22 maio 2006

Chateado no calabouço 4

carta 3ª
(sobre a arquitectura prisional)

Ex.ª Sr. director Geral Interino dos Edifícios e Monumentos Nacionais

Tendo sido hóspede da cadeia de Caxias (reduto norte) durante algum tempo, muito excitante de resto, e sendo um profundo admirador de Mestre Raul Lino, como aliás também de mestre Henrique Medina, pintor de fina água, do doutor Amândio César, escritor de robusto talento e de outras grandes figuras do nosso panteão artístico e cultural, cujo é, sem falsas modéstias, relevante pedra de toque da civilização ocidental e cristã que Portugal tão galhardamente defende nas plagas africanas frente ao gentio infiel que tenta meter uma lança na Europa, dirijo-me a V.ª Ex.ª para expor o que se segue:
Caxias, Il.º Senhor Director Geral Interino, é uma pequena obra prima da ingeniosidade lusitana dos anos 20: belas vistas, bons ares, brandura de costumes, proximidade da capital e seu bulício frente ao Tejo e seu ventício e diante de um pobre mas honrado bairro de lata com seu excrementício.
Para quem passa na estrada a vista do soberbo edifício é algo que nunca mais esquecerá. Parece, em grande, um desses maravilhosos moinhos de vento de que a nossa paisagem é tão rica e que constituem para o estrangeiro que nos visita motivo de constante pasmo e admiração arquitectónicos.
Porém, vista de mais perto, algo destoa e nos dói: pois não é verdade que no pais da casa portuguesa de Mestre Raul Lino e de Amália Rodrigues, as casas e construções similares (casinhas, cabines telefónicas, apeadeiros de transportes colectivos, faróis e marcos quilométricos) devem ser portuguesas?
Ora tal não se passa com esta notável instituição de recuperação social. A construção é pesada, algo tosca, sem graça. Vá lá que sempre está pintada de branco, mas isso não chega, Ex.º senhor, não chega.
Por estas razões, e por outras que não vale a pena salientar, tenho a honra de propor:
1º alto do telhado três cata-ventos em forma respectivamente de galo, sol e barco à vela;
2º nas paredes exteriores andorinhas de barro preto (vidrado) artisticamente cravadas;
3º no peitoril de cada janela um pequeno canteirinho de sardinheiras;
4º as grades em ferro forjado do norte;
5º as portas com alpendres de granito
6º nos dias feriados e santos de guarda colchas em todas as janelas;
7º na sala de espera das visitas propõem-se ainda:
dois vasos de louça de Alcobaça com avencas e jarros de plástico (são mais baratos e não precisam de água);
um “invisual” tocador de harmónio a cantar fados;
um rancho de guardas prisionais regido pelo senhor Dr. Pedro Homem de Mello (danças recomendadas: corridinho, chula do Minho, vira da Nazaré);
uma placa com os dizeres: é proibido cuspir ou urinar no soalho”;
idem com os dizeres:”construído durante a Ditadura Nacional”
um cartaz com o slogan “o Exército é o espelho da Nação” ou na falta dele outro com o mapa de Portugal e províncias ultramarinas sobrepostos ao mapa da Europa com os dizeres “Portugal não é um pais pequeno”.

A bem da Nação

em Caxias, 1971

3 comentários:

C.M. disse...

Este nosso MCR andava cá com uma sede aos tipos!...A hotelaria não era o seu (deles..) forte...

M.C.R. disse...

que é que v,. queria que eu fizesse só, numa cela, em Caxias?

C.M. disse...

Foi a maneira de conseguir escritos seus, em vez de andar nas "oftálmicas" de Coimbra...