26 dezembro 2006

Estes dias que passam (Zé Loureiro)

Zé Loureiro
Faz mais de quarenta e dois anos! Uma vida. Ou quase. No caso presente é uma vida mesmo. Pela simples e definitiva razão que encontrou a morte.
Foi há minutos que a Maria Manuel me interrompeu uma conversa telefónica com a minha mãe. Para me dizer que o Zé Leal Loureiro morrera. O Eduardo, depois, deu-me mais alguns pormenores. Morrera com um ataque de coração enquanto dormia a sesta. Valha-nos isso, pelo menos. Morte súbita, sem anúncio nem sofrimento.
Por um momento, um largo momento, nem soube o que dizer. A gente agora via-se pouco, muito pouco mesmo. Direi que a última vez foi quando se anunciou que ele ia tomar conta da “Buchholz”... Ou seja dois anos bem contados. Curiosamente só nos encontrámos porque eu ouvi uma voz conhecida: a dele. Resmungava ao telefone porque não conseguia encontrar um quiosque aberto na zona onde vivo. Domingo portanto. Procurei o dono da voz e, claro, era ele.
Isto com o Zé Leal era já tradição. Um dia, aliás o dia 1 de Outubro de 1971, a João e eu saímos do Goethe Institut de Berlim onde tínhamos acabado de confirmar a matrícula. Descemos uns metros da Knesebeckstr. E entrámos na Kurfurstendamm em direcção a um pequeno hotel onde tínhamos dormido a primeira noite da nossa estadia em Berlin.
A meio caminho, vimos, e isto não é uma imagem nem sequer um truque, vir um jornal “le monde” aberto com umas pernas e as pontas de um cachecol de lado.
Não sou pessoa de pressentimentos, sequer propensa a adivinhar mas naquele dia, virei-me para a João e disse-lhe que se não soubéssemos que o Zé vivia em Paris, aquela pessoa de que só se viam as pernas poderia ser ele. Porquê? Não sei agora como não sabia daquela vez. Mas era o Zé, diabos me levem. Acabara um período no Goethe e ainda se demoraria em Berlin por mais umas duas ou três semanas.
Aquele encontro foi precioso. Nesse mesmo dia conhecemos várias pessoas amigas do Zé, ficámos com dicas óptimas sobre a cidade, sobre o nosso “Studentenheim” que uma das namoradas do Zé (ele tinha duas, irmãs ainda por cima e desconhecendo a relação do Zé com a outra, claro) qualificava de “Gefängnis” e sobre um par de restaurantes baratos, bons e servindo comida abundante.
O Zé de facto era vizinho da João, desde pequeno. E apesar de mais novo ia muito lá a casa, podendo mesmo dizer-se que as suas primeiras leituras proibidas ocorreram na hospitaleira casa da Alcinda e do Jorge Delgado. Não se pode dizer que o Zé tenha tido um mau professor na pessoa do Jorge Delgado. Antes pelo contrário. E foi aí que em 64 o conheci. Um miúdo inteligente, extremamente curioso e desesperado por ainda andar no liceu.
Depois fomo-nos cruzando por aí. Até que ele decidiu ir para Paris. Onde, claro, o encontrámos embora de modo menos romântico do que em Berlin. Nessa altura descobri, espantado e divertido uma livraria que o Zé frequentava na rue de Medicis, “L’Impensé Radical”. Nessa altura finais de 60 e princípios de 70, a livraria dedicava-se a literatura sobre jogos, a Freud e a mais um par de coisas relativamente fora do vulgar. De lá trouxe os meus jogos desde o “Go” e respectiva literatura toda editada pelo “impensé...” até ao “Djambi” e ao “jogo dos três reinos”. De há muito a esta parte que deixei de ter parceiros. A livraria também já não existe (acho que em seu lugar há uma livraria espírita) e o livreiro e editor, um grego exilado e culto também há muito que desapareceu. Terá voltado ao pais natal agora que está sem coronéis.
Depois durante a segunda metade dos anos setenta fui encontrando o Zé já instalado em Lisboa e dedicado à edição. E havemos de convir que sabia escolher livros. Mesmo que no capítulo negócios tivesse sempre apostado mal. Mas agora, que interessa?
Depois fomo-nos encontrando por aí. Uma das vezes apareceu-me na delegação do ministério da cultura por causa de um prémio de arquitectura que uma empresa que ele representava resolvera atribuir. Se não estou em erro foi por causa de um edifício do Eduardo Souto de Moura que nós (o Rui Feijó e eu) tínhamos conseguido convencer as autoridades a fazer depois de o projecto ter ganho limpamente o concurso. Anos de guerra, de propostas, de empenhos, de argumentos, de insistências. Até que Coimbra Martins pronunciou o fatal sim. Depois como é costume foi outro a inaugurá-lo. Demorou anos mas aí está: é a Casa das Artes (nome imbecil!) e foi o primeiro edifício significativo do seu autor. A empresa que o Zé representava (seria a Secil?) atribuiu o prémio a essa casa.
Nessa altura o Zé já tinha um bojo impressionante bem diferente do rapazinho entusiasta de quinze anos antes. Mas conservava o gosto seguro e a mim recordava-me anos felizes e aventurosos.
Agora acabou-se. Durante o sono, o coração traiçoeiro desforrou-se de anos de maus tratos. Agora já não discutiremos de novo quando nos encontrarmos. Eu não lhe direi algumas violências e ele não me chamará idealista envelhecido e petrificado. A revolução que ambos amámos também não parece de boa saúde. Como o coração do Zé. O coração que parou à tardinha durante a sesta.


Erbarmt euch des Todes
Menschen erbarmt euch
Rettet die Chance euch zu sterben
zumindest.

Nota: final de um poema de Wolf Biermann in Die Drahtharfe (tenham piedade da morte, homens tenham piedade da morte. Salvem pelo menos a possibilidade de morrer.

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