Uma extrema-direita racista e xenófona abriu caminho na Dinamarca e provocou estragos. Felizmente, há dinamarqueses que não pensam assim. Recordando aquele belo país, o pôr-do-sol em Copenhaga, na praça Nytorv, os veleiros de Nyhaven, onde viveu Hans Cristian Anderson, aqui deixo a opinião de dois dinamarqueses qualificados, que poderão ler no “Libération” de 9 de Fevereiro último, numa tradução do blog “Palavras & Imagens” (http://parolesimages.blogspot.com/):
“Foi a xenofobia envolvente que deu origem à retórica do choque das civilizações – Um contexto caricatural dinamarquês”
“Foi a xenofobia envolvente que deu origem à retórica do choque das civilizações – Um contexto caricatural dinamarquês”
por Heidi Bojsen (professora na Universidade de Roskilde) e Johan J. Malki Jepsen (politólogo em Copenhaga)
A questão das caricaturas de Maomé é um assunto que diz respeito a todo o mundo. As representações que se relacionam com esta questão balançam entre diversos registos do universal, para se concretizarem em situação particulares: o humor que elucida, emparelha à vontade com a provocação que fere; a arrogância, o desprezo e a ignorância confundem-se facilmente entre as intenções mais nobres e os ideais mais importantes. Todas as pessoas podem sentir-se tocadas e ver nesta situação uma questão de princípios. Cada um deles, à luz dos seus próprios interesses, da sua sensibilidade, da sua fé e da sua cota parte de senso comum.
No entanto, esta questão tem uma história muito mais ambivalente do que o possam deixar crer o maniqueísmo no qual acabou por ficar aprisionada. Pensamos que se torna um imperativo relembrar o contexto específico no qual estes desenhos apareceram (na ocurrência, o contexto dinamarquês), sem o qual toda a compreensão da questão que se encontra em jogo seria ilusória e qualquer forma de sair da presente crise seria vã. Não pretendemos de forma alguma ditar qual deveria ser a reacção de uns e outros. A nosso intenção aqui é apenas de esclarecer e de informar. Numa só palavra, de contribuir para repôr o senso comun na via do bom senso. Estas caricaturas não apareceram na Dinamarca a partir de uma tábua rasa. O debate público dinamarquês tem-se centrado, já há muitos anos, e com uma intensidade até à data inigualável, sobre a questão da alteridade, relevando da mesma sobre a crise identitária que atravessa o país: imigração, integração, Europa, mundialização, “valores dinamarqueses” (danskhed), constituindo os termos de um discurso público generalizado. Este tipo de discuros acabou por dar origem à injúria xenófoba e à falta de respeito. Os esterótipos tornaram-se, em certa parte, demasiado importantes nos meios mediático-políticos, um valor absoluto da retórica do discurso público. A inevitável consequência desta efervescência do debate público foi a de criar uma normalização e banalização da xenofobia numa não negligenciável parte da sociedade dinamarquesa, em nome do princípio sacrosanto da liberdade de expressão.
Na nossa sociedade, onde a cultura política repousa fortemente sobre o pragmatismo e o consenso, estas ideias populistas serviram, essencialmente, para estigmatizar os muçulmanos e o Islão –dos quais não conhecemos, sequer, toda a complexidade e diversidade. A esta situação junta-se o facto de na Dinamarca a Igreja não se encontrar dissociada do Estado. Apesar de alguns defenderem que, todavia, a política está separada da religião. Contudo, apenas existe uma religião de Estado: o protestantismo Luterano. Os padres detêm o estatuto de funcionários públicos. As aulas de “cristianismo” são obrigatórias nas escolas públicas. O registro dos recém-nascidos é efectuado, exclusivamente, pela administração da Igreja Luterana. A grande maioria dos dinamarqueses diz-se “não praticante”, apesar de alguns se considerarem “crentes”. Mas a religião não se trata de um assunto, estrictamente, privado para a maioria dos dinamarqueses: ela é entendida como constitutiva da homogeneidade cultural e da identidade nacionais. Servem-se, também, dessa mesma religião quando se querem encontrar em ritos comunitários, tais como a ceia de Natal ou as festas de casamento. Mas o olhar essencialista predomina: servimo-nos da religião, também, para definir o “estrangeiro”, do qual não vislumbramos imediatamente a proximidade identitária.
O recurso crescente à retórica da estigmatização não se limitou, infelizmente, aos termos utilizados pelo discurso público. De facto, a legislação dinamarquesa não tardou a tomar a dianteira. Desde 2002, o Governo reduziu o apoio social aos estrangeiros nos primeiros meses do seu período de residência no país. Esta lei, segundo os seus apoiantes, deveria servir de incentivo para uma melhor integração dos estrangeiros. Porém, e segundo a análise do Centro de Investigação Social CASA, ela conduz, sobretudo, a uma acentuada marginalização. Em 2002, foi, igualmente, votada a chamada “lei dos 24 anos”; a qual interdita os cidadãos residentes no país –incluindo os dinamarqueses- de habitarem conjuntamente com o seu esposo ou esposa de nacionalidade não dinamarquesa, no território do reino, antes que qualquer um deles atinga os 24 anos. Esta lei foi criticada pelo Comissariado encarregue dos direitos humanos, no Conselho da Europa. Uma crítica partilhada e defendida pela directora do Instituto Dinamarquês dos Direitos Humanos, em Copenhaga, e por diversos políticos da oposição.
É esta nova prática do poder, fundada sobre a ideia da “tolerância zero” (ou intolerância?), inaugurada pelo chefe do Governo actual, que foi empregue no que diz respeito aos embaixadores de países muçulmanos. Ao recusar-se a recebê-los e a dialogar no terreno da diplomacia (tal como lhe tinha solicitado), após a publicação das caricaturas de Maomé, o chefe do Governo demonstrou uma falta de discernimento surpeeendente. O assunto transformou-se num incidente diplomático. As bases da internacionalização da questão das caricaturas foram, desta forma, lançadas. A visita de um grupo de ímams, alegadamente fundamentalistas e residindo na Dinamarca, a certos países árabes, em busca de um apoio à sua causa, abriu o segundo acto desta história. Surpreendido e enervado com a rapidez e eficácia da campanha de boicote dos produtos dinamarqueses, o Governo preferiu negar a sua quota parte de responsabilidade e escolher a “fuga em frente”, escolhendo uma estratégia de coligação, europeianizando, assim, uma questão de política interna que subitamente o ultrapassava. A tentativa de alargar à escala internacional esta questão, colocando de um lado o Ocidente e do outro o mundo muçulmano, em torno, exclusivamente, da clivagem da liberdade de expressão, é das mais cínicas e perigosas para a estabilidade –já amplamente colocada em perigo- de uma grande parte do mundo.
Curiosamente, a oposição dinamarquesa demonstrou uma total impotência face ao desenvolvimento de todo este caso. Mas a impotência não significa a sua não-existência. A título de exemplo, colectivos de médicos, de padres, de escritores, de embaixadores na reforma, alguns jornais e um número considerável de associações tentaram expressar a sua desaprovação vis-à-vis desta orientação da política na dinamarca. Em grande parte dos casos, a sua contestação foi recusada. Torna-se importante salientar que os dois outros diários da Dinamarca, o “Politiken” (centro-esquerda) e o “Berlingske Tidende” (conservador), decidiram abertamente, desde o início, não caírem na “armadilha” islamofóbica da pseudo luta pela liberdade de expressão –invocada pelo outro jornal que iniciou toda esta crise, o “Jyllands-Posten”.
O cerne real da questão das caricaturas não tem nada a ver com uma ameaça à liberdade de expressão. Algumas pessoas querem esconder uma floresta, apenas, com uma árvore! Os desenhos não foram publicados com vista à fomentação de um verdadeiro debate. Eles derivam, isso sim, de uma empresa de estigmatização e de propaganda xenófoba e populista para com uma minoria étnica existente na Dinamarca. O que aqui se encontra, verdadeiramente, em causa é o respeito pela diversidade, que as esferas nacional-populistas recusam – chegando ao ponto de brandir em defesa da liberdade de expressão, quando esta serve os seus interesses. A liberdade de imprensa, também, nunca foi ilimitada! Não se tratando aqui de a amputar. Um mínimo de vigilância ética, de sentido das responsabilidades e de respeito pela diferença, talvez, nos fizessem sair dos meandros dessas pulsões destruidoras, herdadas do tempo onde justificávamos a submissão de certos povos pela necessidade de os tornar civilizáveis. A liberdade de expressão exercida, num clima onde um dos parceiros é sistematicamente tornado como o principal suspeito, não é uma liberdade real; porque a liberdade de expressão –compreendendo-se aí, também, a sátira mais ácida- será em vão se ela não for acompanhada de um enquadramento ético, partilhado e de uma tomada de consciência das relações de força em jogo. No presente caso, o agressor pretende transformar-se na vítima. Uma aberração! Dito isto, a Dinamarca conta, ainda, com numerosos adeptos do bom senso, das mais diversas crenças religiosas, os quais têm necessidade de apoio para saírem desta lógica louca do “estás connosco ou, então, estás contra nós” e para defenderem o respeito pela diversidade. O que se torna importante é viver em paz e respeito mútuo, e não cair na armadilha da ideologia do choque das civilizações, na qual sonham os dois extremismos predominantes actualmente: o fundamentalismo religioso e o populismo xenófobo.
6 comentários:
Para compreender a força de Ossama Bin Laden temos de perceber o que é uma humilhão feita à crença islamica em regimes teocráticos.
Caro compadre: o que distingue a cultura cristã da cultura teocrática reside no facto de nós já termos feito a distinção entre igreja e estado e na cultura islâmica isso não acontecer. Mas, mesmo assim,não se esqueça dos abaixo assinados e dos protesto que os cristãos e a igerja fez pelo cartoon do António. Além disso, é uma questão de principio civilizacional o não escarnecer das crenças. A reacção pode estar a ser aproveitada, mas porque lhes deram razão para isso. Aliás, como sabe ( e Ana Gomes já referiu), alguns governos árabes tentaram já em Outubro, por via diplomática, resolver esta questão com o governo da Dinamarca. Mas não valorizaram a questão, não tiveram a sensibilidade suficiente para perceberem que se tinham colocado em cima de um barril de pólvora. Agora a CIA através de um Jornal procura dizer que as manifestações àrabes foram preparadas em Meca numa reunião a que os jornalistas não tiveram acesso (pelos vistos só a CIA!...) Não vale a pena enfiar a cabeça na areia: cometeu-se um erro que funcionou como bola de neve dos erros que estão a acontecer nos países árabes. E é preciso pôr cobro a isto(não com guerras santas ou civilizacionais). E só há uma forma: reconhecer o errro de faltar ao respeito aos que veneram Maomé.
Quanto à posição de Freitas de Amaral ele justificou-a: disse que ela foi concertada com outros governos e inclusivamente com a Casa Branca. Não tenho que duvidar disso,lembrando-me do que também disse o governo espanhol, francês e inglês.
Não posso ser mais papista do que o papa.
Caro anto: eu já sinto neste debate uma espécie de pornografia, ao reparar que aqueles que defendem a publicação das caricaturas contra Maomé, se são coerentes, têm de aceitar que "essa medida" também sirva para apoiar as caricaturas sobre os campos de concentração nazis que alguns jornais árabes estão a publicar.
Dou por terminado este debate, com um sentimento de nojo e nausea.
Podem-me acusar detudo, menos de sectário. Tenho o direito de dizer BASTA! E é isso que eu faço. Também lhe digo que o meu basta não se refere a si concretamente, mas a um tema que já me enjoa. É uma questão estomacal. Não tem nada a ver consigo pessoalmente. É um problema de digestão, percebe?!...
Dá-me esse direito, não dá!?...
Só mais uma coizinha: as citações que eu faço dependem de mim. Dou-lhe o direito de gostar dos EUA, dê-me o direito de citar Ana Gomes Não é a mim que se pode aplicar o sectarismo.
Entendo que a inteligência manifesta-se no ser capaz de ouvir as pessoas diferentes, com ideias diferentes. E porque o tenho sabido ouvir, agradeço-lhe o elogio. Mas olhe que penso como o Descartes: em matéria de inteligência ela está muito bem distribuida (de igual forma) por todos. O problema é saber utilizá-la bem.
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