25 julho 2006

Au Bonheur des Dames - suplemento ao nº 28

Os figos

Naquele tempo, a praia era grande mas não como agora que a areia comeu uma boa fatia à enseada. O mar vinha mais terra adentro e podiam distinguir-se perfeitamente as três zonas que marcavam a baía. Baía, não enseada. Baía limitada pela foz do rio, mais precisamente pelo forte de Santa Catarina, a sul, e pelo cabo Mondego a norte. No ponto mais reentrante uma fita de casas, só de um lado da estrada, marcava o sítio dito da Praia. Antes chamara-se Palheiros, e ainda é assim que aparece nas descrições das fortificações que defendiam Buarcos, capital do concelho e a jovem povoação da Figueira da Foz. À boca do rio o já citado forte, em Buarcos as muralhas da vila. A meio “para cruzar fogo” erguia-se o fortim de Palheiros, toponímia perdida e que significava casas provisórias de pescadores.
Se cito esta ladainha de fortalezas é tão só para tentar explicar o que seriam estas dignas e abandonadas fortificações para a pandilha de miúdos que comigo cresceram: um dom celestial, uma permanente aventura, um convite a gazetar à escola e á catequese. Então o fortim era uma bênção. Estava mesmo atrás da nossa casa. Bastava trepar um muro de quatro ou cinco metros e entrava-se numa enorme tapada carregada de árvores antigas e com o fortim meio sepultado entre meia dúzia de enormes figueiras. Um tesouro para a passarada e para o pequeno grupo de miúdos que viviam na nossa rua. Tesouro guardado com mil juras, com a gulodice a ajudar a tapar a boca dos mais faladores.
Todavia, uma história de amor infeliz viria a tornar as figueiras um pouco mais públicas e sobretudo um pouco mais partilhadas pelos meninos que no Verão (e o Verão naquele tempo era três longos meses) se juntavam ao nosso pequeno grupo.
Tudo começou num dia em que Fredão (ou o Frederico gordo, o pançudo, o banhas) amigo do peito, me confidenciou que estava apaixonado. Apaixonado e mal correspondido. Ou melhor sem qualquer hipóteses de correspondência. Uma tal Ju ( morena, olho atrevido e voz de pirolito, a melhor bebida “gasosa” daquele tempo de dificuldades (princípios dos anos cinquenta…), ou seja um voz de marulho manso de água fresca e açucarada para traduzir isto para o meu fã clube de leitoras brasileiras…
A Ju tinha passado do primeiro para o segundo ano do liceu como Fredão, enquanto eu já ía a caminho do terceiro. Portanto a donzela averbaria onze castos anos, os mesmo de Fredão e o cronista andaria pelos doze. Castos, também que naquele tempo havia moralidade e nós, de todo o modo, éramos demasiado novos. Mas namoros e paixões tremendas não faltavam. A pontos de alguns já começarem a dançar. Danças sérias, entenda-se, na garagem do Nélito, com mães, tias e avós sentadas em redor, atentas, atentíssimas. De vez em quando dançava-se a raspa, uma coisa espanhola, importada através do Casino Peninsular a cujas matinés infantis (quartas e Sábados) assistíamos todos deixando a praia deserta. A raspa consistia numa meia dúzia de saltos, e rodas entusiásticas, com uns gestos á mistura. Era óptimo porque as saias rodadas das meninas levantavam-se um bocadinho. E um pouco de perna ao léu sob uma saia era muito melhor que a perna toda na praia quando a proprietária da dita cuja andava de fato de banho!
Portanto Fredão, apaixonado. Fortemente! A pontos de nem lhe apetecer a “bolacha americana” das tardes. E olhem que o sacrifício da bolacha americana, era coisa digna de espanto. Pior: Fredão desdenhava os jogos diários de futebol. Vá lá que, se porventura era um Portugal Espanha, ainda se animava. Não pelo futebol mas pela hipótese de batalha campal em que o jogo se tornava após os primeiros dez minutos ou o primeiro golo. Aí começava a valer tudo. Tudo, ponto e vírgula! Estava formalmente proibido puxar para baixo os calções do adversário. Havia pudor! Fora isso valia tudo: canelada, empurrões, rasteiras, encontrões e o mais que viesse à cabeça dos atletas. Era a pátria que estava em causa!
Voltemos, porém, ao suspirante Fredão: um desastre. Sentado, longe do grupo, à beira mar, com o pé a molhar na onda, Fredão, sondava a distância, o mar, e nem olhava para quem passava. A restante garotada indiferente, demasiado ocupada com as variadas ocupações de um dia de praia. Aliás manhã de praia que o desgosto de Fredão inaugurou-se por volta das nove da manhã e eram dez e tal quando eu me apercebi do caso. Preocupado e circunspecto sentei-me junto dele e disparei: tás doente?, queres vir ao banho? Vamos picar umas carreiras? Posso almoçar em tua casa?
Fredão encolheu os ombros e respondeu: não, não, não, sim se te apetecer mas hoje o almoço vai ser caras de bacalhau porque o meu pai chegou ontem à noite de repente e quer comer as caras de bacalhau.
Porra! Pensei. – caras de bacalhau! – Convém dizer que o pai de Fredão, além de autoritário tinha a mania de comer iguarias deste teor que nós todos, a arraia miúda, detestávamos. Aliás logo que cada prato estava servido pela criada começava um descarregar de caras de bacalhau no prato do parceiro que fazia o mesmo até encher o prato da irmã mais nova de Fredão que protestava baixinho. Aí o pater famílias punha os óculos de ver ao longe e dizia “Amélia ponha mais caras de bacalhau aos meninos que eles já acabaram!” E já não tirava os óculos. E nós, lá tínhamos de comer aquilo. Ou como dizia o Dr. Alves (o pai do Fredão) ou comem as caras a bem ou comem a mal, as caras e uns bofetões… O dr. Alves, fazia parte de uma negregada confraria de pais de crianças em férias na Praia que atribuía a todos os seus membros o direito de bofetão e castigo a qualquer dos filhos próprios ou alheios. Uma conspiração de pais que só pedia meças a uma outra de mães e tias que era ainda pior!
Bom, voltemos ao Fredão. Desconvidei-me de imediato do almoço e inquiri das suas razões para estar com tal carga de angústia existencial. Não foi bem assim que eu disse mas o Fredão, pouco dado ao estudo de Sartre, não se incomodou e desbobinou a história da Ju, que ao saber por terceiro (um emissário, no caso o Marito, primo do Fredão), da paixão assolapada teria dito que o Fredão estava bom para namorar uma toninha. Ora, como as leitoras do Brasil não saberão, a toninha é uma dessas bichezas marítimas, estilo golfinho, que por vezes apareciam mortas no nosso litoral, mortas e a cheirar que tresandavam. E gordas. A afronta, o desdém, a comparação eram, pois, graves. E definitivas. E logo no princípio do Verão! E Fredão deixou escapar uma lágrima gorda (como ele) pela bochecha (também gorda e reluzente). Eu não posso ver ninguém chorar. Sobretudo um amigo que me avisava dos menus em casa dele para eu poder comparar com os da minha casa e escolher lealmente o mais adequado ao meu apetite.
Conversámos gravemente sobre o mundo, a vida, a volta a Portugal de bicicleta o talento do nosso campeão Alves Barbosa, as raparigas e os seus múltiplos mistérios e mesmo sobre uma certa Gina que eu andava a atacar. E ela, toda risinhos, segredinhos às colegas, deixando perpassar a ideia que “enfim, talvez…”. A coisa estava mesmo avançada: no jogo dos “reis e rainhas” ela queria-me para par (sinal verde, portanto, como a bandeira todos os dias erguida no nosso pedaço de praia). Fredão, bom apreciador, dava palpites. Vais bem pá, ele é muito gira! E eu, magnânimo “mas a Ju não lhe fica atrás.” Jesus o que fui dizer! Segunda lágrima de Fredão, logo seguida de terceira e quarta e por aí fora até eu o arrastar para o mar porque alguém podia ver o Fredão a chorar e um homem não chora mesmo quando tem onze anos e uma paixão do tamanho do fortim de Palheiros! Ai meu Deus, outra argolada! Fortim?, espantava-se Fredão entre duas ondas. - Fortim de forte, de castelo, com ameias, canhões, arcabuzes, bombardas, metralhadoras, lanças e espadas? - Melhor respondia eu, inconsciente e apiedado. - Melhor?, rugia Fredão, já esquecido da Ju, de todas as Ju, jás, jés e o que mais vier sobre forma de cobra feminina para atenazar o coação imenso dum gajo gordo mas forte, campeão de natação e de canelada, imbatível no jogo do empurra e grande apreciador de bolacha americana! - Melhor!. dizia eu, inconsciente de novo, burro, burro, como se verá. Um fortim cheio de figueiras! - Com figos? Babava-se Fredão, -Cheio , cheínho de figos! - Pingo de mel?, Insistia o guloso. - Sei lá! - Não acredito! - grande hipócrita o gordo, já tendo percebido que havia ali grosso, gordo segredo. - Ai não? Pois vamos lá hoje à tarde!
E fomos. Fredão sentou-se num ramo conveniente e grosso e durante umas horas comeu figos. Maduros, assim assim, verdes e verdíssimos! A passarada, que nos ramos mais altos também debicava, estava muda: nunca tinham visto nada daquele género. Uma máquina humana e metódica a devastar uma figueira centenária e carregada de fruta.
No dia seguinte de Fredão nada! Onde está onde não está? - Na cama com uma diarreia astronómica (gastronómica corrigia o Luisinho, sacaninha e bom aluno). - Doente - anunciou a criada Amélia. -Lá para a tarde podem visitá-lo, coitadinho, fiz um pudim mas não lhe podem dizer que ele está de dieta. Ordens do Dr. Marcelo ( o meu pai que aviava as nossas doenças de verão com rapidez e clisteres).
Fredão esteve ausente durante três dias tendo sido visitado (ele ou o pudim) no primeiro. Com o tempo as doenças deixam de ser interessantes sobretudo se não houver um lanche decente para os visitantes. Ao terceiro dia perguntámos pela Gina. Alguém disse foi ver o Fredão. Ninguém ligou. A Gina era mesmo assim. Comovia-se com a desgraça alheia mesmo se ela fosse uma simples caganeira por abuso de figos.
Ao quarto dia Fredão ressuscitou. Mais magro (menos gordo) pálido, proibido de futebol porque estava fraquinho. E de sol, no toutiço, nada! Por qualquer razão. Ou por nenhuma, como dolorosamente constatei quando o vi, muito juntinho da Gina, a partilhar uma bolacha americana. Grande traidor. As mulheres são umas cabras!
- Bem feito para não andares a dar á língua com as figueiras - resumiram acusadoramente o meu irmão, o Nélito e o Bartolomeu. - Agora temos de as mostrar aos outros!
E mostrámos! E afinal havia figos para todos! E apareceu uma menina chamada Isabel! E pediu-me ajuda para trepar à figueira. E ajudei! E disse-lhe quais eram os melhores figos. E ela agradeceu. E descascou um para mim!

Oh espíritos do Verão longo de outrora, dai-nos outra a vez a inocência dos anos que foram e não voltam. Ou um prato de figos! Maduros! Pingo de mel!

O Bonheur encerra para férias do pessoal e da gerência, que bem merece. Regressarão, lá para meados de Agosto, de terras galegas, com o papo cheio de marisco, peixinho fresco, pimentos do Padron (uns picam outros non!), vinhos do Ribeiro e Albariño e o que mais houver. Até lá comam os figos da aventura, do Verão e da nossa comum herança mediterânica.

4 comentários:

M.C.R. disse...

1 picar carreiras: estender-se ao comprido aproveitando a onda. era o surf de antes do surf, só corpo
2. vir ao banho: em Buarcos terra de gente limpa toma-se banho em casa e vai-se ao banho no mar. Perceberam?
3. caras de bacalhau: também chamadas cabeças. Petisco muito apreciado. E caro. Como as línguas de bacalhau. A grande cozinha marinheira, a cozinha dos barcos que iam para a Terra Nova, meses e meses a fio, no frio e no nevoeiro, tem múltiplas receitas deste tipo. Quem, porventura passar pela Figueira, não hesite. Passe a ponte para sul em direcção á Gala e pergunte pelo restaurante Carrocel. Obrigatório. A grande cozinha marinheira. É barato ainda por cima.

o sibilo da serpente disse...

Boas férias, MCR, e boas leituras. Com ou sem figos, mas com muito marisco. E mais reflexões sobre a idade da inocência, que nos tornam mais jovens.
Abraço
c

Silvia Chueire disse...

Que crônica, MCR ! Saborosa crônica da infância.
Está mais do que na hora de você publicar estas crônicas.

Boas férias !

Um abraço grande,
Silvia

M.C.R. disse...

Apareça editor e eu cá estou para ajudar na escolha!