Por quem alguns sinos dobram
Não é dia de grandes alegrias este que nos traz duas mortes tão longínquas e tão próximas: Cardia e Puskas.
Comecemos pelo último, pelo húngaro que praticamente marcou um golo de cada vez que jogou. Não é bem assim mas quase: em 700 jogos marcou 682 golos! É obra.
Eu não sou dos futebóis mas apesar de tudo sei reconhecer um jogador brilhante e Puskas, como Stanley Mathews, Pelé, Maradona ou Travassos (o do Sporting) deixaram um rasto glorioso. De golos, de generosidade, de entrega. E junte-se-lhes o Eusébio, já agora, esse milagreiro de um jogo inesquecível contra a Coreia, para só falar de um acontecimento desportivo.
Mas Puskas, desculpem lá os outros, era um portento. Fintava no espaço de um lenço de assoar, era gordinho e parecia desajeitado. Puskas era uma czarda de Liszt num baile de bombeiros. As pessoas paravam, embasbacadas, para o ver. Morreu ontem com quase oitenta anos. Esperemos que os seus compatriotas e a malta do Real Madrid lhe prestem a homenagem que merece.
E o Cardia? Pois o Cardia é rapaz do meu tempo, como é costume dizer-se. Encontrámo-nos em Coimbra, em 63, vinha ele expulso de Lisboa com mais um belo grupo (Eurico de Figueiredo, Valentim Alexandre, António Correia de Campos e o Nuno Brederode) de perigosos agitadores. Em troca a universidade de Coimbra tinha exportado outros tantos para Lisboa pelos mesmos motivos.
O Cardia tinha um ar frágil e desprotegido mas era um tipo rijo, corajoso e excelente conversador. Varámos algumas noites, no “Mandarim”, ali à Praça da República em conversas de bica aberta, sobre tudo e sobre nada. Depois ele formou-se e só dava notícias via “Seara Nova”. De vez em quando sabíamos que tinha sido preso pela PIDE. E sabíamos igualmente que ele fazia parte dos “que não falavam”. Só quem viveu esses tempos de susto e resistência é que sabe o que isso significava, a segurança que o Mário transmitia e o respeito que os outros lhe tinham. Era também um stalinista ao que se dizia. E um guardião da fé contra ventos e marés.
Mais tarde, já nos anos setenta aparece subitamente no PS. E depois do 25 de Abril terá com António Barreto a honra de ver o nome pintado por toda a parte com pedidos de demissão e ataques ferozes. O que não quer dizer que ambos não tivessem razão, mas isso agora será chover no molhado. Depois, desapareceu de cena. Foi vagamente candidato a candidato à presidência da república e a partir daí foi o black-out total. Os jornais e a televisão anunciam-lhe a morte. Aos 65 anos! Com ele, e ao mesmo tempo, desaparece toda uma geração de dirigentes políticos do PS. Varridos pela história e pelos congressos unanimistas do partido socialista. Como se a morte de Cardia fosse a metáfora da morte de uma certa ideia de socialismo português.
A terceira morte do dia é de uma jovem modelo brasileira. Alguém (quem?) tê-la-á convencido dos benefícios da extrema magreza. Anorexia, dizem os jornais. Num mundo onde milhares de pessoas morrem de fome cada dia, esta morte no privilegiado mundo das lantejoulas, das fotografias, dos contratos milionários é uma abominação. Morrer por um eco distorcido da elegância fabricado pelos grandes da moda é um crime. Ocultar a morte diária de multidões atrás desta morte auto-provocada ou induzida por obscuros interesses é pelo menos revoltante.
E mais do que isso: esta vai ser a morte das televisões, das revistas, da piedade cor de rosa. Esta é a morte que tem o perfume do escândalo, a rentável, a exemplar.
O mundo passa bem sem um jogador mágico fugido aos tanques de Budapeste ou sem um intelectual rigoroso e marcado por todos os embustes do século. Os sinos, os que se ouvirão, têm outras mortes por que dobrar.
Comecemos pelo último, pelo húngaro que praticamente marcou um golo de cada vez que jogou. Não é bem assim mas quase: em 700 jogos marcou 682 golos! É obra.
Eu não sou dos futebóis mas apesar de tudo sei reconhecer um jogador brilhante e Puskas, como Stanley Mathews, Pelé, Maradona ou Travassos (o do Sporting) deixaram um rasto glorioso. De golos, de generosidade, de entrega. E junte-se-lhes o Eusébio, já agora, esse milagreiro de um jogo inesquecível contra a Coreia, para só falar de um acontecimento desportivo.
Mas Puskas, desculpem lá os outros, era um portento. Fintava no espaço de um lenço de assoar, era gordinho e parecia desajeitado. Puskas era uma czarda de Liszt num baile de bombeiros. As pessoas paravam, embasbacadas, para o ver. Morreu ontem com quase oitenta anos. Esperemos que os seus compatriotas e a malta do Real Madrid lhe prestem a homenagem que merece.
E o Cardia? Pois o Cardia é rapaz do meu tempo, como é costume dizer-se. Encontrámo-nos em Coimbra, em 63, vinha ele expulso de Lisboa com mais um belo grupo (Eurico de Figueiredo, Valentim Alexandre, António Correia de Campos e o Nuno Brederode) de perigosos agitadores. Em troca a universidade de Coimbra tinha exportado outros tantos para Lisboa pelos mesmos motivos.
O Cardia tinha um ar frágil e desprotegido mas era um tipo rijo, corajoso e excelente conversador. Varámos algumas noites, no “Mandarim”, ali à Praça da República em conversas de bica aberta, sobre tudo e sobre nada. Depois ele formou-se e só dava notícias via “Seara Nova”. De vez em quando sabíamos que tinha sido preso pela PIDE. E sabíamos igualmente que ele fazia parte dos “que não falavam”. Só quem viveu esses tempos de susto e resistência é que sabe o que isso significava, a segurança que o Mário transmitia e o respeito que os outros lhe tinham. Era também um stalinista ao que se dizia. E um guardião da fé contra ventos e marés.
Mais tarde, já nos anos setenta aparece subitamente no PS. E depois do 25 de Abril terá com António Barreto a honra de ver o nome pintado por toda a parte com pedidos de demissão e ataques ferozes. O que não quer dizer que ambos não tivessem razão, mas isso agora será chover no molhado. Depois, desapareceu de cena. Foi vagamente candidato a candidato à presidência da república e a partir daí foi o black-out total. Os jornais e a televisão anunciam-lhe a morte. Aos 65 anos! Com ele, e ao mesmo tempo, desaparece toda uma geração de dirigentes políticos do PS. Varridos pela história e pelos congressos unanimistas do partido socialista. Como se a morte de Cardia fosse a metáfora da morte de uma certa ideia de socialismo português.
A terceira morte do dia é de uma jovem modelo brasileira. Alguém (quem?) tê-la-á convencido dos benefícios da extrema magreza. Anorexia, dizem os jornais. Num mundo onde milhares de pessoas morrem de fome cada dia, esta morte no privilegiado mundo das lantejoulas, das fotografias, dos contratos milionários é uma abominação. Morrer por um eco distorcido da elegância fabricado pelos grandes da moda é um crime. Ocultar a morte diária de multidões atrás desta morte auto-provocada ou induzida por obscuros interesses é pelo menos revoltante.
E mais do que isso: esta vai ser a morte das televisões, das revistas, da piedade cor de rosa. Esta é a morte que tem o perfume do escândalo, a rentável, a exemplar.
O mundo passa bem sem um jogador mágico fugido aos tanques de Budapeste ou sem um intelectual rigoroso e marcado por todos os embustes do século. Os sinos, os que se ouvirão, têm outras mortes por que dobrar.
2 comentários:
Belíssimo texto ! Faz com que o domingo deixe de ser um dia triste.
Cumprimentos
Obgdo por me teres informado.
o mandarim, continua a despovoar-se ...
daquela mezanine de boa memória
em breve só haverá sombras ?
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