Mirabell".
Consumidos pela mesma doentia mania do Pater eu e o meu irmão resolvemos ouvi-lo imediatamente: em três minutos estavamos rendidos. Era uma antologia de Mozart e a primeira peça era a "Kleine Nachtmusik".
E foi por essa altura, ou pouco depois que o milagre aconteceu: um dia o nosso "moleque" (que quer dizer o empregado de dentro) veio pedir-me para pôr o disco a tocar. Surpreendido fiz-lhe a vontade. E logo que começaram a soar os primeiros acordes da Kleine nacht... descobri estupefacto que ao criado se tinham juntado o "mainato" ( o lavador e passador de roupa) e o cozinheiro, senhor Tesoura ( e que seja bendito pelos saecola saecolorum pelo bem que cozinhava). Ouviram atentos aquela música dos antípodas culturais deles . Pediram para bisar. E nos seus olhos atentos e doces parecia ver-se um travesso Mozart sentado na terra vermelha a tocar marimbas.
Em vinte e tal anos de Nampula nunca tivemos outros serviçais. Os meus pais eram um pouco mais generosos que os restantes patrões e tratavam o seu pessoal com amizade e respeito. Nós, eu e o meu irmão, mais ousados, tratavamo-los por tu e eramos tratados também por tu. Esses criados ensinaram-nos centenas de palavras makua que o tempo me tem feito esquecer. O que não esqueço, nem nunca esquecerei, é aquele auditório atento que não desmereceria dos melhores ouvintes que Mozart teve em vida.
Forte deste ensinamento eis a receita: a editora Brilliant Classics apresenta uma integral de Mozart por 99 euros. Ou seja 55 centimos por disco. Quem quizer seguir esta receita pode ir ao site "abeillemusique.com" e pagará no total, transportes incluidos, 108 euros. Na FNAC custa 134 euros.
E já que falamos de aniversários saibam quantos esta lerem que a mesma Briliant Classics oferece uma integral de Vivaldi (40 discos) por 40 euros. É só irem á FNAC.
Correndo risco de despertar as fúrias de José esta farmácia aconselha o 3º volume de "Cunhal uma biografia política" de Pacheco Pereira.
No domingo há eleições: aproveitem e votem que temps houve que até isso pareceria um milagre. Depois de votar afinfem-lhe forte feio que a democracia gasta muito as pessoas. Cá em casa vai ocorrer uma feijoada à transmontana, cozinhada pelas mãos milagreiras daCrazy Grazy. E não me chamem amchão que no domingo passado foi a minha vez: um caril de camarão que faria chorar de comoção o inestimável Bruto da Costa, saravah, compadre!
E saravah para vocês todos, bloguistas e comentaristas novos e velhos. Bom fim de semana!
Os estimados clientes ficam avisados que este título não pretende mais do que homenagear o imortal Wolfgang Amadeus de quem neste ano se celebra o 250º aniversário. Claro que os mais desconfiados que tiveram a coragem de me ler nos últimos dias poderiam ser levados a pensar que com este título eu ia insistir na vexata quaestio do envelope. Nada disso, meritíssimos e excelentissimos. Se fora esse o caso eu teria grafado tutti e não tutte.
Realmente é à ópera que me refiro, uma das melhores desse génio de Salzburgo. E uso o título porque a) gosto; b) dá jeito para o que vem a seguir. A seguir a seguir não, que isto perdia a graça (se é que alguma vez a terá...).
Portanto Mozart. 650 obras em trinta e poucos anos de vida. Muitas delas escritas de rajada sem um risco, uma alteração. A perfeição não consente alterações. Por esse mundo fora, vai ser uma cabazada de Mozart. Cá é o que se vai ver.
Duma homenagem lembro-me eu como se fosse hoje. Foi num outro tempo bem pior do que este mas que agora aparece nimbado pela doce nostalgia da mocidade. Africa, 1962. Nampula uma cidadezinha bonita no planalto makua. Mas já lá vamos...
62 foi um ano agitado para quem andava na universidade. Em Coimbra, depois de variadas peripécias e no auge de uma greve estudantil a polícia invadiu o antigo convento dos Grilos, sede da Associação Académica, e prendeu toda a gente que encontrou. Digo encontrou porque houve um estudante que se escondeu num desvão dos forros do telhado durante dois dias e não foi caçado. Era um maníaco de barricadas, pregava tábuas em qualquer lado para impedir a entrada da polícia e, durante a primeira ocupação da sede da AAC ao fim de um larguíssimo par de horas quando perguntado por gente de fora sobre o queria pediu pregos, muitos pregos. Trouxeram-lhe para grande espanto dele e maior regozijo nosso umas dúzias de bifes em pão (pregos!!!) que nos amenizaram a fome. Isto de ser novo, grevista e estar esfomeado não dá bons resultados mas por vezes há milagres. O Zé dos pregos fez como antes a padroeira de Coimbra, mas ao contrário: ela transformava pão em rosas e ele transformou as pedidas ferragens em comidinha muita e boa. Tivera eu melhores relações com o Papa Bento XVI e pedia para o Zé uma beatificação.
Depois de uma saudavel passagem por Caxias sur mer fomos devolvidos á alma mater onde entrementes se expulsava estudantada ás mãos cheias. O esquema era simples: á medida que os archeiros lobrigavam um quidam que se tivesse notabilizado na "agitação" indicavam-no á polícia ou ao Reitor e, pimba!, processo disciplinar.
Conhecedor dessa habilidade dos archeiros guardei-me de passar a Porta Férrea e achei que era melhor ir fazer férias tão longe quanto possível. Aproveitei o facto da paterna potestas estar nas Áfricas e ala que se faz tarde: para Lisboa a fazer fila numas viajens baratuchas que a malta de Moçambique tinha para lá. Enquanto não embarcava consegui com mais dois outros refugiados o milagre de ser aceite numa casa da Mocidade Portuguesa ali para a Visconde de Valmor. O problema era que não tínhamos (ou isso alegávamos para ser mais verdadeiro) dinheiro para pagar a dormida e o chope-chope. O dirigente da casa amerceou-se de nós e fez-nos prometer que uma vez chegados a casa logo lhe enviaríamos o dinheiro em dívida...
Até hoje... Agora já o posso confessar pois acredito na infinita virtude da prescrição: durante quinze dias comi e dormi á custa da MP sem desembolsar um centavo. A luta anti-fascista também passava por aqui, dizíamos, já no avião para as Áfricas. Com esta excelente desculpa esquecemo-nos de pagar a dívida.
E Nampula outra vez. Ou melhor: de vez. A família acolheu-nos como não podia deixar de ser com uma ameaça e um sorriso. Não se metam em política, cuidado isso é perigoso. Mas no fundo o meu pai, conservador como se deve, mas coimbrinha e "antigo estudante" até dizer basta, olhava-nos ( o meu irmão também foi) com um certo orgulho.
Além de médico, caçador de caça grossa, fumador inveterado, maníaco do brigde, grande comilão, o pater familias era melómano. Disco que chegasse á "Casa A. Teixeira" transitava primeiro pelo consultório dele e se interessasse ia directo para casa.
Foi assim que numa bela manhã aterrou lá em casa um disco com um título atroz "In the gardens of Mirabell".
Consumidos pela mesma doentia mania do Pater eu e o meu irmão resolvemos ouvi-lo imediatamente: em três minutos estavamos rendidos. Era uma antologia de Mozart e a primeira peça era a "Kleine Nachtmusik".
E foi por essa altura, ou pouco depois que o milagre aconteceu: um dia o nosso "moleque" (que quer dizer o empregado de dentro) veio pedir-me para pôr o disco a tocar. Surpreendido fiz-lhe a vontade. E logo que começaram a soar os primeiros acordes da Kleine nacht... descobri estupefacto que ao criado se tinham juntado o "mainato" ( o lavador e passador de roupa) e o cozinheiro, senhor Tesoura ( e que seja bendito pelos saecola saecolorum pelo bem que cozinhava). Ouviram atentos aquela música dos antípodas culturais deles . Pediram para bisar. E nos seus olhos atentos e doces parecia ver-se um travesso Mozart sentado na terra vermelha a tocar marimbas.
Em vinte e tal anos de Nampula nunca tivemos outros serviçais. Os meus pais eram um pouco mais generosos que os restantes patrões e tratavam o seu pessoal com amizade e respeito. Nós, eu e o meu irmão, mais ousados, tratavamo-los por tu e eramos tratados também por tu. Esses criados ensinaram-nos centenas de palavras makua que o tempo me tem feito esquecer. O que não esqueço, nem nunca esquecerei, é aquele auditório atento que não desmereceria dos melhores ouvintes que Mozart teve em vida.
Forte deste ensinamento eis a receita: a editora Brilliant Classics apresenta uma integral de Mozart por 99 euros. Ou seja 55 centimos por disco. Quem quizer seguir esta receita pode ir ao site "abeillemusique.com" e pagará no total, transportes incluidos, 108 euros. Na FNAC custa 134 euros.
E já que falamos de aniversários saibam quantos esta lerem que a mesma Briliant Classics oferece uma integral de Vivaldi (40 discos) por 40 euros. É só irem á FNAC.
Correndo risco de despertar as fúrias de José esta farmácia aconselha o 3º volume de "Cunhal uma biografia política" de Pacheco Pereira.
No domingo há eleições: aproveitem e votem que temps houve que até isso pareceria um milagre. Depois de votar afinfem-lhe forte feio que a democracia gasta muito as pessoas. Cá em casa vai ocorrer uma feijoada à transmontana, cozinhada pelas mãos milagreiras daCrazy Grazy. E não me chamem amchão que no domingo passado foi a minha vez: um caril de camarão que faria chorar de comoção o inestimável Bruto da Costa, saravah, compadre!
E saravah para vocês todos, bloguistas e comentaristas novos e velhos. Bom fim de semana!
8 comentários:
MEu caro MCR:
Ainda não tinha lido isto e comentei lá no eido, isto que transcrevo:
"o tal procurador de Viana foi morto logo no incício da colaboração bloguística, num ritual lojístico,depois de uma audição atenta da Flauta Mágica.
De vez em quando aparece por aqui um Tamino. Outras, é o próprio Papageno.
E viva a Música.
Hoje, ouvi logo pela manhã, na Antena 2, A. Vivaldi.
Não era qualquer excerto dos concertos das quatro estações.
Era um piccolo concerto fantástico que não conhecia e que me pôs todo o dia à espera de chegar e procurar se teria aquele som.
Não tenho. VOu procurar, porque coisas assim,acontecem raramente.
Quanto ao resto, Sarastro não é o meu sol.
Obrigado pelo comentário. "
Chego aqui e leio uma piccola ode a Mozart!
Ah! E agora reparei...mas aconselhei à consorte a compra do volume de que fala do autor a que se refere.
Era para oferecer a um dos históricos que lá aparece, de nome e foto postada, quase no final, como personagem da fuga de Álvaro Cunhal.Mais precisamente, o médido Carlos Plácido que guiou o velho Dodge que afugentou o Cunhal das garras do forte de Peniche e lhe outorgou a liberdade.
COnheço o médico em causa e asseguro-lhe que é um prazer conversar com uma pessoa assim.
Sei que JPP teve uma entrevista com o mesmo e foi daí que saiu o relato que está no livro.
COmo vê...não é raivinha nem hostilidade, o que sinto em direcção ao autor do abrupto.
Para dizer a verdade, é mais perplexidade. Por ver que não quer entender ou faz de conta que não quer, o que vai dar ao mesmo.
O resto é mera retórica.
Desculpe, MCR, qual é mesmo a sua morada no Domingo? A\feijoada é ao jantar? É que tenho de ir votar ao Marco e depois...
Esta farmácia de serviço tem cá umas belas receitas...
A feijoada é ao almoço. E é á trasmontana. Mas pode aparecer que será um prazer...
eu habituei-me a deitar tarde e levantar cedo. Assim sendo, espero estar despachado pelas 10 da manhã. Depois vou ler a jornalada toda, espanhóis e franceses incluídos (é que trazem os suplementos literários) palear com meia dúzia de paroquianos do mesmo café e zás!, almocinho. Portanto já sabe... O almoço deve ser pela uma e meia.
Estava a brincar, obviamente, caro MCR. Mas agradeço a amabilidade. E bom apetite!
A mim a quem nem o endereço do MCR adiantaria, resta-me a água na boca e o comentário ( um dia me vingo...).
Uma delícia, o post ( estou ficando repetitiva? ), musical, gastronômica e litero-política :)- refiro-me à crônica estudantil, claro. : )
Abraços,
Silvia
PS: ah, se fosse no Brasil, passariam todos fome, só os pregos seriam enviados. e ficariam no mínimo "pregados" ( que aqui se usa para exaustos).
Ò sílvia! V. só promete...
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