03 janeiro 2006

Fazes-me bem

Mesmo não sabendo de ti fazes-me bem, sabes?, mesmo que por ti e pela tua ausência que dói as noites sejam mais curtas, infinitamente mais curtas e feitas de um sono sôfrego.
Ambos sabemos que no dia em que nós quisermos saberemos onde está o outro, afinal é tão fácil, tão mais fácil ainda se o tivéssemos querido naquela noite em que, como num acordo tácito, quisemos que fosse assim, assim como foi. Eu de ti não sei por quê e de mim sei pouco, talvez seja do medo, o medo que me ganhou depois de algumas falsas partidas que eu sempre soube que eram falsas como pechisbeque. E foi por causa disso, sobretudo por causa disso, que entrei na rota da fuga, galgando precipícios farto dos tempos loucos policromáticos à força, dessas minhas pequenas vitórias que a Ju e os outros viam e os divertia como se fosse um jogo, a rota da fuga dos amores fugazes e apressados, declinados em momentos de nenhuma esperança e que ardiam como fósforos, uns atrás dos outros e foi por isso também que, cansado do teatro, me ancorei na minha circunferência.
Tu não mataste em mim o medo, esse medo que agora é mais de ti do que de mim, mas o medo relativizou-se porque o medo é pouco quando o peito dói da lembrança e quando sinto que tu estás aí e a minha circunferência está aberta à espera que queiras entrar e fazer dela uma jangada de lápis-de-côr.

12 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Amigo Carteiro, que belos escritos nos vem ofertando no dealbar do novo ano! Eu j´´a gostava do seu estilo, como e sabido, mas agora surpreende...

o sibilo da serpente disse...

Obrigado. Mas não foi para isso que aqui vim. Vim para dizer o que tenho andando a pensar, lamechas, que sinto uma enorme falta de si aqui e sinto que todos sentem a sua falta aqui. Eu acho sempre que aqueles de quem gosto e que num momento ficam em silêncio, é porque estão bem, quase sempre melhor do que estão antes de entrar no silêncio. Pressinto que a menina está bem e fico contente. E, por isso, só isto.
Quanto ao resto, sobre mim, não é uma questão de estilo: é um estado de alma :-)

M.C.R. disse...

Caro Carteiro: nos loucos tempos de Coimbra havia uma expressão no nosso grupo que significava imediata aprovação. A bem dizer isso vinha de um qualquer circo de províncias que em que trabalharia uma certa Mimi que dava saltos mortais ou outra barbaridade do mesmo jaez. O Mestre de Cerimónias anunciava a rapariga controlava o nosso eventual suspense e uma vez feito o exercício dizia "Oliops, já está".
Permita-me, pois: Oliops, já está!!!

PS:A menina Kami, que deu um arzinho da sua graça fará o favor de saber que também eu, igualmente lamechas mas incapaz de mentir em coisas destas, tenho saudades dela. Muitas!

Primo de Amarante disse...

A escrita intimista bloqueia-me e, por isso, não consigo comentá-la. Sempre que a usei, senti, depois, um certo vazio. Uma espécie de sensação de que alguma coisa tinha saído de mim que só a mim me pertencia. Percebo que somos diferentes e que ao Carteiro até seja útil os comentários que sobre o seu intimismo são feitos. Esta explicação só serve para sublinhar o meu defeito e para garantir que o meu silêncio não significa alheamento ou falta de sensibilidade aos problemas muito pessoais.

o sibilo da serpente disse...

Caro primo de amarante:
percebo bem o que quer dizer. Todavia, e como bem sabe que anda por aqui comigo desde o princípio, nunca fui dos que escreviam para o comentário. Escrevo para os outros, é certo, mas não fico à espera do que os outros dizem nem magoado quando os outros silenciam o que sentem pelo que escrevo. De qualquer modo, o seu comentário é interessante, porque revela as diferenças entre as pessoas.
Diz o caro primo que de cada vez que recorreu à escrita intimista e a expôs em público, sentiu que perdia alguma coisa de si. É curioso. O meu registo por aqui sempre foi mais virado para o intimismo - para escrever sobre outras coisas sempre posso recorrer aos jornais, onde ainda por cima me pagam -, porque, de cad vez que o faço sinto que ganhei alguma coisa. E sinto-me mais forte. E mais cidadão.
Não fora, aliás, este ser o sentimento partilhado por muitos e quantos livros - em prosa ou em verso - ficariam calados nas gavetas?
Diferente seria se eu tivesse os meus textos guardados e alguém os roubasse e os expusesse publicamente contra a minha vontade. Aí, sim, sentir-me-ia vazio, como o Otelo de Shakespeare quando diz: «Perdi a minha reputação! Perdi a parte importante de mim mesmo! O que resta pertence à besta". E a seguir: "A boa reputação no homem e na mulher é a jóia mais preciosa da alma; que me roubem a bolsa ou a roupa, isso pouco importa, nada vale; foram minhas, são dele, e tinham sido já de milhares de pessoas; mas aquele que nos rouba a boa reputação, rouba-nos uma coisa que já não o enriquece a ele e me torna verdadeiramente pobre a mim".
A publicidade dos meus textos, voluntária, não me torna mais pobre. Pelo contrário, é uma forma de encontro comigo e uma forma de clebração da vida. Terá sido por sentir o mesmo que Lobo Antunes autorizou que fossem publicadas as cartas que escreveu à mulher, nos tempos idos da guerra colonial.
Um abraço do carteiro

Primo de Amarante disse...

De vez enquando aparece o meu pseudónimo "primo de Amarante". Este é o pseudónimo que uso no blog do meu amigo Hugo de Amarante (margem esquerda). E nesse blog também tem aparecido "compadre esteves". Sou um nabo nestas questões cibernéticas e não sei como é que isso acontece.
Voltando á sua resposta. Naturalmente não há duas pessoas iguais e, como sabe, os psicólogos até têm uma caracterização longa de maneiras de ser. Eu,quando falo do que me é intimo, procuro
universalizá-lo, por forma a esconder a pessoalização. Não considero isto grave, apenas é uma maneira de ser que pode não ser bem entendida. Aliás, só gosto de desabafar com amigos que partilham os seus desabafos comigo. De qualquer forma, o importante é que as pessoas se sintam bem consigo mesmo.
Um abraço.

o sibilo da serpente disse...

Imaginava lá eu que o compadre e o primo eram um só! Deixe lá que essas trocas também me acontecem, que também sou um nabo nestas (e noutras) coisas.
Voltando ao tema. Eu acho que durante muito tempo fui incapaz de manifestar afectos. E muito menos em público. Não gostei dessa fase, sabia-me mal, não era eu. V. conhece-me e sabe que costumo colocar nas coisas a maior transparência que posso. Em tudo. Daí que muitas vezes até possa ser mal entendido, porque não é suposto ser tão claro, mesmo quando se trata de reconhecer fraquezas.
Agora apetece-me cantar e contar as coisas boas que sinto. Gosto de mim assim, da mesma forma que gostava quando os meus escritos intimistas eram mais tristes e mais depressivos. Se o fiz nessas altura, por que não fazê-lo agora? Gosto de mim assim e já não vou a tempo de mudar, meu amigo. Um abraço

Primo de Amarante disse...

Penso que já numa certa ocasião falamos disso e nessa altura dei-lhe a entenderdeter a minha posição. Durante alguns anos da minha vida, aprendi a meditar sobre o que se passava na minha interioridade. Talvez isso tenha funcionado como uma espécie de "deformação profissional".

Outra coisa: já reparou na reforma do Avelino?!...2.822,20 Euros. Srviu-se do orçamento da Cãmara do Marco como se o dinheiro fosse dele, levou as finanças da autarquia à falência e ainda lhe ficamos a pagar uma cota de 2.822,20 Euros.

o sibilo da serpente disse...

Primo-Compadre: a meditar ando eu há muito :-) E cresci, um crescimento dorido, mesmo quando tentei sempre não perder a substância. E acho que não perdi. Se bem se recorda, eu já aqui disse um dia - ou será que disse a laguém daqui pessoalmente? - que houve algumas coisas de que desisti. E citei um exemplo: desisti de um dia ter um cargo público e dava como exemplo o facto de escrever publicamente escritos intimistas.
Esta é a minha verdadeira liberdade. A liberdade que interessa. Opoder dizer, em cada momento, o que penso e o que sinto. Que hei-de fazer? Só assim me sinto livre.

Primo-compadre: deixe lá o homem ganhar a reforma. É o que lei manda, acho. Se isso fosse o mais grave, se fosse esse o rombo maior que ele deu na vida de todos nós não haveria problemas.

Muitas coisa que são já públicas tornam esse pormenor irrelevante. E mais irrelevante serão quando se souber o resto...

Abraço

Primo de Amarante disse...

Um dia destes vou fazer um post sobre o intimismo. Penso que ele é a marca da pos-modernidade. Eu sou neo-moderno e não pos-moderno, no sentido que lhe foi dado por Lipovetsky. A propósito, já leu deste filósofo "A era do vazio"? È um ensaio que marcou a desconstrução psicológica do pos-modernismo. Foi editado pelo "Relógio D´agua"

o sibilo da serpente disse...

Escreva, compadre, escreva. Quanto ao mais, eu nem sou pós-moderno nem neo-moderno. Temo até nem ser moderno. Quando tinha 19 anos, eu até impressionava a miúdas quando dizia Sou o último romântico da era atómica! Um must. Não, não li esse. Perdi-me pelo caminho quando me cansei de ser um geniozinho e lia Camus e Sartre, os livros que os meus tios que conhece me emprestavam,e eu só tinha 11 ou 12 anos. Depois cansei-me. cansei-me da falta da liberdade que não davam ao geniozinho e vulgarizei-me. Não tanto ao ponto de ser como são aqueles que agora, já licenciados, não lêem sequer o jornal todos os dias. mas perdi qualidades. Daí que, se calhar, agora só saiba escrever o que escrevo. mas não resisto a um desafio: e vou ler esse, sério que vou. e depoois discuto.

Primo de Amarante disse...

Não é uma questão de opção (ser isto ou aquilo) mas de um modo de estar. Somos nós e também as circunstâncias e estas são diferentes para cada um de nós.O intimismo é um estilo próprio de um modo de estar marcado pela psicologização da vida e é isso que é caracterizado com o conceito pós-moderno. Se ler olivro, vai gostar.