30 novembro 2006

Diário Político 33

Carta a um amigo que entra na 3ª idade

É sempre difícil escrever a alguém que se abeira dessa idade difícil que agora se convencionou chamar terceira. Pessoalmente quando me falam disso recordo sempre a antiga terceira classe dos comboios, os medonhos vagões feios e de madeira, cheios de correntes de ar e de fumo o que até era um alívio porque disfarçavam o cheiro miserável das retretes.
E provavelmente estarei mais perto da verdade do que esse coro safado de louvores a uma idade inútil, desprezada, a uma idade de sobrecarga para quem anda na vidinha e pensa que está a descontar para os malandros dos velhos. Eu aqui a fossar e eles na maior a jogar à sueca no jardim!... Ou: que este gajo anda para aqui a fazer, não quer ir para a reforma? Não vê que está a tirar o lugar aos novos?
Ser velho ou “idoso” que é mais politicamente correcto, é andar mais vagarosamente, rotinar os dias entre o café com a roda de amigos e uma ida à farmácia aviar uns remédios. Ser velho é não estar a par das novas tecnologias, das novas formas de “comunicar”, do “k” desabrido em vez do “que” trabalhoso, tá a ver como isto é tão simples?
Ser velho é ter direito ao “cartão dourado” dos comboios e do metro para viajar entre nenhures e sítio nenhum, para visitar outros fantasmas que enchem lares, dão trabalho e são enganados por vendedores de sonhos caros mas a prestações, fazer parte da fotografia do senhor presidente na festa a declarar pomposo que com ele a terceira idade é a primeira.
Ser velho é morrer aos pedaços abandonado num hospital pelo Verão, dividindo com cães e gatos, o esquecimento dos donos destes, dos filhos, dos sobrinhos, dos afilhados ou nem isso.
Ser velho também pode ter a sua utilidade: nada mais prático que uma avó para tomar conta das criancinhas enquanto os pais vão para o trabalho que é preciso pagar as prestações da casa, do carro, das férias na República Dominicana ou mais prosaicamente ali para Torremolinos onde a animação é permanente.
Dirás que esta é uma visão catastrofista de uma idade que já nem é um escândalo, de um grupo social que cada vez tem maior peso económico, que vota ou pode votar, que esconde as rugas com botox ou outra coisa do mesmo tipo, que o viagra eliminou barreiras e riscos, que enche as esplanadas dos cafés e fala alto (pudera! Estão surdos como portas!) e critica sem piedade os novos hábitos e as novas gerações.
Dirás até que a idade não tem importância, que o que é necessário é manter a juventude de espírito, como se isso não fosse a negação temível do melhor que a idade tem ou pode ter: a sageja, a experiência, a tolerância, a ironia da dúvida e a serenidade frente às proclamações dos que chegam e querem mais pressa, mais rapidez, mais profissionalismo, mais ambição, mais produtividade.
Vão começar a chover sobre ti propostas aliciantes desde a universidade para a terceira idade onde um cavalheiro pretensioso se propõe ensinar-te história pátria, literatura light ou jogos tradicionais. E música! E ginástica moderna à base de aparelhos que te poupam o andar pela rua de nariz ao vento, que ele há por aí tanta bactéria...
Ser idoso, como agora passas a ser, significará também que se apanhares com um carro em cima, dentro ou fora da passadeira, serás notícia sempre com a classificação etária à frente: sexagenário vítima de atropelamento numa artéria movimentada do centro ajudado por populares.
Eu sei que algum leitor mais sensato vai dizer que este que estas debita no computador está com um ataque de pessimismo que nem se veda e o melhor é concordar com esse leitor por muito que no íntimo o autor sinta que estas palavras são acaso as mais verdadeiras terríveis crueldades de que a canção tão justamente falava.
De todo o modo mandam as convenções que daqui te envie um abraço pelo primeiro dia do resto da tua vida. Cave diem!

4 comentários:

al-ex disse...

gostava de poder ler este texto, com interpretação alemão e francês
na próxima reunião, de um grupo de amigos politicamente incómodos
que certas cabeças governantes e "obviamente bem pensantes"
nos chama
"les staliniens de Liège

ai-je votre accord ,

alex

M.C.R. disse...

Tout a fait, cher comentateur. moi jé ris les textes et aprés les lecteurs en font l'usage qu'ils considerent la plus interessante.
Et merci
d'Oliveira

Albino M. disse...

O Marcelo adormeceu? Cave diem?
Cave canem... (li eu em Pompeia)
Carpe diem... (Horácio?)
Dicant Paduani: cave diem?

O meu olhar disse...

Viva MCR!
Eu faço parte das leitoras que acha que está com um ataque de pessimismo.
A idade acompanha-nos e tem no seu fluir variedades de prazer infinitas. Claro que se falamos em falta de saúde, estamos conversados, mas, hoje em dia, consegue-se ter uma vida activa saudável até bastante tarde.
A este nível a minha referência é um amigo belga de 76 anos que não entende isso da idade activa e da reforma. Reforma de quê? Depende da forma como encaramos o nosso projecto de vida. Muito.
Claro que a realidade, nomeadamente a portuguesa, é muito como a que brilhantemente descreve. Cabe-nos a cada um de nós fazer o possível para ser diferente. Eu, por mim, se não me arrancarem a saúde, tenho um projecto de vida de “continuidade” como lhe chama esse meu amigo belga.
Por isso, aqui vai para o seu amigo um abraço e o desejo de muitos e bons projectos, que lhe proporcionem muito prazer!