A escalada do Carmo e do Chiado maila rua da Misericórdia
por duas velhas senhoras cheias de apetite
por duas velhas senhoras cheias de apetite
A gula é um feio pecado, ou pelo menos era isso o que dizia o monsenhor Palrinhas padre titular da Igreja de S. Julião, ali para as bandas da Figueira da Foz, igreja antiga mas que não conserva traços dos séculos obscuros em que terá sido erguida. Este monsenhor Palrinhas palrava que se fartava tinha sermões mais compridos que a espada de D Afonso Henriques e mais chatos do que o Nanaia. Convém não avançar mais um passo sem explicar aos que não tiveram a sorte de nascer entre a foz do Mondego e a serra da Boa Viagem quem é este Nanaia que já várias vezes terei citado. Ora bem: a falar verdade não sei bem. A expressão é figueirense, claro e referiria um cavalheiro chato, chatíssimo, digno de figurar no “Tratado Geral dos Chatos” (Guilherme de Figueiredo, Ed. Civilização Brasileira, s.a., 1963, 3ª ed., 1963 exemplar 1679!) e pelo que me foi dado saber deveria caber na categoria chato agressivo polémico (pp. 66 op. cit). Na Figueira terra de prodígios ainda que não tão abundantes como em Buarcos, os chatos há anos que tentam bater este record e conseguir que o seu nome sirva de medida e termo de comparação mas a verdade é que o Nanaia permanece impertérrito!
Portanto, monsenhor Palrinhas e a sua loooonga looonguissimaaa condenação dos sete pecados capitais, de todos os veniais, das virtude teologais e de outras coisas que tais. A gula, o simples apetite, porventura, assumiam a seus olhos foros de escândalo imenso.
As duas velhas senhoras invocadas no título são a Mãe e a tia Néné que agora, depois dos oitenta, atingiram a honra de serem referidas no melhor inglês que a prima Maria Manuel (licenciada em românicas....) conseguiu: as “old ladies”!
Em tempos que lá vão eram duas belas mulheres que atraíram muito e cobiçoso olhar no “Casino Peninsular”, elegantes e magras, coisa que o tempo modificou: agora têm charme e encanto das coisas antigas. A tia Néné ainda é mais magra, enquanto a Mãe, porventura mais conhecedora da vida, engordou uns quilos e nos intervalos de uma extraordinária dieta que ela segue por motivos de saúde (ou melhor pelo que ela entende como motivos de saúde) come-lhe bem, para castigar a carne, fazer baixar os humores fleumáticos, abater os biliosos e os coléricos, e melhorar os outros cujo nome ignoro.
Ora, para festejar a época natalícia, entendeu esta sábia senhora, aproveitar uma das minhas idas a Lisboa para ir conhecer de visu o restaurante Tavares na sua renovada forma. Melhor dizendo, numa das suas extensas leituras (ela lê tudo o que apanha ao alcance...) deu com um artigo que louvava a excelências da sala de cima do Tavares onde se comeriam uns mimos por preços não excessivamente excessivos. A descrição de algumas iguarias lá lhe despertou o palato e resolveu, em consequência, abrir uma das suas habituais e semanais excepções à dieta, para ir conhecer esse prodígio da gastronomia. E já agora leva-se a magra, disse-me, referindo-se à irmã mais nova e o Quim, outro irmão mais novo ainda. E a Maria Manuel. acrescentei Claro, respondeu-me a excelente senhora e até pode trazer o Eduardo, parece que está doente, deve comer pouco e como não bebe, nem pesa na conta. Admirei, ao mesmo tempo, a generosidade da mater famílias e o seu sempre presente sentido da economia.
Decidimos (isto é ela decidiu e eu ouvi), em consequência, atacar o Tavares num sábado, aliás no sábado véspera de Natal. Alertaram-se os parentes, combinou-se encontro na Suíça (em tempos já não muito recentes, a Mãe tinha uma espécie de base numa outra pastelaria da baixa, mesmo ao lado do elevador de Santa Justa. Entretanto os novos tempos suscitaram nos antigos proprietários o desejo louco de enriquecer pelo que de velha e esplêndida sala de chá aquilo transformou-se numa coisa horrenda de pronto a comer e o bando de velhas, velhíssimas mães e tias foi enxotado para outras paragens.
A reunião familiar iniciou-se bastante cedo porque a tia Nené e a Mãe teriam muito que falar enquanto nós (o tio quim a prima Maria Manuel e o escriba) iriam dar uma volta pelas livrarias e mesmo pela feira de alfarrabistas da rua Anchieta.
Quando regressámos à base, as duas old ladies apresentavam já vagos sinais de impaciência para não dizer fome. Vou buscar o carro, declarei, um pouco para me safar e muito por achar que Carmo, Chiado e meia rua da Misericórdia era subida demasiada para duas anciãs que somam mais de 160 anos. Que não, ripostaram as duas atletas! Que isso até lhes dava oportunidade para criar apetite. Que elas, a rua do Carmo, o Chiado e a Misericórdia era terra conhecida e batida... A prima Maria Manuel abundava no mesmo sentido: que viera a pedibus calcantibus desde as alturas da Graça com a mãe, a tia Néné, e que aquilo tinha sido uma corridinha... O tio Quim, esse, pensava mais no que iria comer e beber no Tavares, do que nas pernas das manas, isto de ser irmão mais novo, tem destas coisas, ai elas aguentam-se, estão ali para as curvas etc e tal.
E começou a escalada. Para meu espanto, as duas Senhoras treparam o Carmo enquanto o diabo esfregou o olho esquerdo. Animosas e decididas ainda tiveram tempo para deplorar o fim de grandes lojas tradicionais, ai o Martins & Costa, murmurou a Mãe, e neste ai ia um desgosto infinito pelo menos igual ao da recordação das ostras que eu comprava parta levar para cadsa do Zé Campelo e da Alda Rodrigues, e a luvaria disse a tia Néné estará igual? E nesta desconfiança da requintada tia que em luvas foi sempre inflexível, era todo um século que espreitava. E o David & Monteiro, resmunguei eu, raios parta a má sorte!. E arribámos ao Chiado, onde sempre choro pela leitaria Garrett, minha e do Vitorino ou vice-versa, que mal faz, somos amigos há tantos anos... arrisquei uma mirada para as duas old ladies mas fiquei espantado e tranquilo: subiam a ladeira com ar decidido. Corria-lhes nas veias sangue antigo, sangue de quem há oitocentos anos conquistara Lisboa aos pobres mouros que não estavam definitivamente preparados para mulheres que prefiguravam a padeira de Aljubarrota. E entrámos em acelerado na rua da Misericórdia, à vista do Tavares, do meu contentamento de tantos anos, que saudades do Fernando, magnífico restaurateur e do Miguel Magalhães ou do Zé Luís Nunes companheiros e comensais de tantos anos. Prometi-lhes, in immo pectore, que comeria pelos três, ainda por cima era a mater augusta quem corria com os maravedis!
Tavares, uma da tarde, 24 de Dezembro: fechado, definitivamente fechado, sab e-se lá porquê, se calhar pensam que a manhã de 24 é para ir à missa, fazer jejum e cobrir a cabeça de cinza, fortes sacanas! E pela rua acima era um rosário de casa fechadas, feias e inamistosas. Raios parta a sorte. Logo hoje que a Mãe estava com disposição de abrir os cordões à bolsa.
Acabamos na adega de S Roque onde nem se comeu mal mas definitivamente tristes. As duas senhoras que tinham escalado o Himalaia na esperança de um entrecot a la bordelaise a la sauce de chalottes contentaram-se com joaquinzinhos com arroz de feijão e exigiram para o regresso transporte motorizado sem sequer atyenderem ao argumento de que agora era só a descer.
Salvou-se apenas a frase memorável da Mãe: não foi desta será da próxima!
E com esta sentença digna de menção em qualquer manual de história pátria, aviso e comentário seco sobre as vicissitudes do horário dos restaurantes, termina esta crónica que vai toda para dois descobertos leitores que muito me honram como, aliás todos os outros que me aturam. Refiro com um forte abraço o Rui Namorado e o Manuel António Pina. Eles sabem que os li, leio e lerei sempre com prazer e inveja. Ao desejar-lhes um bom 2007 faço-os portadores do mesmo voto para todas e todos quantos me aturam.
O bonheur 44 segue-se ao 45. Afinal, o que é um número perguntaria Shakespeare numa outra versão do Romeu e Julieta? Uma convenção, caríssimo Bill, uma mera convenção. Um erro detectado pelo Manuel Sousa Pereira que agora tento remediar. O próximo “bonheur” terá o número 46 e tudo entrará na ordem. Aliás esta desordem numérica, anárquica atrever-me-ia, dá um certo sal a estas descosidas prosas.
Portanto, monsenhor Palrinhas e a sua loooonga looonguissimaaa condenação dos sete pecados capitais, de todos os veniais, das virtude teologais e de outras coisas que tais. A gula, o simples apetite, porventura, assumiam a seus olhos foros de escândalo imenso.
As duas velhas senhoras invocadas no título são a Mãe e a tia Néné que agora, depois dos oitenta, atingiram a honra de serem referidas no melhor inglês que a prima Maria Manuel (licenciada em românicas....) conseguiu: as “old ladies”!
Em tempos que lá vão eram duas belas mulheres que atraíram muito e cobiçoso olhar no “Casino Peninsular”, elegantes e magras, coisa que o tempo modificou: agora têm charme e encanto das coisas antigas. A tia Néné ainda é mais magra, enquanto a Mãe, porventura mais conhecedora da vida, engordou uns quilos e nos intervalos de uma extraordinária dieta que ela segue por motivos de saúde (ou melhor pelo que ela entende como motivos de saúde) come-lhe bem, para castigar a carne, fazer baixar os humores fleumáticos, abater os biliosos e os coléricos, e melhorar os outros cujo nome ignoro.
Ora, para festejar a época natalícia, entendeu esta sábia senhora, aproveitar uma das minhas idas a Lisboa para ir conhecer de visu o restaurante Tavares na sua renovada forma. Melhor dizendo, numa das suas extensas leituras (ela lê tudo o que apanha ao alcance...) deu com um artigo que louvava a excelências da sala de cima do Tavares onde se comeriam uns mimos por preços não excessivamente excessivos. A descrição de algumas iguarias lá lhe despertou o palato e resolveu, em consequência, abrir uma das suas habituais e semanais excepções à dieta, para ir conhecer esse prodígio da gastronomia. E já agora leva-se a magra, disse-me, referindo-se à irmã mais nova e o Quim, outro irmão mais novo ainda. E a Maria Manuel. acrescentei Claro, respondeu-me a excelente senhora e até pode trazer o Eduardo, parece que está doente, deve comer pouco e como não bebe, nem pesa na conta. Admirei, ao mesmo tempo, a generosidade da mater famílias e o seu sempre presente sentido da economia.
Decidimos (isto é ela decidiu e eu ouvi), em consequência, atacar o Tavares num sábado, aliás no sábado véspera de Natal. Alertaram-se os parentes, combinou-se encontro na Suíça (em tempos já não muito recentes, a Mãe tinha uma espécie de base numa outra pastelaria da baixa, mesmo ao lado do elevador de Santa Justa. Entretanto os novos tempos suscitaram nos antigos proprietários o desejo louco de enriquecer pelo que de velha e esplêndida sala de chá aquilo transformou-se numa coisa horrenda de pronto a comer e o bando de velhas, velhíssimas mães e tias foi enxotado para outras paragens.
A reunião familiar iniciou-se bastante cedo porque a tia Nené e a Mãe teriam muito que falar enquanto nós (o tio quim a prima Maria Manuel e o escriba) iriam dar uma volta pelas livrarias e mesmo pela feira de alfarrabistas da rua Anchieta.
Quando regressámos à base, as duas old ladies apresentavam já vagos sinais de impaciência para não dizer fome. Vou buscar o carro, declarei, um pouco para me safar e muito por achar que Carmo, Chiado e meia rua da Misericórdia era subida demasiada para duas anciãs que somam mais de 160 anos. Que não, ripostaram as duas atletas! Que isso até lhes dava oportunidade para criar apetite. Que elas, a rua do Carmo, o Chiado e a Misericórdia era terra conhecida e batida... A prima Maria Manuel abundava no mesmo sentido: que viera a pedibus calcantibus desde as alturas da Graça com a mãe, a tia Néné, e que aquilo tinha sido uma corridinha... O tio Quim, esse, pensava mais no que iria comer e beber no Tavares, do que nas pernas das manas, isto de ser irmão mais novo, tem destas coisas, ai elas aguentam-se, estão ali para as curvas etc e tal.
E começou a escalada. Para meu espanto, as duas Senhoras treparam o Carmo enquanto o diabo esfregou o olho esquerdo. Animosas e decididas ainda tiveram tempo para deplorar o fim de grandes lojas tradicionais, ai o Martins & Costa, murmurou a Mãe, e neste ai ia um desgosto infinito pelo menos igual ao da recordação das ostras que eu comprava parta levar para cadsa do Zé Campelo e da Alda Rodrigues, e a luvaria disse a tia Néné estará igual? E nesta desconfiança da requintada tia que em luvas foi sempre inflexível, era todo um século que espreitava. E o David & Monteiro, resmunguei eu, raios parta a má sorte!. E arribámos ao Chiado, onde sempre choro pela leitaria Garrett, minha e do Vitorino ou vice-versa, que mal faz, somos amigos há tantos anos... arrisquei uma mirada para as duas old ladies mas fiquei espantado e tranquilo: subiam a ladeira com ar decidido. Corria-lhes nas veias sangue antigo, sangue de quem há oitocentos anos conquistara Lisboa aos pobres mouros que não estavam definitivamente preparados para mulheres que prefiguravam a padeira de Aljubarrota. E entrámos em acelerado na rua da Misericórdia, à vista do Tavares, do meu contentamento de tantos anos, que saudades do Fernando, magnífico restaurateur e do Miguel Magalhães ou do Zé Luís Nunes companheiros e comensais de tantos anos. Prometi-lhes, in immo pectore, que comeria pelos três, ainda por cima era a mater augusta quem corria com os maravedis!
Tavares, uma da tarde, 24 de Dezembro: fechado, definitivamente fechado, sab e-se lá porquê, se calhar pensam que a manhã de 24 é para ir à missa, fazer jejum e cobrir a cabeça de cinza, fortes sacanas! E pela rua acima era um rosário de casa fechadas, feias e inamistosas. Raios parta a sorte. Logo hoje que a Mãe estava com disposição de abrir os cordões à bolsa.
Acabamos na adega de S Roque onde nem se comeu mal mas definitivamente tristes. As duas senhoras que tinham escalado o Himalaia na esperança de um entrecot a la bordelaise a la sauce de chalottes contentaram-se com joaquinzinhos com arroz de feijão e exigiram para o regresso transporte motorizado sem sequer atyenderem ao argumento de que agora era só a descer.
Salvou-se apenas a frase memorável da Mãe: não foi desta será da próxima!
E com esta sentença digna de menção em qualquer manual de história pátria, aviso e comentário seco sobre as vicissitudes do horário dos restaurantes, termina esta crónica que vai toda para dois descobertos leitores que muito me honram como, aliás todos os outros que me aturam. Refiro com um forte abraço o Rui Namorado e o Manuel António Pina. Eles sabem que os li, leio e lerei sempre com prazer e inveja. Ao desejar-lhes um bom 2007 faço-os portadores do mesmo voto para todas e todos quantos me aturam.
O bonheur 44 segue-se ao 45. Afinal, o que é um número perguntaria Shakespeare numa outra versão do Romeu e Julieta? Uma convenção, caríssimo Bill, uma mera convenção. Um erro detectado pelo Manuel Sousa Pereira que agora tento remediar. O próximo “bonheur” terá o número 46 e tudo entrará na ordem. Aliás esta desordem numérica, anárquica atrever-me-ia, dá um certo sal a estas descosidas prosas.
1 comentário:
He!He! Grande!!
Nas velhas livrarias não esbarrou num Hissope? fica na rua António Dinis da Cruz e Silva! margem esquerda depois direita! depara-se com um casarão anónimo. depois são só 5 escritos morais! Há Fé!Muita!
Um Grande Abraço,M.C.R.
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