26 abril 2006

Despedida

Despeço-me de ti, as pernas cruzadas sobre o braço do sofá da sala, a música ao fundo, florescida a orquídea, o cão a dormir sem solenidade. A fumaça do cigarro lenta no ar, e nas mãos uma taça de vinho tinto, dos que tu gostas e eu também gosto.

Despeço-me de ti em silêncio . Despeço-me de ti para não ter que me despedir de mim . Uma pessoa não pode viver na dor e na falta a esperar que o tempo volte.

Despeço-me de ti ao som da memória, da visão clara do teu corpo enrodilhado no meu, da visão clara do teu amor colado ao meu. Do teu pranto.
Tantos anos me custaram despedir-me de ti. Tantos anos a conversar contigo sozinha no quarto, a querer beijar-te, a quase ver os teus olhos desejosos a meterem-se nos meus. Memórias.

O amor não é memória. O amor dobra a esquina e temos nosso coração nas mãos. E queremos ofertá-lo a um estranho. Porque por ele o coração saltou-nos do peito. E seus olhos miúdos têm um brilho oculto pela tristeza . E seus gestos diferentes nos atraem, Seu corpo nos chama e o nosso quer atendê-lo. E uma beleza fulge naquele rosto. Nos nossos rostos. E um estranho é sempre um estranho, não és tu, nunca será. Mas a vida usa palavras fora do comum às vezes. E nós, todos nós, queremos amar.

Não é morte, o amor. Nem tempo, nem metafísica, nem psicologias. O amor tem vontade própria, não quer ser explicado. Não vive de reminiscências, elas são apenas a lembrança do que ele um dia foi.

Amor é presente, agora, já. Vida desfraldada , mergulhada no mar, a escalar as encostas das montanhas, a embrenhar-se na selva. O corpo e o que mais pode haver além dele, dedicados a isso. Tu sabes.

Despeço-me de ti ao som de um cello, de séculos atrás, que tu me deste.


Um beijo e adeus.


Silvia Chueire

4 comentários:

M.C.R. disse...

Ele há momentos em que muitas palavras (e logo quem fala!...) destroem um comentário. Destroem a surpresa, o espanto e a admiração.
Magnfico texto, chegará?
Melhor: se eu agarrar numa boa garrafa, dessas de cor verde para tintos de alta qualidade, se escrever a azul forte "magnifico" num papel encorpado, bem enrolado e selar depois a garrafa, esperar os alíseos propícios ou uma corrente do golfo ao contrário (esta deve ser melhor), abeirar-me da praia naquela hora muito matutina em que o mar ainda está a dormir e, docemente, entregar a garrafa aos bons cuidados duma onda mansa ja em retirada, dizendo tão só: leva isto à Silvia do outro lado de tanto mar, chegará a garrafa?
Não interessa o tempo que demore, não interessa se ainda estaremos vivos, basta que a garrafa, essa jangada de esperança verde chegue a bom porto.
E que uma mão inocente a abra.
E que uma imaginação curiosa se pergunte: o quê?
E que, de pista em pista, se chegue a este texto que agora comento, com muitas palavras, quando eu só queria dizer uma que as resumisse a todas, mas que se acotovelaram impacientes á porta esquerda do coração, correram pelo peito sobressaltado até aos braços e daí aos dedos e obrigaram-nos maquinalmente, sem sequer saber porquê e para quê a dedilharem este computador para fazer chegar, deambulando, esta carta de admiração, a segunda depois da de Pedro de Vaz Caminha a anunciar a descoberta do Brasil. Do Brasil de além tanto mar, do Brasil aqui tão perto.
Boa viagem garrafinha, bom vento, e boas estrelas te guiem.

Kamikaze (L.P.) disse...

Superlativamente belo o seu poema, Silvia! Profundamente belo, tal como a alma de quem o escreveu e que nele se desvenda ainda mais e mais.
Um poema a figurar na "minha selecçao de favoritos", sem duvida!

C.M. disse...

São 21H30. Cheguei à uma hora a casa, vindo da bela cidade do Porto, que considero muito mais bela e romântica que Lisboa.

Dou uma espreitadela ao Incursões. E deparo com o poema. LINDO!!!!!!!

É um compêndio daquilo que o amor é.

Nunca deveria haver, nas nossas vidas, qualquer adeus!!

Silvia Chueire disse...

Vocês sabem porque já declarei aqui várias vezes. A prosa não é o meu forte. Fico feliz que tenham gostado, mas acho que é mais do que mereço. Em textos como este é tão difícil escapar do lugar comum, da pieguice.
Ainda assim fico feliz. Foi um esforço escrevê-lo por muitas razões, inclusive as já mencionadas.
A ficção da despedida não é fácil escrever. : )
Já me alonguei demais, só tenho a dizer-lhes que me emocionaram e que agradeço por esta emoção.

Um grande abraço,

Silvia

PS: MCR não se esqueça de enviar a garrafa ao mar...