20 julho 2006

O leitor impenitente nº 6

Um policial na varanda, frente às casuarinas

Então não morreu o Mickey Spillane? Ora bolas, e eu que pensava que ele já não era deste mundo há um bom par de anos! Foi preciso ler a coluna do Eduardo Prado Coelho para me dar conta deste óbito. O Eduardo não dizia se morrera de morte natural ou de algum tiro de ricochete, morte mais apropriada a este autor violento, que eu conheci via Vampiro, faz nem sei quantos anos. Tenho mesmo uma boa dúzia de livros dele: herança, ofertas, empréstimos não devolvidos, compras em alguma estação da CP para tornar a viajem mais leve? A verdade é que o tenho perto de outros do mesmo teor (Carter Brown, Henry Kane, Richard Prater. Dan Marlowe), livros comprados para uma urgência, literatura de praia sem livrarias, de ler e esquecer.
Recordo, entretanto, que esta adicção ao policial, bom, mau, medíocre ou péssimo vem de África. De Moçambique. Mais precisamente, do norte de Moçambique, no que foi o distrito de Nampula e agora será província, ao que sei. Nesse tempo íamos muito para o “mato” visitar amigos. Viagens espantosas pelas picadas de matope, para pequeníssimas terras com nomes mágicos, nomes africanos, plenos de luz, que queriam dizer coisas, que falavam da alma do lugar: Lalaua, Maringa, Mecúfi, Quixaxe, Chaonde, Quitxundulo, Ribáue, Amaramba, Bilibiza, Ziu-ziu, Ulúngué. E paro aqui porque já houve um palerma que trocou as memorias da infância com colonialismo, como se ter passado anos felizes em África fosse crime!
Ora nessas escapadas, enquanto os meus pais jogavam bridge e canasta com os hospedeiros e vizinhos, eu enfiava-me numa varanda enorme e amena (havia sempre uma varanda fresca, com uma mesa de gulodices e sumos de fruta) e zás pilhava o primeiro livro que via. E muito embora houvesse alguma “boa literatura” não faltavam livros que se lessem numa, duas horas, livros de que se podia interromper a leitura, deixá-la a meio se fosse caso. E entravam aí os policiais. Desde os Vampiros à XIZ, colecção rival, e aos editados no Brasil. Nunca percebi porquê mas no Moçambique dos anos cinquenta, circulavam revistas brasileiras (“O Cruzeiro” com o imortal Vão Gogo, um humorista como nunca mais houve; os “Guri” e “Gibi” revistas de banda desenhada para a miudagem, e mais umas tantas cujo nome perdi) e livros editados no Brasil sobretudo policiais (os Prather e companhia). Daí este meu profundo conhecimento e eventualmente parte destes livros baseados num esquema imperdível: detective engatatão, criminosos péssimos e burros, loiras mamalhudas, vamps morenas e tiros, muitos! Um regalo!
Paralelamente apareciam uns autores de nomes americanos mas que o não eram. Não falo do Dennis MacShade, que também terá aparecido mas tão só de dois outros que finalmente se tornaram famosos depois de terem ouvido exactamente os mesmos qualificativos: Ross Pynn e Dick Haskins. Ou seja, agora sabe-se, os senhores Roussado Pinto e António Andrade Albuquerque. À cautela tinham pseudónimo americano e a acção do romance passava-se em meios anglo-saxónicos. Confesso que não me recordo de nenhum. Mas nem por isso os desprezo. Um livro é sempre melhor do que um bombardeamento no Líbano. E tem menos vítimas colaterais! Aliás eu sou dos que pensam que, para haver bons romances policiais, houve que escrever muitos maus. Para fazer a mão do escriba, para divulgar o género. É por isso que sinto um pequeno aperto no coração ao saber do passamento do pai do Mike Hammer! E, se me é permitida uma confissão, alguns dos seus livros são melhores de muito do que a título de literatura, se publica por aí. Por aqui!
E já que falei de boa e má literatura, permitam os leitores que, por ter falado de Moçambique, recomende dois livros a todos os títulos notáveis: “Tabus e vivencias em Moçambique” e Mitos, Feitiços e Gente de Moçambique”. O autor, Edgar Nasi Pereira, era amigo do meu pai. Conheci-o quando era administrador de Meconta, a leste de Nampula, a caminho das praias abençoadas do Mossuril. Acho que na sua bonita casa de Meconta, outra varanda!, também terei lido algum policial. Os livros de que falo, e vivamente recomendo, estão publicados pela Caminho.
Se algum dos leitores encontrar esse venerável ancião, há-de ter oitenta e vários, fará o favor de o cumprimentar por mim. O filho do Marcelo, o médico de Nampula! Ou diga-lhe: kanimambo!

um leitor avisou-me da falta de leitor (im)penitente nº 3. É verdade. Está escrito á espera de oportunidade. Graças a Deus, sou apenas um escriba do efémero, nada de grave, posso dar-me ao luxo de achar que nos escritos que vou perpetrando a ordem dos factores é arbitrária. Mesmo que essa lei científica não se aplique ao caso em apreço. Um dia destes sai o nº 3 do leitor. Enquanto houver paciência para me aturarem.

2 comentários:

Silvia Chueire disse...

Gostei de ler este texto, MCR. Eu não sou fã especial dos romances policiais , mas foi bom ler o seu entusiasmo pelo gênero e respeito pelos autores . E me fez lembrar de uma época em que eu lia tudo que me caísse nas mãos, desde revistas em quadrinhos, a romances policiais , ou de bang-bang,ou novelas cor de rosa.

Quanto às suas memórias afetivas da África, gosto de lê-las. Tenho pouca intimidade com a África .

Abraços,

Silvia

M.C.R. disse...

Querida Amiga: eu leio tudo, tudo. Não sou um fanático pelo policial mas não o desdenho, sobretudo quando é bom, claro.
Quanto a África é uma paixão absoluta. Se calhar sinto o apelo das raízes longínquas, se é que é verdade que a nossa espécie veio de lá como tudo parece indicar.
depois passei lá uma parte da minha juventude, primeiros amores, amigos, aventuras, liberdade. Por isso mesmo engajei-me ligi que tive duas ideias na cabeça no combate pela liberdade nossa e deles africanos. finalmente comecei há muitos anos a estudar com toda a seiedade a etnografia, a história, a antropologia africanas. Jesus o que li! jesus o que descobri!
sov+bretudo descobri uma coisa fundamental: não há povos eleitos nem povos inferiores. Há apenas homens com a sua pequena tragédia com a sua grandiosa dignidade.