Ao princípio eram os livros
Não fui (e o meu irmão ainda menos) uma criança sossegada. Traquinas será mesmo um adjectivo piedoso para descrever o permanente bulício em que ambos nos instalávamos mal as autoridades (materna, paterna ou tão só a das modestas serviçais que naquele tempo de chamavam criadas de servir) viravam costas. Elas a desaparecer e nós a virar (aproveitemos o verbo anterior que é muito expressivo) tudo de pernas para o ar. Aliás nesse capítulo, o meu irmão era bem pior: loirinho, com ar de mosquinha morta, tinha um cérebro fervilhante para tudo o que não podia fazer. Mal andava ainda, fugiu de casa, descendo umas escadas enormes, calcorreou um rua que teria os seus bons duzentos metros e já só foi apanhado, a chorar, por uma peixeira caridosa, junto da doca. Como o galfarro dava ao pulmão que não era brincadeira, ela entendeu calá-lo entupindo-o com um farto naco de broa das Alhadas. Aí a criaturinha desistiu da choradeira e dedicou-se com afinco á tarefa de roer a broa milagrosamente posta ao seu alcance. Um deus benfazejo (muito vulgares na Figueira) fez com a que a salvadora daquele aventureiro resolvesse subir a mesma rua que ele descera (estão a ver aqui a referencia implícita ao Veloso amigo do Camões, não estão? Ah esta intertextualidade tão cara à prima Maria Manuel...). Um mimoso grupo de tias que estava á janela achou a criança parecida com um dos sobrinhos e devem ter pensado tanto que a pobre carregadora do comedor de broa olhou para cima e perguntou se “menino era dali”. Foi um baque! Como era possível? Logo o Tanézinho tão loiro e sossegadinho...
A partir deste momento fundador, o benjamim dos Correia Ribeiro, não parou: deitou fogo a uma cama estando ele debaixo, pintou a parte de baixo do mármore de uma credência com vários batons da minha (e dele) Mãe que se espantava com a velocidade a que os ditos se gastavam e por aí fora. Tudo isto com o mesmo ar de menino Jesus que Deus lhe dera...
É costume dizer-se que a infância é uma doença de S Vito que se cura com a passagem do tempo. No caso em apreço, o dele claro e o meu, que, moreno até dizer basta, tive sempre a fama e raras vezes o proveito das pequenas picardias quotidianas, parte da nossa espástica actividade delituosa, morreu com a leitura. Dizer morreu é talvez excessivo. Ponhamos que amainou. Ora aí está: amainou, verbo marinheiro, próprio de que vem das margens do mar oceano.
Temos uma ligeira diferença de idade. Sou mais velho 14 meses, o que agora não é nada e pouco foi quando éramos dois pequenos delinquentes infantis. Não espantará que tenhamos aprendido a ler quase ao mesmo tempo. A ler alto, ou seja em alta voz. A ler as “aventuras do gato das botas de sete léguas”, dos “três porquinhos” e toda uma série lindíssima de livros muito ilustrados e publicados no Brasil que já tinham sido alvo da leitura do nosso Pai. Recordo vagamente a história de um “pássaro roc” que deve ser o mesmo que voltei a reencontrar nas diferentes versões das 1001 noites que fui devorando ao longo das décadas (sim que eu não me contentei com o Galland e com o Mardrus, debiquei quanto pude no Burton e espero não morrer sem ler a versão dum cavalheiro brasileiro Mamede Mustafa Jarouche, que deve estar a rebentar por aí) e uma outra que metia um cavalheiro holandês gordo que caía pelas escadas demasiadamente enceradas por uma criadinha aflita.
Tudo isto lido em voz alta e sempre na peugada de um dos progenitores que devia maldizer o dia em que tinha decidido combater o analfabetismo infantil. O meu Pai contou-me muitos anos depois a sensação de alivio que experimentara quando aprendemos a ler em silêncio. Foi tão expressivo que eu ainda hoje me atrevo a pensar que a coisa há-de ter sido forte.
Mas agora vejo que estou para aqui a dar à taramela, “a dar água sem caneco” diria o manhoso Carteiro que é muito cá do Norte, sem explicar ao que venho. Nada mais difícil: tenciono ir por aqui relatando a minha vida de leitor. O mesmo é dizer uma vida de pecado. A leitura é um vício eminentemente solitário e tem trazido aos seus cultores os mais deploráveis hábitos, desde o sonhar até ao pensar. Os livros terão dado a volta à cabeça do meu muito amado Alonso Quijano, esse mesmo que, vindo de um lugar da Mancha de que nem devemos recordar o nome, chegou a toda a parte onde há um leitor insone e fez da aventura de ler um farol do fim do mundo.
Falarei de livros, lidos, claro, como quem, numa honrada taberna antiga, entre um copo de vinho e dois pasteis de bacalhau, ou um par de sardinhas assadas, fala do tempo que vai passando. Não esperem crítica iluminante nem coisas do mesmo teor. Para isso há um imenso exército de universitários que falam difícil e escrevem ainda mais, que se devem ler uns aos outros, e que tiram a qualquer preopinante a vontade de ler sequer o nome da rua por onde passam. Aqui, a cozinha é caseira e barata. De casa de pasto. Do género que á saída o cliente, ainda a limpar os beiços com as costas da mão, diga para a alegre companhia que com ele vai: não foi mau e é barato. Que tal voltar para a semana?
Freguesas e fregueses, tenham uma Páscoa boa e farta. Dêem-lhe nas amêndoas e não poupem no carneirinho tenro e assado. Para os do estilo penitencial do Delfim L Mendes, recomenda-se até à aleluia, farta dose de sopa de cação, migas de bacalhau e outros mimos, que o malandrim pira-se para o Alentejo em vez de me oferecer um jantarinho em Lisboa. E diz ele que eu sou “património de interesse público”. Que atrevimento!
PS dedicado á nossa transatlântica Sílvia: quererá a menina saber se, de facto, já anda por aí, nesses sertões magníficos a que, em má hora concedemos (?) a independência, a tal versão das 1001 noites do supracitade Mamede Jaroussi? E terá a bondade de me comunicar o resultado de tão intensa pesquisa bibliográfica, para aqui mesmo, em comentário? Ora receba mil graças e desejos de excelente Páscoa, não sei se com cordeiro ou com moqueca de camarão que, aqui para nós, o deve substituir com vantagem pituitária evidente.
A partir deste momento fundador, o benjamim dos Correia Ribeiro, não parou: deitou fogo a uma cama estando ele debaixo, pintou a parte de baixo do mármore de uma credência com vários batons da minha (e dele) Mãe que se espantava com a velocidade a que os ditos se gastavam e por aí fora. Tudo isto com o mesmo ar de menino Jesus que Deus lhe dera...
É costume dizer-se que a infância é uma doença de S Vito que se cura com a passagem do tempo. No caso em apreço, o dele claro e o meu, que, moreno até dizer basta, tive sempre a fama e raras vezes o proveito das pequenas picardias quotidianas, parte da nossa espástica actividade delituosa, morreu com a leitura. Dizer morreu é talvez excessivo. Ponhamos que amainou. Ora aí está: amainou, verbo marinheiro, próprio de que vem das margens do mar oceano.
Temos uma ligeira diferença de idade. Sou mais velho 14 meses, o que agora não é nada e pouco foi quando éramos dois pequenos delinquentes infantis. Não espantará que tenhamos aprendido a ler quase ao mesmo tempo. A ler alto, ou seja em alta voz. A ler as “aventuras do gato das botas de sete léguas”, dos “três porquinhos” e toda uma série lindíssima de livros muito ilustrados e publicados no Brasil que já tinham sido alvo da leitura do nosso Pai. Recordo vagamente a história de um “pássaro roc” que deve ser o mesmo que voltei a reencontrar nas diferentes versões das 1001 noites que fui devorando ao longo das décadas (sim que eu não me contentei com o Galland e com o Mardrus, debiquei quanto pude no Burton e espero não morrer sem ler a versão dum cavalheiro brasileiro Mamede Mustafa Jarouche, que deve estar a rebentar por aí) e uma outra que metia um cavalheiro holandês gordo que caía pelas escadas demasiadamente enceradas por uma criadinha aflita.
Tudo isto lido em voz alta e sempre na peugada de um dos progenitores que devia maldizer o dia em que tinha decidido combater o analfabetismo infantil. O meu Pai contou-me muitos anos depois a sensação de alivio que experimentara quando aprendemos a ler em silêncio. Foi tão expressivo que eu ainda hoje me atrevo a pensar que a coisa há-de ter sido forte.
Mas agora vejo que estou para aqui a dar à taramela, “a dar água sem caneco” diria o manhoso Carteiro que é muito cá do Norte, sem explicar ao que venho. Nada mais difícil: tenciono ir por aqui relatando a minha vida de leitor. O mesmo é dizer uma vida de pecado. A leitura é um vício eminentemente solitário e tem trazido aos seus cultores os mais deploráveis hábitos, desde o sonhar até ao pensar. Os livros terão dado a volta à cabeça do meu muito amado Alonso Quijano, esse mesmo que, vindo de um lugar da Mancha de que nem devemos recordar o nome, chegou a toda a parte onde há um leitor insone e fez da aventura de ler um farol do fim do mundo.
Falarei de livros, lidos, claro, como quem, numa honrada taberna antiga, entre um copo de vinho e dois pasteis de bacalhau, ou um par de sardinhas assadas, fala do tempo que vai passando. Não esperem crítica iluminante nem coisas do mesmo teor. Para isso há um imenso exército de universitários que falam difícil e escrevem ainda mais, que se devem ler uns aos outros, e que tiram a qualquer preopinante a vontade de ler sequer o nome da rua por onde passam. Aqui, a cozinha é caseira e barata. De casa de pasto. Do género que á saída o cliente, ainda a limpar os beiços com as costas da mão, diga para a alegre companhia que com ele vai: não foi mau e é barato. Que tal voltar para a semana?
Freguesas e fregueses, tenham uma Páscoa boa e farta. Dêem-lhe nas amêndoas e não poupem no carneirinho tenro e assado. Para os do estilo penitencial do Delfim L Mendes, recomenda-se até à aleluia, farta dose de sopa de cação, migas de bacalhau e outros mimos, que o malandrim pira-se para o Alentejo em vez de me oferecer um jantarinho em Lisboa. E diz ele que eu sou “património de interesse público”. Que atrevimento!
PS dedicado á nossa transatlântica Sílvia: quererá a menina saber se, de facto, já anda por aí, nesses sertões magníficos a que, em má hora concedemos (?) a independência, a tal versão das 1001 noites do supracitade Mamede Jaroussi? E terá a bondade de me comunicar o resultado de tão intensa pesquisa bibliográfica, para aqui mesmo, em comentário? Ora receba mil graças e desejos de excelente Páscoa, não sei se com cordeiro ou com moqueca de camarão que, aqui para nós, o deve substituir com vantagem pituitária evidente.
6 comentários:
O dia foi bem difícil. Coisas urgentes. Pareceres urgentes. Para ontem...pois...lá levei a água ao moinho: trabalho feito, missão cumprida. A Pátria agradece, dizem-me. Olho um pouco desconfiado. Pois...
Então, só agora é que dou conta da nova série de escritos do nosso Marcelo Correia Ribeiro. A coisa, como aliás é de seu timbre, promete. Que ele devia ser cá um figurão, lá isso...Agora, o problema é que eu estou a sentir-me tão culpado, logo com a Páscoa à porta! Bem que deveria receber este meu amigo aqui em Lisboa, que ele bem merece! Então, não é que vou partir para o Alentejo onde tenho lá outros companheiros? (olhem que eu sou lisboeta, ok? da Ajuda...).
Ai que sentimento de culpa!
A ver vamos se posso, a breve trecho, colmatar tão grave lacuna!
Sentimento de culpa? Arrependimento? Vontade de caminhar descalço com cilício e a cabeça coberta de cinza? Espero que esse sentimento se mantenha uns largos momentos que a Quaresma e a semana da Paixão são para isso mesmo.
É o que se ganha quando se nos atravessa no caminho um lisboeta da Ajuda. Do sítio onde se ergueu a "real tenda" do medroso José 1º. O mesmo que mais abaixo mandou salgar as casas dos Tavoras... Alí, quase a chegar a Belém, já perto dos pasteis.
Sílvia, amiga, V. já está a ver com o que conta em Lisboa? Bastar-lhe-á anunciar que vem ao pais dos antepassados e o marau do Cabral Mendes manda dizer que está a águas em Marrocos...
Caro MCR, mais uma série que promete. Cá estaremos para "sorver" as suas leituras.
Caríssimo MCR.
Recebi e sorvo lentamente o livro que vc me enviou.Ah, que coisa...que delícia. Obrigada.
Quanto às Mil e Uma noites traduzidas pelo Mahamed Mustafa Jarouche, que já rebentou por aqui, ainda que não com o mesmo impacto infelizmente, de uns Paulo Coelhos, tem uma coisa interessante, a meu ver,o surgimento de um conteúdo sexualizado na nova tradução, que antes não havia ( ah, as censuras...).
Li as Mil e Uma Noites aos dez anos depois aos treze.
Passou-se o tempo e ultimamente escrevi uns poemas árabes cuja protagonista era a Sherazade. Estes poemas sempre tiveram algum cunho sexual. Engraçado, exatamente o que havia sido omitido das traduções anteriores.E antes desta nova e mais completa.
Talvez minha cabeça imaginosa pensasse em outras razões para tantas noites? Talvez acaso? Não sei. Sei que este é um fato.
Vc encontra o livro na Internet, mas se quiser o envio, com prazer.
Tive grande alegria ao ler estas suas memórias e as seguirei sempre.
Beijos,
Silvia
ah sim, ia me esquecendo: muqueca de peixe com camarão. : )
querida sílvia. basta mandar-me a direcção internet de uma livraria daí boa e de confiança que exporte o livro parta este país de aborígenes...
Moqueca de peixe? que inveja!
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