Excertos de artigo de Luis Eloy Azevedo, Procurador da República no Círculo Judicial de Oeiras, publicado no DN de hoje
(sublinhados meus)
De comentadores a jornalistas, de políticos a advogados, muitas opiniões têm sido emitidas sobre o que deve ser o perfil do próximo procurador-geral da República. (...)
O mínimo que se pode dizer é que existem grandes dificuldades para quem escolhe e espera uma árdua tarefa para o escolhido. O ex-presidente da República, dr. Jorge Sampaio, teve uma sábia percepção dessas dificuldades ao enunciá-la como "a escolha mais difícil" que deixava ao seu sucessor.
De facto, as grandes dificuldades dessa escolha resultam para o poder político de um facto óbvio, mas pouco enunciado: o poder politico desconhece completamente o que é a magistratura e, até mais importante do que isso, desconhece completamente quem são, realmente, os magistrados entre os quais tem de escolher (vamos dar aqui de barato que o poder político não se inclinará para a desajustada solução de escolher um não magistrado).
Tratando-se de um cargo unipessoal, as qualidades pessoais do escolhido são, certamente, essenciais para o exercício do cargo. Ora, a nosso ver, o aspecto técnico-jurídico é apenas um de entre muitos aspectos fundamentais para o bom desempenho do cargo. De facto, parece assente que não será bom ter alguém a quem sobeje qualidade técnica e falte capacidade judiciária e qualidade comunicacional. (...)
Conhecer o Ministério Público, ter uma ideia mobilizadora conhecida para o Ministério Público e ter um projecto de renovação consistente é bem fundamental. Diria ser pelo menos tão fundamental como a capacidade técnica. O que torna a aposta ainda mais difícil. (...)
Na verdade, a magistratura portuguesa tem tradicionalmente pouco debate interno e despolitizou-se, deixou de intervir na pólis (e quando o faz traduz normalmente inconfessados interesses narcísicos ou corporativo-sindicais). A nossa magistratura, com os seus perfis mínimos de intervenção, reduz a sua visibilidade externa e comprime consideravelmente as margens de sucesso da escolha. E, a este nível será interessante analisar comparativamente o rasto político e pessoal do congénere espanhol, o fiscal-general Cândido-Conde Pumpido, o tipo de obra publicada previamente (colorida, variada e activa) e de intervenção sócio-judiciária anterior ao actual desempenho.
Por outro lado, uma árdua tarefa espera o futuro procurador-geral da República.
Desde logo, precisa de ter capacidade para conter o poder político para propósitos inconfessados de acabar com a autonomia da instituição e reduzir o seu peso relativo (ver o triste episódio de pretender passar o procurador-geral da República de sexto para 13.º no protocolo de Estado).
E ao mesmo tempo ter capacidade de ver e mudar o que não funcionou. De facto, na nossa opinião, o Ministério Público português, fruto de um determinado passado histórico, judicializou-se no mau sentido (usado este termo no sentido de reprodução de um modelo copiado da magistratura judicial). Pensou-se, na verdade, que a judicialização seria a melhor forma de proteger o Ministério Público das influências do Executivo. Mas os velhos erros do passado não evitaram novos erros no presente: a essa luz, criou-se uma estrutura com pouca mobilidade (a par do juiz natural criou-se um quase Ministério Público natural), com colocações de magistrados erráticas, sem levar em conta as capacidades individuais (acentuadas por um recrutamento onde se deu preferência ao número em relação à qualidade, convivendo, hoje, o muito bom e o muito mau em patamares igualitários e um mecanismo de progressão na carreira ancilosado), com uma estrutura hierárquica pouco clara (com equiparações à judicatura sem lógica qualitativa) e um diminuto papel uniformizador (com a completa paralisação das estruturas hierárquicas intermédias, reconduzidas a entidades de controlo meramente burocrático, sem qualquer papel para evitar a balcanização da aplicação da lei). Ou seja, o nosso Ministério Público perdeu autonomia de projecto, agilidade, organização, espírito de equipa, laços hierárquicos estreitos e isolou-se da comunidade. Por outro lado, temos um Ministério Público com autonomia, mas sem uma correspondente responsabilização comunitária. Ou seja, a sua judicialização, quer através da formação, quer através da blindagem do seu Estatuto, ajudou a fazer esquecer algumas das características que deveriam estar presentes na magistratura do Ministério Público, como a capacidade de iniciativa e a inquietude para o cumprimento integral de um projecto de cidadania plena.
Para consagrar um Ministério Público verdadeiramente de iniciativa comprometido com a qualidade de vida e a globalidade dos interesses sociais, seria também necessário romper com a sua conotação predominante de perseguidor penal e com uma perspectiva minguada de intervenção restringida ao processo judicial.
Em suma: para ter êxito, interna e externamente, espera o futuro procurador-geral uma tarefa ciclópica. Diz-se que as personagens de Beckett carregam em si todo o peso do mundo.
Boa sorte para quem escolhe e para o escolhido.
1 comentário:
Há uns anos - e não tem a ver com quem estava ou não estava - eu achava que o homem mais poderoso do país era o PGR. Hoje, quando recordo uma recente "pesquisa" do Expresso/Única sobre os 20 mais influentes do país, não vi lá nem o PGR nem ninguém ligado`à justiça. Fiquei preocupado. Como fiquei precupado quando, há duas ou três semanas, fui a uma conferência com o Cons. Cunha Rodrigues e estavam lá 30 pessoas. Quase sem magistrados. Quem gostava de ver como PGR? Alguém que fosse uma pessoa capaz de ser alguém que fosse reconhecido como influente.
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