VARIAÇÕES SOBRE OS PAPAGAIOS
Suponha-se um papagaio, ou melhor, uma tartaruga* Não! Uma tartaruga não, bicho indócil e inconfortável, demasiadamente reflectido, se é que Fenimore Cooper ("O último dos moicanos") e as anedotas correntes - todas, ao fim e ao cabo, devidas, directa ou indirectamente, a Zenão - têm algum fundamento, o que, de resto, nem sempre se pode afirmar. Além do que, uma tartaruga, animal marítimo por excelência, permite curiosamente, voos de imaginação** que, numa oração como esta, seriam se não descabidos, pelo menos de duvidoso valor científico. Permaneçamos, pois, no papagaio: bicho facilmente humanizável, dada a possibilidade que lhe foi concedida de responder ao "olá louro, dá cá o pé" e a outras objurgatórias do mesmo teor; além desta qualidade há que lembrar o facto do papagaio assumir no nosso folclore o estranho papel de alcoviteiro amável e grátis
"papagaio louro
de bico dourado
leva-me esta carta
ao meu namorado"
de bico dourado
leva-me esta carta
ao meu namorado"
Por outro lado, o seu aspecto humanizável não é excessivo como acontece com o macaco, antepassado longínquo ou parente degenerado do "homo sapiens" -ou herdeiro (cfr. Pierre Boule "O planeta dos macacos")- e a quem, este, ao longo dos séculos tem tratado de uma maneira confrangedora atribuindo à honesta e pacífica ordem dos símios toda uma série de defeitos, na realidade demasiado humanos para poderem ser assumidos pelo referido primata. Há quem se lembre de torpes saltimbancos pavonearem, entre a cobra equilibrista e a mulher serpente ("espectáculo que já se produziu, ó meus senhores, em toda a Europa ocidental e nos países árabes" sic) macacos equilibristas vestidos à marinheira com um par de bandeiras na mão emitindo dislates por meio do alfabeto homográfico***. Portanto o papagaio: águia decaída, galinha promovida a ave trepadora com corrente e argola no pé, companhia de velhas hediondas, viúvas de marinheiros dos mares do sul, que não perdoam ao finado os soezes palavrões que a ave desbocada debita quando solicitada.
Que fazer com o papagaio, ave inútil que esconde sob um triunfo de plumagens vistosas uma carne seca e desenxabida? Que destino dar ao objecto destas laudas a que um humorista de verve amarga e inconsequente chamou "a aviação do Brasil"****?
Como conseguir celebrar o papagaio, sem por isso se ser apontado à execração e ao (sempre possível) castigo da sociedade pelo dedo vingativo e odiento da moderna inquisição ("... escriba ao serviço das ocultas e malévolas forças da desordem, critica os hábitos parlamentares, ofende as forças vivas da nação, propondo a subversão e atentando contra a existência de Portugal como nação independente ...") ou, o que é pior, ser olhado pela inteligentsia pseudo-progressista como um audacioso e atrevido intelectual, a que só é preciso tirar a gravata para o transformar em "contestatário" titulado e, rapidamente recuperá-lo, imortalizado em posters a preto e branco, sessões de autógrafos, colóquios, seminários, conferências, crónicas vagamente escandalosas, recitais, abaixo-assinados e um emprego "part-time" numa agência de publicidade?
Impossível provar boas, inocentes intenções*****. Impossível escrever só sobre o papagaio, sem tom de parábola, cheiro de crítica aos costumes, escrever como quem escreve um bilhete à lavadeira recomendando atenção e carinho pelos botões da camisa e energia quanto à nódoa de calda de pêssego no punho esquerdo.
A arte pela arte é um logro, concluir-se-á. Concedo. Concedo sem segundas intenções ou figas matreiras e inúteis. Concedo para evitar discussões, exorcismos no suplemento juvenil (a acne ideológica é temível) de algum jornal provincial ou cartas abertas de um grupo de sócios do Grémio Literário, muito embora se espere que tão venerável e selecta instituição, ocupada como anda em recepções, não dê ao assunto a atenção que ele possa merecer.
É que a arte não pode ser redutível à tíbia figura de um papagaio -o que só pretende significar que o papagaio não é arte.
Que esta última asserção não signifique altaneiro desprezo pelas crenças dos que entendem o mundo como obra divina. Acredito no diálogo (na esteira de Garaudy, bem entendido). Acredito no diálogo de que o papagaio -tudo o faz crer - monologante infatigável, é a mais rotunda negação.
Por isso termino aqui, provado que está não ser o papagaio, como o peixe (cfr. António Vieira, "Sermão de St.º António aos peixes”) ouvinte atento.
Notas
1)Não se cai aqui na vulgaridade de falar na "casa" que a tartaruga transporta às costas; também o caracol assim procede e nem por isso é chamado a capítulo. Em questões de toca portátil só um animal merece citação: o paguro, vulgo "casa-alugada" molusco astuto que terá inspirado os modernos ocupantes de casas devolutas. Não referem esta tese "Ocupação de casas em Odivelas" (vários autores, ed. Afrontamento) nem o "Nouvel Observateur" (Março, 1969).
2) Atribui-se a este bisonho animal, nas fábulas, uma grande inteligência cujo fundamento não se descortina. De positivo, e sobre tartarugas, apenas se pode afirmar que a carapuça foi, durante muito tempo, material predilecto para cigarreiras, caixas de rapé, pentes, leques e armações de óculos. Quanto á carne faz-se uma excelente sopa.
3) Este interessante meio de comunicação foi muito usado pelos filiados da mocidade portuguesa que, noutros tempos eram vistos em alegres marchas pela cidade transmitindo-se as ordens dos comandantes de castelo em alfabeto homográfico, quando passavam junto de hospitais para não assustar os doentinhos com as vigorosas ordens de comando.
4) “Se macaco é soldado / banana munição / papagaio aviação / Pode contar com a Nação”.
5) Só depois de escritas estas palavras nos veio à memória o título de um livro de Augusto Abelaira que, como é de calcular, nada tem a ver com esta despretensiosa crónica. Que nos conste Abelaira nunca se interessou por papagaios, araras, catatuas ou até mesmo pegas ou gralhas.
Que fazer com o papagaio, ave inútil que esconde sob um triunfo de plumagens vistosas uma carne seca e desenxabida? Que destino dar ao objecto destas laudas a que um humorista de verve amarga e inconsequente chamou "a aviação do Brasil"****?
Como conseguir celebrar o papagaio, sem por isso se ser apontado à execração e ao (sempre possível) castigo da sociedade pelo dedo vingativo e odiento da moderna inquisição ("... escriba ao serviço das ocultas e malévolas forças da desordem, critica os hábitos parlamentares, ofende as forças vivas da nação, propondo a subversão e atentando contra a existência de Portugal como nação independente ...") ou, o que é pior, ser olhado pela inteligentsia pseudo-progressista como um audacioso e atrevido intelectual, a que só é preciso tirar a gravata para o transformar em "contestatário" titulado e, rapidamente recuperá-lo, imortalizado em posters a preto e branco, sessões de autógrafos, colóquios, seminários, conferências, crónicas vagamente escandalosas, recitais, abaixo-assinados e um emprego "part-time" numa agência de publicidade?
Impossível provar boas, inocentes intenções*****. Impossível escrever só sobre o papagaio, sem tom de parábola, cheiro de crítica aos costumes, escrever como quem escreve um bilhete à lavadeira recomendando atenção e carinho pelos botões da camisa e energia quanto à nódoa de calda de pêssego no punho esquerdo.
A arte pela arte é um logro, concluir-se-á. Concedo. Concedo sem segundas intenções ou figas matreiras e inúteis. Concedo para evitar discussões, exorcismos no suplemento juvenil (a acne ideológica é temível) de algum jornal provincial ou cartas abertas de um grupo de sócios do Grémio Literário, muito embora se espere que tão venerável e selecta instituição, ocupada como anda em recepções, não dê ao assunto a atenção que ele possa merecer.
É que a arte não pode ser redutível à tíbia figura de um papagaio -o que só pretende significar que o papagaio não é arte.
Que esta última asserção não signifique altaneiro desprezo pelas crenças dos que entendem o mundo como obra divina. Acredito no diálogo (na esteira de Garaudy, bem entendido). Acredito no diálogo de que o papagaio -tudo o faz crer - monologante infatigável, é a mais rotunda negação.
Por isso termino aqui, provado que está não ser o papagaio, como o peixe (cfr. António Vieira, "Sermão de St.º António aos peixes”) ouvinte atento.
Notas
1)Não se cai aqui na vulgaridade de falar na "casa" que a tartaruga transporta às costas; também o caracol assim procede e nem por isso é chamado a capítulo. Em questões de toca portátil só um animal merece citação: o paguro, vulgo "casa-alugada" molusco astuto que terá inspirado os modernos ocupantes de casas devolutas. Não referem esta tese "Ocupação de casas em Odivelas" (vários autores, ed. Afrontamento) nem o "Nouvel Observateur" (Março, 1969).
2) Atribui-se a este bisonho animal, nas fábulas, uma grande inteligência cujo fundamento não se descortina. De positivo, e sobre tartarugas, apenas se pode afirmar que a carapuça foi, durante muito tempo, material predilecto para cigarreiras, caixas de rapé, pentes, leques e armações de óculos. Quanto á carne faz-se uma excelente sopa.
3) Este interessante meio de comunicação foi muito usado pelos filiados da mocidade portuguesa que, noutros tempos eram vistos em alegres marchas pela cidade transmitindo-se as ordens dos comandantes de castelo em alfabeto homográfico, quando passavam junto de hospitais para não assustar os doentinhos com as vigorosas ordens de comando.
4) “Se macaco é soldado / banana munição / papagaio aviação / Pode contar com a Nação”.
5) Só depois de escritas estas palavras nos veio à memória o título de um livro de Augusto Abelaira que, como é de calcular, nada tem a ver com esta despretensiosa crónica. Que nos conste Abelaira nunca se interessou por papagaios, araras, catatuas ou até mesmo pegas ou gralhas.
Coimbra, calabouços da PJ, Outubro-Dezembro de 1969
2 comentários:
Mais um texto vistoso.De plumagem arrumada e brilhante.
Mas...atenção! Exemplo concreto da arte pela arte!
Por mim, não me queixo, antes pelo contrário, laudo o empreendimento, tanto mais que no fim, numa nota de rodapé, vem a revelação assombrada:
"Este interessante meio de comunicação foi muito usado pelos filiados da mocidade portuguesa que, noutros tempos eram vistos em alegres marchas pela cidade transmitindo-se as ordens dos comandantes de castelo em alfabeto homográfico, quando passavam junto de hospitais para não assustar os doentinhos com as vigorosas ordens de comando."
Quem tinha esta atenção pelos "doentinhos" dos hospitais, numa época em que no ruído urbano se distinguia claramente a sineta do eléctrico dos demais sons ambientais, merecia alguma ponderação em relação aos valores enunciados nos costumes.
O que é que se perdeu?!
A noção do respeito pelos outros, mesmo doentes?
A noção da atenção a particularidades óbvias a cada um em particular mas que se dissolvem no colectivo social?
Não sei bem, mas algo foi- e de importante.
O alfabeto homográfico (suponho que era assim que se chamava era um códihgo de sinalização com bandeiras (duas, uma em cada mão e que se aprendia obrigatóriamente na MP. suponho que a sua utilidade era duvidosa tanto mais que se tinha de fazer um sinal por cada letra o que seria moroso.
A parte dos hospitais é mera piada minha, mas de todo o modo partilho a ideia de que hoje em dia pouco ou nada merece o respeito dos transeuntes.
O meu caríssimo José acertou na mouche ao falar em arte pela arte. É claro que isto era o que se podia escrever no calabouço sem receio de ter ainda mais chatices em cima. não me está a ver a fazer a apologia da revolução entre as grades, pois não?
Devo dizer que não morro de amores pela chamada arte engagé que usa o engagé para disfgarçar a má escrita. Para esse peditório nunca dei e faço o possível por escrever com o mínimo de decência possível. Se não der mais é porque ... não dou para mais!
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