19 outubro 2006

Au Bonheur des Dames 37

Carta a um leitor

Eu, Caríssimo Leitor, não sou um escritor. Lá gostar de ser, gostava, mas de facto, e aqui entre nós, não o sou. Escrevo muito, pois venho de uma família que durante longuíssimos e bons anos, se espalhou por esses imenso mundo fora, por todas as razões possíveis, exílio político incluído. Unidos como eram, e somos, escreviam longas cartas uns aos outros/outras. A campeã era obviamente a minha avó Aldina que devia ter um qualquer acordo privilegiado com os correios porque diariamente dava ao dedo e pimba!, três cartas, pelo menos ela enviava. Mesmo naquele tempo, aquilo representava dinheiro. Todavia, a Velha Senhora (era assim que eu e a prima Maria Manuel lhe chamávamos...) não desistia de escrever. Aos filhos, aos netos, às primas e sobrinhas a um numeroso lote de amigas e sei lá a quem mais. A tia Néné, idem, escrevia que se desunhava. Entre ela e a minha mãe aquilo parecia um teletipo de jornal em hora de movimento: as cartas cruzavam-se sobre o mar carregadas de pequenas novidades, notícias sobre a moda, sobre livros e filmes, sobre os familiares tudo isto atado por uma vaga filosofia de comportamentos que elas iam trocando em miúdos. Outros tios, eu mesmo, idem, aspas, mas já em menor grau (nós de certeza não tínhamos desconto dos CTT!). E se insisto nisto dos descontos é apenas porque a minha mãe (agora tratada juntamente com a tia Néné por “Old Ladies” – sempre a perigosíssima Maria Manuel a pôr nomes) que conta com uns garbosos oitenta e quatro anos, tem alguns extraordinários hábitos gastronómicos. Gosta de comer fora. E gosta porque aí não é obrigada a seguir a férrea dieta que se impôs a si própria por via do que ela chama uns probleminhas de saúde. Portanto, comer fora, é um álibi para o mais que venial pecado da gulodice numa senhora desta idade. Perto de casa dela, havia um restaurante chinês de grande qualidade. Mais caro que os congéneres, mas muito melhor, mais variado e com uma cozinha muito mais rigorosa. O venerando Manuel Simas Santos, grande conhecedor de cozinha chinesa, pode atestar o que digo. A senhora minha mãe tantas vezes lá ia, levava lá tantas, e tão diferentes, pessoas que o dono do restaurante, lhe ofereceu um cartão vermelho que a creditava como cliente especial com direito a 10% de desconto em qualquer despesa. Quando vi aquilo, comecei por pensar que o cartãozinho era uma primeira versão do famoso livro vermelho do falecido presidente Mao. O mariola do chinês seria um agente secreto encarregado de recrutar membros da 3ª idade para a boa causa. Mas o meu irmão, desiludiu-me: que não, que a China já não precisa de agentes idosos em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo. A segunda hipótese que me veio à ideia era de que o caviloso gerente do restaurante quisesse de uma forma indirecta, cativar a minha “Old Lady” e, quiçá, propor-lhe casamento para poder estabelecer-se definitivamente em Portugal. (Coitado, pensei, nem sabes no que te metes...). Todavia, apesar de romântica, esta hipótese esboroou-se quando, numa vez que lá fui, ele nos mostrou dois filhos pequeninos, gordinhos, bonitos e absolutamente chineses.
A terceira ideia que me surgiu foi a de que talvez ele precisasse de uma sócia e preveni a minha mãe que, mais dia menos dia, a via na caixa do restaurante, a conferir as despesas dos clientes. A minha mãe disse-me então que, nesse caso, teria de pedir um desconto maior, um ordenado condigno, cabaias chinesas a condizer (Não vou andar lá vestida à ocidental!), caixa de previdência, 13º, 14º e 15º mês (é o mês lunar, disse-me a excelente senhora, na China é assim. Claro que não é mas eu não podia desiludir uma leitora de Somerseth Maugham e de Pearl Buck.). Enfim, acabei por acreditar que era mesmo um pequeno gesto de amizade e o reconhecimento devido a uma freguesa constante. Sempre que vou a Lisboa, lá agarro na autora dos meus dias e zás, Miraflores com os dois para o Palácio da China (pois o das vizinhanças, e do mesmo dono, fechou com enorme desgosto da minha mãe, das suas habituais parceiras de canasta que ela viciara em arroz chau-chau, em shop suey, chau min ou guo bao de San Xian, do meu tio Quim, e dos meus sobrinhos...).
Meu Caro leitor DMF, como V. pode ver eu já me perdi: estava a dizer que não era escritor e já lá vão duas laudas de comida com desconto!
Esta é a primeira razão porque não sou, nem nunca poderei ser escritor: perco-me. Pareço um desses viajantes que só o são porque, indo à mercearia por um quilo de batatas, só aparecem, quando aparecem, dali a una anos, muito queimados pelo sol, trazendo uma arara ao ombro e uma tremenda pronúncia brasileira. Vai-se a ver, esqueceram-se da compra urgente para o jantar e andaram, andaram até que tomaram o primeiro barco, fizeram-se aos trópicos, foram atacados por piratas, naufragaram nas Caraíbas, encontraram o Corto Maltese ou um bando de maoris neurasténicos e, pronto!, foram ficando, sabe-se por onde, sabe-se lá a fazer o quê, filhos claro, que isto de portuga vagabundo acaba sempre na cama de mulher doutras geografias...
Vê? Se não me acautelava lá apanhava com uma de luso tropicalismo pelas ventas, assim, como quem não quer a coisa.
Ponhamos que eu não sou escritor porque de facto sou um leitor. Como Você. Exactamente! Um tipo que, em apanhando uma folga, rapa da primeira coisa impressa que esteja à mão, senta-se, encavalita os óculos na ponta do nariz, pede uma bica e um copo de água, saca um cigarro (não, um cigarro não que eu já não fumo, que é impoliticamente incorrecto fumar mesmo num blog, ouviu Carteiro? - nem num blog!!!, que vem aí o dr. Correia de Campos e prega-lhe com uma taxa moderadora, e se não for ele, é outro como ele, mas mais magro, por exemplo o Dr. Vital Moreira, que agora vende banha da cobra pró-governamental que se farta, nada é mais triste do que um ex-comunista envergonhado, e lá estou eu outra vez a descarrilar, senhoras e senhores leitores façam o favor de não ler o que acima se escreveu, de o esquecer, de o negar, risquem as palavras, apaguem o computador, apertem os cintos que o comandante mcr e a sua tripulação vos desejam muito boa viagem) e lê, um livro, o jornal, a ementa, um anúncio, um edital ou, na falta disto tudo, a literatura inclusa que vem numa embalagem de aspirina.
Um gajo desta cepa nunca poderá ser um escritor, mesmo que o queira, que lho digam, que ele sonhe, pense, ou sequer suspeite. Um gajo deste género suja papel, mete letras num ecrã, tropeça no teclado e repara que, em três quartos de hora, conseguiu transformar uma carta séria e agradecida ao leitor David Monteiro Ferreira nesta babel que entretanto assina, mete no sobrescrito, cola um selo e expede ao cuidado dos CTT que agora se chamam, valha-lhes Deus!, comezinhamente Correios de Portugal.
Vai para David, com um abraço e um forte agradecimento: os leitores, Caro Amigo de Cortegaça, ainda por cima, terra marítima deste litoral maninho que se chama Portugal, são o sal da terra. E o prazer da escrita só é verdadeiro se for acompanhado desse outro que se chama o prazer da leitura. Melhor: a escrita só o é se, do outro lado, houver um leitor amável e atento. Até lá, é tão só uma garrafa com um papel dentro, deitada ao mar forte e franco que, de Caminha até Vila Real de Santo António, nos afeiçoou o ser, nos calejou o corpo com sal e sol e nos fez assim, diferentes mas iguais, mais de horizonte que de presente, mais portugueses do que qualquer outra coisa. É a nossa sina. Encomendemo-nos, pois, a S. Pedro, a S. Bartolomeu, à Senhora da boa Viagem ou tão só ao azar das ondas e do vento.

No Porto, no Molhe do Ferreira, em dia de mar forte e chuva, entre as cinco e as seis da tarde. Para David Monteiro Ferreira, leitor e amigo dos incursionistas, acompanhando a separata “gaudeamus igitur”.

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