25 julho 2006

Penumbras


Não, não é verdade, não podes dizer isso, tu não me conheces, nunca me conheceste, por muito que me tenhas visto, e nunca irás conhecer-me, mesmo que me tenhas visto tantas vezes com o teu olhar de censura. Chegaste demasiado tarde, já o sol se punha, ficaste o que bastou - o que bastou - e foste, foste não sei por onde nem para onde. Não perguntei. Do mesmo modo que não te perguntei de onde vinhas. Uma falha de carácter!, gritas? Não, claro que não é nada disso e tu sabes que não é nada disso, mas não queres saber porque não não te interessa saber, preferes pensar que é uma falha de carácter, porque dói menos e parece mais justo. Mas só parece.

Entendamo-nos: podias ter sido, mas tu não foste um caso de amor, sequer uma paixão daquelas que fulminam. Tu foste um acaso. Eu fui um caso. Um flash. Um tropeção que caíu bem, mas tinha prazo certo. Como um contrato de ususfruto com termo certo. Cada um de nós fruiu o outro e foi muito. E foi bem. E não foi isso o que eu te disse? Não acreditaste? Pensa bem. Não foi isso o que combinámos, naquele momento em que o sol se pôs e eu te disse que era o vagabundo à espera de um poiso, mas que não andava à procura de poiso, porque me habituei a ser um sem abrigo? Não foi isso mesmo o que viste, durante tanto tempo, aquele tempo em que numa noite por semana, sem uma palavra trocada, me olhavas e censuravas os meus desvarios? Pensa bem. Quando tropeçámos, eu até te disse que ressonava e que não gosto de incomodar ninguém... Pensa bem. Lembra-te das palavras exactas, porque elas foram exactas como uma escritura.

Se me custou ver-te partir? Custou, claro, sempre me doeram as partidas, custou-me ver o teu esgar de dor, o caminhar apressado, custou-me começar o retrocesso, esquecer os teus olhos que, queiras ou não, têm um traço de oriente e o teu sorriso que é o mais bonito do mundo. Mas chegaste demasiado tarde, já o sol se punha.

Foste um tempo que vai do sol ao sol. Que eu estou no tempo da penumbra, procuro as sombras, e foi aí que estivemos, porque chegaste tarde. Ou fui eu. Já não sei...
(Se te apraz, já tenho saudades)

6 comentários:

M.C.R. disse...

muito bem!

Sónia Sousa Pereira disse...

Tão bem escrito, que chega a doer..

S.

o sibilo da serpente disse...

Até corei, Sónia! Obrigado. E também ao MCR.

Silvia Chueire disse...

Gosto do texto, carteiro. Gosto mesmo.

Abraços,

Silvia

o sibilo da serpente disse...

Obrigado Silvia, obrigado asna. Curiosamente, estive para deletar o texto logo depois de o colocar. Quando me perguntei: estas coisas interessam a alguém?

Depois, achei que não devia. Podia alguém ter já lido e não era de bom tom :-)

Sónia Sousa Pereira disse...

Escreva mais, sobretudo sobre o que lhe vai na alma... que é onde escreve melhor.

(Mas note que escreve sempre muito bem!)

S.