22 junho 2006

estes dias que passam 30

Nem tudo o que luz é ouro

A ler os jornais ou a ouvir a televisão, assalta-nos uma sensação de coisas que se vão compondo, melhorando, como se o fim da primavera fosse justamente a época ideal para arrumar a casa.
De Portugal nem novas nem mandados. O pais está a banhos em Genselkirchen, e enquanto a selecção continuar a ganhar nem o governo chateia nem a malta protesta. Enfim a primeira parte é falsa mas a segunda é verdadeira. A anestesia é geral.
Com uma excepção. Um deputado europeu o senhor Manuel dos Santos a quem sempre se ouviram vulgaridades, resolveu dizer, por uma única e irrepetível vez, uma coisa sensata e chamou ao actual governo comissão liquidatária. Eu que sempre o achei um pobre diabo tenho que concordar que desta vez a criatura tem razão. Isto foi dito numa jantarada do chamado bloco narcisista do Porto. Claro que depois dos aplausos que terão sido muitos e vibrantes, as criaturas jantarantes caíram em si e vieram já, todas ou quase, dizer que as afirmações do cavalheiro dos Santos eram dele e só dele. O mais cómico foi a parte dos deputados domésticos (nunca uma palavra foi tão bem usada) que se solidarizaram com o governo. Entre eles li alguns nomes que já me não surpreendem embora houvesse duas senhoras deputadas que me fazem pensar que os caminhos da entrada da Assembleia da República são como os de Deus: extraordinários!
Lavemos a mão pecadora e passemos a outro tema menos caseiro. Em Espanha, a Catalunha votou um Estatut. Enfim, cerca de 49% dos cidadãos eleitores deram-se à trabalheira de ir depositar um papelinho na urna. Desses esforçados cidadãos, cerca de 75% votou favoravelmente o novo estatuto autonómico o que significou uma derrota estrondosa para o cada vez mais irracional Partido Popular e para uma excrescência política que dá por Esquerra Republicana. Trata-se de uma obsolescência nacionalistóide, retrógrada e anti imigrantes. O seu principal dirigente, o senhor Carod Rovira esteve no governo da Generalitat a acolitar como segunda figura o senhor Pascal Maragall. Conseguiu o impossível: teve de se demitir – foi demitido! – fez campanha contra um Estatut que ultrapassa em muito o que legitimamente se poderia pensar obter do governo central, andou a conversar com a ETA, apesar de estar aliado ao PSOE no Parlamento espanhol, enfim o homem foi, e é, um catavento.
O senhor Maragall ganhou a sua aposta mas, à cautela, demite-se. Foi um fraco governante da Catalunha, suponho que não deixa saudades nem lá nem no PSOE de que é ou parece ser militante.
Um partido português desses que de via reduzida, o do senhor Manuel Monteiro fez um qualquer acordo com outro do mesmo teor mas galego, o Partido Galeguista. Estão bem um para o outro no que toca a nacionalismo rançoso e balofo e a popularidade. Dizem os jornais que os dois partidos prometeram lutar contra o centralismo espanhol. Não mencionando desde logo a elegância do grupúsculo do senhor Manuel Monteiro em se imiscuir na política interna espanhola não deixa de ser risível atacar o governo mais federalista que alguma vez a Espanha teve.
E precisamente esse governo lá entendeu, há uns dias que desta vez a boa fé da ETA é certa (!!!) pelo que se propõe entrar em conversações mais ou menos directas com o bando acossado. Entretanto o PP uiva que a Espanha está a ser traída, esquecendo-se que eles próprios também já tinham tido umas conversas de pé de orelha com a mesmíssima ETA que na altura lhes fuzilava os militantes com heróicos tiros na nuca. O principal dirigente do PP, o senhor Rajoy é galego. Dizem os que o conhecem que, como bom galego, não diz sequer a direcção quando anda no elevador. Será por isso que agora desdiz a política do seu antecessor. Manias...
Entretanto as polícias francesa e espanhola assestaram um duro golpe no organismo financiador da ETA, o tal que mandava umas cartas aborrecidas aos empresários bascos, exigindo-lhes sob pena de um tiro (sempre na nuca) uns dinheirinhos para a causa da liberdade basca. As reacções são no mínimo surpreendentes. O governo basco quer explicações. Não lhe deve bastar o facto de os presos serem alegadamente chantagistas e terroristas. O habitual dirigente da proibida Herri Batasuna, o senhor Otegui, considera estas prisões uma afronta, e uma ameaça à paz e às conversações de paz! Claro que o senhor Otegui não é “etarra”, longe disso, é apenas um cidadão incapaz de condenar o tal tiro na nuca...
Deixemos esta estranha contradança espanhola e regozijemo-nos pelo facto de um canalha chamado Charles Taylor, responsável pelas guerras civis na Libéria e na Serra Leoa e ex-presidente da primeira, ir para a Holanda para ser julgado. Se for condenado, coisa que parece provável (ainda por cima é preto, o que ajuda) será na Inglaterra que cumprirá pena.
Convenhamos que desta única e excepcional vez, Deus olhou para aquele canto de África onde terão morrido cerca de quatrocentas mil pessoas. Eu, que sobre estas sangueiras, já nem sou capaz de me indignar, gostaria que Deus olhasse um pouco para o Darfur, para as fronteiras do Congo e para a Somália. Será pedir muito?
Estou obviamente a citar o Papa Bento XVI que na Polónia, mais concretamente em Auschwitz declarou que Deus não olhara para aquela zona na altura em que judeus, ciganos, russos, polacos, homossexuais e outras criaturas de difícil definição étnica, religiosa ou nacional foram esforçadamente reduzidas a cinza por “um grupo” de criaturas que se terá imposto à sociedade alemã.
Eu que tenho uns vagos antepassados alemães, uns Heinzelmann de Havelberg a 50 quilómetros de Berlim e que gosto da Alemanha, tenho alguma dificuldade em compreender esta curiosa interpretação histórica que condena um grupo e exculpa uma imensa maioria que votou nesse grupo, que o aplaudiu, aos urros, levantando a pata histericamente, heil Hitler! Sieg heil! Que viu irem para os campos primeiro os comunistas e os socialistas, a seguir os homossexuais e os “associais” depois os judeus e os ciganos (para já não referir os dez mil cidadãos negros e mulatos oriundos das antigas colónias africanas), e finalmente os resistentes de vinte países ocupados (Mauthausen foi construído pelos prisioneiros espanhóis refugiados em França depois da guerra civil...), alguns luteranos, outros tantos católicos etc...
Também eu acho que a actual população alemã pouco ou nada tem a ver com isto mas não é por isso que os pais e avós podem agora passar por inocentinhos...
Deixemos esta opinião para outras discussões e lembremos que nestes mesmos dias, morreu um monstro sagrado do non sense, da invenção linguística, da poesia em estado puro, une bête de scéne: Raymond Devos, o maior humorista (?) francês (por acaso belga), autor de livros espantosos e de tiradas extraordinárias, a tiré sa reverence. Por um breve momento, a França oficial, a França cultural e a França popular recolheram-se em uníssono lamentando esta morte. Passou-se o mesmo com a Piaf, com Brassens e mais uns quantos. Poucos. O génio é raro e mal distribuído.
Permitam-me os leitores que lhes deixe um par de aforismos de Devos: acabemos bem o que começámos mal.
Quand j’ai tort, j’ai mes raisons que je ne donne pas. Ce serait reconnaître mes torts!
Je crois a l’immortalité et pourtant je crains bien de mourir avant de la connaitre!
Si ma femme doit être veuve un jour, j’aimerais mieux que ce soit de mon vivant.
Remarquez que si on fait l’amour, c’est pour satisfaire les sens. Et c’est pour l’essence qu’on fait la guerre.
Même avec Dieu, il ne faut pas tenter le Diable.


Os interessados poderão comprar um livro: Matiére à rire (Orban) ou (melhor ainda...) o sublime dvd triplo “80 ans, 80 sketches” Momus, Universel Mercury 063 163 9

PS: os leitores que me aturam estarão como eu: como uns cucos e a razão é simples : o nosso Carteiro regressou ás lides depois de andar ás voltas com um computador avariado...
Como desculpa é fraquinha mas a malta, ao Carteiro, perdoa tudo. Ai quem me dera ter aquela idade...





10 comentários:

C.M. disse...

"Convenhamos que desta única e excepcional vez, Deus olhou para aquele canto de África onde terão morrido cerca de quatrocentas mil pessoas. Eu, que sobre estas sangueiras, já nem sou capaz de me indignar, gostaria que Deus olhasse um pouco para o Darfur, para as fronteiras do Congo e para a Somália. Será pedir muito?
Estou obviamente a citar o Papa Bento XVI que na Polónia, mais concretamente em Auschwitz declarou que Deus não olhara para aquela zona na altura em que judeus, ciganos, russos, polacos, homossexuais e outras criaturas de difícil definição étnica, religiosa ou nacional foram esforçadamente reduzidas a cinza por “um grupo” de criaturas que se terá imposto à sociedade alemã."




MCR, meu caro, hoje é que eu “vi a luz”: parece que se pode, afinal, falar de Deus…desde que seja para dizer mal!

Desculpe o sarcasmo…

Mas olhe, agora a sério, tenho uma resposta maravilhosa para dar à sua interrogação, legítima para um agnóstico. Sua e de muito boa gente. E não sou eu que a dou; a resposta sábia provém de um amigo que eu já aqui citei, em postal, Frei David Azevedo, sacerdote franciscano, homem culto, experiente. Doutorado em Teologia Dogmática, professor e escritor.

Então, aqui vai o texto que responde às suas inquietações, que já foram nossas também:

(E cito, com a devida vénia):

“ A presença de Deus, o silêncio de Deus, a sua intervenção na nossa vida, a sua acção na história dos homens…O sofrimento do inocente, o riso dos poderosos, a loucura armamentista…Job, Tobias, Bem Sirac, S. Tomé, Dostoievski, Unamuno, Camus…As perguntas da inteligência, as dores do coração, as revoltas da justiça, a morte…Quantas interrogações porque Deus não intervém?...
E, todavia, o sonho é verdadeiro. (…). Deus é como uma mãe. Sensível como ela. Impotente como ela. A mãe diz ao filhinho que vai ser operado: “Meu filho, quanto a mãe não daria para ser operada em tua vez?!...” ou, quando não pode fazer nada: “Querido, a mãezinha está aqui”. O Pai também sente assim. Não intervém senão assim: sofrendo com o homem. Porque, se fosse a intervir, estragava tudo. Matava a liberdade do homem que é a luzinha imprescindível no diálogo de Amor. E na verdade, o Amor é a única Realidade.

Mas Deus está presente. À maneira da mãe. E pega ao colo. E vive o que nós vivemos. Por trás de tudo, por trás de todo o sofrimento, está o firmamento sem fim do seu Amor (…)”.

(do livro “ Os mil sinos do mar” – sons de amor no mistério das coisas” – Frei David Azevedo, Editorial Franciscana, Outubro 2002, fls.57 e ss.).


Nos textos que gostaria de ir fazendo, com largo tempo, sob o título “Textos (pouco) filosóficos” bem que gostaria de escrever sobre o tema do mal, a sua raiz, as suas causas…como o Marcelo aflorou…mas não posso, como sabe… Assim, fica “só” esta nota em jeito de mero comentário.

Mas espero que ela lhe desperte o apetite. Com gosto, lhe enviarei o livro em questão. Sabe, o David Azevedo é o homem mais livre que conheci até hoje. Desapegado de tudo, excepto do amor a Deus e aos homens.

M.C.R. disse...

DLM
V está a tresler. Onde é que eu falei mal de Deus?
estou apenas a citar alguém que não é Deus e que também me não parece que seja sequer seu porta-voz e que a propósito de Auschwitz ousou dizer que Deus estaria a olhar para outro lado.
Esse alguém no século chamou-se Ratzinger e agora é Papa.
Entendeu dizer uma a abater e outra a exculpar o inexculpavel.
Leia-me bem, que eu quando quiser dizer mal de Deus não o farei com torcicolos na redacção.
Não viu a luz, meu caro. Eu bem dizia que nem tudo o que luz é ouro mas V não acreditou...

C.M. disse...

Fique Vexa sabendo que eu, por vezes, gosto de "tresler"...como os outros!

M.C.R. disse...

Das pessoas que eu considero amigas espero que me leiam que rebatam os meus pontos de vista, que discutam mas não que cedam a tão duvidoso gosto mas enfim. Aliás esperava mais do seu comentário Não só em relação ao caso que escolheu mas também aos dois restantes: a toleima deputativa, a deriva perigoa e federalista e a parvoice de populares e socialistas que não devem saber bem onde se estão a meter. . Isto para já não falar na parte substancial do drama africano. Mas provavelmente o meu texto fecha muito o caminho a comentarios. Se assim for, o erro é obviamente meu.

C.M. disse...

MCR, vamos lá a ver: deparei agora, de manhã (7h45) com este seu último comentário; já vejo que não se pode ser um pouco malicioso…pronto, então vamos lá: gostei muito do seu texto, como sempre, mesmo quando não concordo com alguma posição.

Apenas quis comentar a parte, e apenas essa, relativa ao tema, aliás tão debatido, do chamado " silêncio de Deus". É, na verdade, um tema recorrente em debates e na literatura em geral.

E, apresentei-lhe, de bandeja, um belo texto, filosófico sem dúvida, e no qual acredito, e Vexa não o valorizou? Olhe que fiquei um pouco desapontado…olhe que eu estava precisamente à espera que V. me dissesse alguma coisa acerca dele, o que acha desta explicação...eu, para mim, considero-o um belo texto…tenho para mim que o Homem tem a plena liberdade, conhecendo de antemão o Bem e o Mal, de escolher entre um e outro. E, se ele escolhe o caminho errado, não será, digamos assim, a Transcendência que o irá impedir…pesem embora as consequências, a nível pessoal, que cada um irá ter de suportar por praticar o mal… no fim dos tempos é que se verá…esta visão de um Deus como deveria actuar com o um mágico, que anda sempre aqui a segurar a mão do pecador,… não colhe, não é curial….

Pronto, não tenho tempo para mais., MCR. (a não ser que eu glose este tema, oportunamente, num postal, mas vai ter de ser muito enviesado…).

Um abraço, e…mande sempre!

C.M. disse...

As pressas dão nisto:
na parte final, queria dizer:

"esta visão de um Deus que deveria actuar como um mágico, que anda sempre aqui a segurar a mão do pecador,… não colhe, não é curial…."

M.C.R. disse...

O que diz no fim é tão verdade que escusa comentários. Se Deus andasse com o homem á arreata este ia ali e já vinha. Já os gregos acreditavam que tinham a liberdade suficiente para ofender os deuses, serem por isso castigados etc...

Mas atente bem que não fui eu que disse que Deus assobiou para o lado ou que estava silencioso. Eu, pobre de mim, deixo Deus para os de Deus e cá vou tentando combater Cesar.

O Papa foi à Polónia e disse o que disse. Eu comentei só em 2 pontos:
1 Deus onde estava?
2 Foi um grupo de alemães que fez o mal os outros nem sabiam.
Como já glosei bastante o 1º ponto esquecendo todavia algum grave e longo silêncio do Vaticano e de Pio XII que só no fim (e bem no fim) é que juntou á condenação do paganismo (encíclica cujo nome em alemão começa por mit mas que neste momento ignoro o resto) a condenação "expressa" da perseguição aos judeus, passo ao outro

O pvp alemão (como em tempos mais próximos, o português em boa parte) assistiu impávido ao desencadear das hostilidades contra o a esquerda, os estrangeiros, os judeus e os elementos associais. Calou-se bem calado, assobiou para o lado, deu esmagadora vitória a Hitler e foi como um cordeiro para a guerra. Não foram só os SS que chacinaram russos e polacos na guerra, foram alemães normais!
E, como já disse, se é verdade que disto não pode resultar uma maldição eterna, nem se pode justificar o que depois sucedeu de perseguições aos sudetas, aos alemães da Silésia ou da Prussia Oriental, não podemos sem mais travestir a realidade e falar num grupo que fez tudo como o Papa talverz ingenuamente (?) talvez por erro disse ou pretendeu dizer.

Eu teria todo o gosto em discutir o "seu" amigo franciscano mas ele - como também já lhe disse - não traz novidade alguma a um convicto livre pensador como eu. Para mim a liberdade humana passa bem sem Deus mas de todo o modo nunca poderá ser condicionada por Deus. Senão seríamos meros robots. Ou não?

finalmente devo dizer-lhe que isto o que estamos aqui a duscutir à pressa pode ser discutido, escrito no blog. O que não se deve usar é um tom apologético e catequizante que forçará sempre uma resposta identica e identicamente fechada e globalizadora. Ou seja em vez de discussão teríamos apenas dois manifestos paralelos.
Um abraço

M.C.R. disse...

A encíclica que citei é esta: mit brennender Sorge.

o sibilo da serpente disse...

Não, não, MCR! A desculpa pode parecer fraquinha mas é real. Não tenho computador em casa - ainda não o mandei arranjar.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Mais uma vez, totalmente de acordo com MCR. Seja no que diz respeito aos socialistas do Porto, às Espanhas, às Áfricas e a tudo o resto.

Só não sabia essa do Manuel Monteiro se ter mancomunado com um tal Partido Galeguista. É preciso ter lata...