Mensageiros das calendas vermelhas
1Mensageiros
das calendas vermelhas
rosáceas roucas da voz
em sangue
na clandestina trave
dos ombros
o que trazem
são as armas
na crosta dos lábios
palavras de vento
vertidas sobre as cinzas
que há décadas ocultam
o secreto ruído de fogo
2
Um subúrbio de rumor
colhe de surpresa o peso
da boca as densas ferrugens
que a mulher aspira da noite
de colmo onde um homem se adivinha
Rumor avizinhando-se da manhã
do parco meio-dia das aldeias
Dos campos varridos de alvoroço
em abandono: os arados
à deriva
aproam a terra pelo dia
3
A garupa dorida das azémolas
pelas eiras e rossios
soldados da terra descem
com a monção de poeiras
4
Sem generais se sem nome
passa uma tropa suada
a lavra de cicatrizes
revelada
no mapa húmido das camisas
tropa de pés descalços
e de cavalos sem sela
derruba os muros
levanta os marcos
veloz que à espera
há casas queimadas
e mulheres captivas
5
Levíssimo no ar
um pano seco tenso
luminoso
saia rasgada ou blusa
contamina o vento
da mancha viva
de tijolo e sangue
6
Toda a cavalaria
percutindo as colinas
as pedras fundas da terra
de noite em noite
cavalos púberes
resfolgantes
usando as fontes da província
arcas
de granito im-
pregnadas do sal
crestado das narinas
onde os soldados
lavam o rosto
Cavalos negros ou nevados
com o cheiro a suor
à fêmea poção da pólvora
a poeira sangrenta
acumulando-se num cerco
ao perímetro marinho
dos olhos
apertados entre freios
inscritas pelo dorso
varizes de água
drenam
o fogo do solo
7
Cavalos a quem o tempo
apagou das ancas
rudes signos de posse
bravos arreatados
para uma guerra
soprando um ocre
sintoma a cio
Quem os arrebatou das fazendas
e dos quartéis vigiados
quem os leva pelos lugares
na marca visível
dos poços vazios
Quem os cavalga de brisas
tocados pela surda
gangrena das esporas
Luis Guerreiro, Guia de salto, Centelha, Coimbra 1974 (poemas de 1966.1967 e 1968 publicados primeiramente em Vértice)
Transcritos por mcr para o dia mundial da poesia em 2006. Mais notícia em comentários.
3 comentários:
Este comentário serve pelo menos para uma coisa: não ocupar demasiado espaço de post.
Serve também para explicar a razão deste post. À uma entendo que o poema do Luis é belíssimo. Depois ele foi publicado nos anos de chumbo na "Vértice", revista resistente onde colaborei anos a fio. Em terceiro lugar nunca mais soube do Luís Guerreiro, um gajo de Letras, cara corada (parecia um minhoto) e bom companheiro. Soubemos que ele se tinha exilado (mas nem isso é certo...) ainda nos anos sessenta para fugir à tropa e à guerra. Em 74, ainda antes do 25 de Abril, terá mandado este escasso livro para a Centelha (editora de que Anto, Manuel Simas e eu -entre muitos - fomos sócios).
O poema é uma longa metáfora da guerra insurreccional, claro. Mas é num tom ao mesmo tempo épico e comedido, quase seco. A violência que aflora é dada com discrição, com contenção. E isso há quarenta anos estava em crise porque a época parecia pedir lirismo a rodos e muita declamação.
É com alguma forte e incontida emoção que agora o dou a ler aos bloggers mais resistentes. O livrinho às vezes aparece nos alfarrabistas. Comprem-no que é bom.
E lembrem-se duma pequena editora formada por estudantes de Coimbra que durou um bom par de anos e publicou quase duzentos títulos, dos quais uma boa parte foram livros de poesia.
Poderia ter "postado" um poema do Anto mas ele pertence a este grupo e portanto deve ser ele a publicá-lo aqui, hoje.
E se alguém souber do paradeiro do Luís Guerreiro antigo aluno de história ou filosofia em Coimbra, anos 60, que me avise. Gostava mesmo de o rever.
Continuando a chatear o indígena: esta farmácia traz o nº 22. Ora para quem (por penitência) tenha andado atento ela deveria ser a nº 18. Porém a autocrática Kami cominou-me a ordenar os meus textos, coisa que vou penosamente fazendo. Descori que entre farmácias numeradas e suplementos às ditas cujas havia, com esta de hoje, 22 edições. Perceberam?
Claro que a temível czarina que temos por administradora vai ralhar-me por eu ainda não ter ido ao tal sítio cá dentro onde se ordenam os postais. Mas prometo que vou lá, Kami, ando só a ganhar coragem. Juro. Tchikuembo xanhaco! (expressão ronga para pôr o DLM à nora, ele que tem a mania de falar de África...)
O blogue está mais escuro que breu. juro que não fiz nada. Será por ter apelidado a nossa doce directora de czarina. Retiro já a expressão.
Fantástico, o poema! Trabalhado cuidadosamente e tão bom, tão bom,
Obrigada, MCR.
Abraços,
Silvia
Enviar um comentário