16 fevereiro 2006

Reestruturação da Administração Central do Estado: O fim do Direito Administrativo?



Quanto ao Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, João Figueiredo disse que, apesar dele apontar para a redução da dimensão estrutural da administração, "ao mesmo tempo que serão extintos serviços outros serão criados".

(in "Diário de Notícias” de 16.02.2006).


Pois é. Criaram-se muitos Institutos Públicos e agora é o que se vê... do 80 passa-se para o 8... agigantou-se a Administração Indirecta do Estado numa atitude irresponsável e agora "encolhe-se" a Administração Directa do Estado, precisamente esta que poderia funcionar de modo mais racional mais eficiente e que ficava mais "barata" que os Institutos...mas não dava tantos "tachos"...direito a mordomias, carro com motorista, cartão de crédito, viagens ao estrangeiro...

Na verdade, o papel que desempenhavam as Direcções Gerais de cada Ministério, começou a ser feito por Institutos Públicos, autênticos sorvedouros de dinheiro, do dinheiro de todos nós, contribuintes.

Agora pretende-se arrepiar caminho no pior sentido, ou seja: acaba-se com o vínculo à Administração Pública, amanhã aqueles que a esta chegarão serão trabalhadores com um mero contrato individual de trabalho, que não confere qualquer dignidade laboral nem cria proximidade do trabalhador à causa pública.

Longe vão os tempos em que a nomeação era uma das modalidades pela qual se constituía a relação jurídica de emprego com a Administração Pública. Era um acto unilateral pelo qual a Administração designava alguém para preencher um lugar do quadro de pessoal de um organismo público e desempenhar, de forma profissionalizada, as funções próprias e permanentes necessárias à prossecução das suas atribuições.

Portugal é o único País a conseguir a proeza de ter acabado com o Funcionalismo Público!

E não se confunda a tão desgastada figura do funcionário público postado por detrás de um qualquer balcão de uma Repartição Pública com o restante corpo administrativo, composto de técnicos capazes e dotados de uma vasta cultura que os capacita a dar cabal resposta aos grandes problemas de gestão da coisa pública, habilitando os decisores políticos a adoptar as melhores medidas possíveis.

É claro que a nomeação, para o Decreto-Lei n.º 25.277 de 22 de Abril de 1935, era algo de muito mais solene, pois o Estado de então revestia-se de um manto de respeitabilidade e autoridade o qual, hoje, se encontra totalmente rasgado…

Rezava este diploma, no seu artº 8º que “ A nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração dos funcionários civis ou militares, não referidos no §6º do artigo 109º da Constituição Política da República, bem como quaisquer outros actos do Governo que modifiquem a sua situação, serão feitos por portaria assinada pelo Ministro de cujo Ministério depender o respectivo serviço.”

Já o Decreto n.º 26.341 de 07 de Fevereiro de 1936, rectificado em 21 de Fevereiro de 1936 e com nova redacção dada a alguns artigos pelo Decreto n.º 26.826 de 25 de Julho de 1936, dispunha, no seu artigo 1º os diplomas que haveriam de ser publicados consoante as diversas vicissitudes. Assim dispunha:

“O provimento de lugares e cargos públicos, a promoção, a colocação, transferência ou qualquer alteração na situação dos funcionários, bem como a sua exoneração ou demissão devem ser feitos por meio de diplomas, nos termos seguintes:
a) Por decreto, quando se trate de nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Procurador Geral da República, dos agentes diplomáticos e consulares e dos governadores gerais ou de colónia;
b) Por portaria do Ministro respectivo, quando se trate de nomeação, reintegração, reforma, aposentação, exoneração e demissão, promoção, concessão de diuturnidade, colocação, transferência ou qualquer outra alteração ou modificação na situação dos funcionários civis ou militares, com excepção dos mencionados na alínea anterior, sempre que a lei atribua ao Ministro ou ao Governo a competência para a prática desses actos;
c) Por contrato, sempre que se trate de provimento para que a lei prescreva ou permita este regime;
d) Por alvará, quando se trate de provimento de lugares por nomeação ou assalariamento para lugares dos quadros ou actos referentes a pessoal, da competência de quaisquer entidades ou funcionários, com excepção dos Ministros. "


Nestes dias que passam, foi abandonado o paradigma do Funcionário Público entendido como servidor de uma causa nacional.

Na verdade, já o Prof. Marcello Caetano afirmava que “ O funcionário é um servidor da Administração, mas é também um servidor do público cujos interesses afinal a Administração tem de zelar” – (Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, fls.747.)


É que a Função Púbica encontra-se, ao contrário do que alguns pretendem propalar, dominada por Princípios estruturantes da sua actividade que a cingem rigorosamente à prossecução do bem colectivo. O que os homens fazem a esses princípios é outra história…
Dos princípios da prossecução do interesse público; da continuidade e do bom funcionamento do serviço público; o princípio do mérito, o princípio da igualdade, o princípio da participação; e o princípio da responsabilidade, são princípios estruturantes da função pública considerada, quer enquanto parte da dimensão organizativa da Administração Pública, quer enquanto parâmetros a que estão subordinados os sujeitos partes de uma relação de trabalho no seio da Administração Pública.

Portanto, princípios estruturantes da função pública enquanto parte da dimensão organizativa da Administração Pública, mas também princípios guia, parâmetros da actuação dos sujeitos na relação de trabalho.

Os interesses públicos surgem como aqueles interesses a cuja prossecução se comprometem os trabalhadores que estabelecem uma relação de emprego público. Há um compromisso por parte daqueles que optam por trabalhar na Administração Pública, há um compromisso que é o compromisso de prosseguirem os interesses públicos.

Os interesses públicos aqui não são um qualquer somatório de interesses particulares, nem correspondem aos interesses de um qualquer grupo dominante, não correspondem aos interesses de um grupo populacional maioritário ou de um grupo populacional que seja política, económica ou socialmente mais importante.


A ideia de que o Governo é órgão superior da Administração Pública, mas é também o órgão de condução da política geral do país, a ideia de que o Governo tem competência para praticar todos os actos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas colectivas públicas [alínea e) do 199º CRP], a ideia ainda recolhida do 201º, nº 2, alínea a) de que compete aos Ministros executar a política definida para os seus Ministérios, leva-nos à conclusão de que se o Ministro é o superior hierárquico de topo cabe-lhe, designadamente, assegurar que os trabalhadores de um determinado Ministério executem as políticas pelas quais lhe cabe cuidar.

A função pública tem, de facto, que executar as políticas governamentais, mas a função pública é suposto que, se por um lado tem que executar as políticas governamentais (a tal dependência do poder político, a tal ideia de dependência justificada pela legitimidade democrática) é também suposto que o funcionamento das instituições públicas permaneça para além dos ciclos políticos ou que haja a ideia de estabilidade, de continuidade para além dos ciclos políticos.

O que não tem existido nesta III República, instrumentalizada que tem sido a Função Pública e desvirtuada na sua missão.


Hoje, o próprio Código do Trabalho, no seu artigo 6º considerou que aos trabalhadores de pessoas colectivas públicas que não fossem funcionários ou agentes da Administração Pública se deve aplicar “o disposto no Código do Trabalho, nos termos previstos em legislação especial, sem prejuízo dos princípios gerais em matéria de emprego público.”

Mas tudo isto vem ao arrepio da velha tradição administrativista, agravado pelo facto de que o regime regra, o regime da Função Pública “stricto sensu”, ou seja, a nomeação, deixou de vigorar. A predominância já não pertence às relações de trabalho caracterizadas pela nomeação.

Aproximar-se-á o fim de um ramo do Direito tão jovem e promissor como é o Direito Administrativo?

Esperemos que não.

dlmendes

7 comentários:

M.C.R. disse...

Meu caro Delfim

tenho andado ausente do blogue por razões várias ("correntes d'escritas" na Póvoa do Varzim, idas a Lisboa, preguiça -muita!!!-) mas tenho tido a gratíssima surpresa de o ler já como "colega". como sabe foi perguntado á equipa bloguista se achava bem a sua inclusão. suponho que toda a gente concordou e em boa hora se chegou a esse consenso. se provas faltassem bastaria este seu excelente texto que como funcionário público desalentado lhe agradeço. E como cidadão, também.
Um abraço

C.M. disse...

Meu caro amigo MCR, bons olhos o vejam...como se costuma dizer.

Muito obrigado pelas suas palavras.

Já tinha saudades suas...

Um abraço!

(e...desalentados estamos todos nós, com efeito...).

C.M. disse...

Meu caro Nicodemus,

Agradeço-lhe muito o seu comentário, tanto mais que todos nós apreciamos ter interlocutor.

A sua crítica dá-me a possibilidade de esclarecer algo que porventura não ficou bem explicitado.

Com efeito, quando o meu amigo diz que lhe parece uma afirmação acintosa a minha convicção de que o contrato individual de trabalho na Função Pública não conferir qualquer dignidade laboral nem criar proximidade do trabalhador à causa pública tal visão não significa qualquer menosprezo por aqueles que trabalham nesse regime, seja dentro da Administração Pública, seja no sector privado.

O que quero dizer é que devido às “idiossincrasias” da Administração Púlica, a minha convicção é de que esta não pode furtar-se ao respeito pelos princípios que a regem e que só em circunstâncias muito excepcionais ela poderá fugir ao regime estatutário que caracteriza a Função Pública.

A chamada privatização da Função Pública pretende ir longe: ela não se basta com uma operação de cosmética que apenas poderia redundar numa mera “imagem” privada da Administração Pública; o que está em marcha é a modificação, no seu âmago, do instrumento disciplinador das relações de emprego, ou seja, o Direito Administrativo. Na verdade, o contrato individual de trabalho inicialmente foi aplicado em sectores muito específicos para, agora, ser guindado a panaceia para toda a actividade da Administração Pública!

Ora, considero que a actividade administrativa em geral e no plano do emprego em particular, é por natureza algo de público e, assim não poderá ser mudada a sua natureza intrínseca.

A nível constitucional, recordaria aqui o disposto no artº 24º da Constituição de 1933: Os funcionários públicos estão ao serviço da colectividade e não de qualquer partido ou organização de interesses particulares, incumbindo-lhes acatar e fazer respeitar a autoridade do Estado” – afirmação do meu Autor preferido, como sabe…Prof. Marcello Caetano, in “ Estatuto dos Funcionários Civis – Legislação Coordenada, Anotada e Revista”, 3ª Edição Actualizada e Muito Melhorada”, Coimbra – 1949. (Já viu a data? Até me “passo” com estas obras de algum modo esquecidas! Bem que ando por vezes nos alfarrabistas…ainda ando à procura de muitas obras do Marcello…)

Tenho para mim que a Constituição de 1976 continuou esta tradição de autonomizar a Função Pública, sujeitando-a a uma reserva de lei distinta daquela ao abrigo da qual são emanadas as normas laborais. Há uma preferência pelo regime estatutário em sede de regulação das relações de emprego na Função Pública.

Veja que o Tribunal Constitucional, em diversos Acórdãos – atente no Acórdão 142/85 publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ) nº 360(S)-598; no Acórdão 266/87 – BMJ 369-211 - considera que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República abrange a definição dos princípios fundamentais do estatuto geral a função pública e do delineamento geral do seu âmbito, mas não a particularização e concretização desse estatuto. Embora venha reconhecendo que a determinação das matérias que, em cada caso, hão-de ter-se por compreendidas no conceito de “bases” não é pacífica (mas no mundo do Direito existirá alguma matéria que seja pacífica, meu caro?).

Genericamente, o TC considera que “ (…) a reserva de competência legislativa da Assembleia da República definida pelo artigo 168º nº.1, alínea u) da Constituição (correspondente hoje à al. t) do nº1 do Artº 165º) ao actual abrange unicamente o estatuto geral da função pública e o delineamento geral do seu âmbito, mas não a particularização e concretização desse estatuto e o traçado em pormenor do respectivo âmbito de aplicação, no concernente a quaisquer sectores concretos e individualizados da Administração Pública.”- Acórdão 146/92, publicado no BMJ 416 (fls.-265)


Porém, o mais esclarecedor dos Acórdãos por mim respigados parece ser o 266/87 – Acórdão 266/87, publicado no BMJ 369-211.

Neste se afirma que é matéria da “ competência reservada da Assembleia da República o “regime e âmbito da função pública”, por este se entendendo a definição do estatuto geral da função pública, é dizer, a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, do complexo de direitos e de deveres funcionais que valem em princípio para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, fornecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado.”

Está aqui explicitada de certo modo a preferência pelo regime estatutário em sede de regulação das relações de emprego na Função Pública.

Mas olhe, caro Nicodemus, deu-me uma ideia para um post acerca desta vertente do problema. Um destes dias (para não maçar muito), publicá-lo-ei…

Mas concordo consigo que grande parte do funcionalismo público se acomodou à ideia de que não há problema se não se trabalhar bem, com qualidade, pois “não há perigo”, não há sanções. Mas repare que esta ideia apenas terá algum “peso” em categorias profissionais que classificaria de muito “ rudimentares”, pois o pessoal qualificado é óbvio que ama o seu trabalho, tem brio profissional, ama a sua Carreira, tem paixão pela Causa Pública (olhe que ainda há muitos idealistas dentro da Administração Pública…talvez incompreendidos nestes tempos que passam…) e portanto não é a questão de trabalhar com vínculo à Função Pública ou através de CIT que muda a sua postura.

Um abraço e..boa semana de trabalho!


dlmendes

C.M. disse...

Esqueci-me de sublinhar que na Função Pública a figura da NOMEAÇÃO confere, indubitávelmente, maior dignidade ao acto de ingresso, digamos assim, nas funções. Veja-se que a nomeação, para o Decreto-Lei nº 25.277 de 22 de Abril de 1935, era algo de muito mais solene, pois o Estado de então revestia-se de um manto de respeitabilidade e autoridade o qual, hoje, se encontra totalmente rasgado. Rezava este diploma, no seu artº 8º que “ A nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração dos funcionários civis ou militares, não referidos no §6º do artigo 109º da Constituição Política da República, bem como quaisquer outros actos do Governo que modifiquem a sua situação, serão feitos por portaria assinada pelo Ministro de cujo Ministério depender o respectivo serviço.”


Veja a importância, Nicodemus, desta figura! o CIT não tem, efectivamente, esta mesma dignidade. Mas tal decorre, claro, da minha visão do Direito Administrativo.

Um Abraço!

dlmendes

C.M. disse...

A ver vamos, caro Nicodemus, a ver vamos...mas parece-me que as nuvens estão carregadas...

M.C.R. disse...

Caros DLM e Nicodemos
andei por fora e só hoje tenho oprtunidade de deixar esta curta dica: a Função Pública de facto estava de há muito moribunda. As razões para tal são muitas, claro, mas relembro apenas estas:
- o recrutamento faz-se de qualquer maneira;
- os concursos são uma treta (e eu fui presidente de muitos júris) e é dificil não reparar que só existem para falssificar uma promoção;
- o preenchimento de cargos de chefia (por concurso ou sem ele) é absolutamente político e nada tem a ver com a real capacidade para desempenhar o cargo;
- a maior parte dos funcionários (e todas as hierarquias intermédias) foi desresponsabilizada e infantilizada.
- os institutos públicos são um velhacouto para boys & girls
- as notações de serviço, de mérito e agora a contratualização das tarefas não t~em qualquer seriedade e muito menos um simples grama de eficácia.
E etc... Cal-te boca que já falaste demais.

C.M. disse...

eles andam aí...somewhere outside..