E agora o Zé Bandeira…
O nome dirá pouco á maioria dos leitores. José Gomes Bandeira. Jornalista. Reformado. 69 anos e tantas coisas para fazer. Coisas que já não fará. Como o livro que se preparava para escrever depois de anos de pesquisa. E de provas, acrescentarei. Um livro sobre vinhos. Melhor sobre o vinho. Com a minúcia excessiva, a meticulosidade que ele punha em tudo que fazia. Que fazia bem, convém acrescentar.
O Zé Bandeira era muito nosso, muito deste velho grupo de raparigas e rapazes que envelheceram comigo, que estiveram em todas comigo. Por isso esta “furtiva lágrima”, este olhar espantado, este remorso de continuar vivo. Como se o facto de estarmos vivos lhe fosse, a ele, ao Zé, algo de monstruoso. Nada disso! O que de certeza o Zé não quereria era este sentimento. O Zé fazia parte desse grupo de pessoas que não quer que a morte doa aos outros mais do que o necessário. E que esse necessário seja pouco. Parco. Como ele era consigo próprio: ensimesmado, secretamente habitado por amores que raramente irrompiam para lá daquele olhar doce, daquele meio sorriso que o iluminava, daquele “sócio” que ele chamava a torto e a direito aos amigos, às mulheres que amou, eventualmente à filha, sei lá.
Eu não quero fazer aqui a apologia da minha geração. Bastos erros carregamos às costas para de momento converter tudo isso num fogo de artifício que no breve instante em que sulcam a noite nos faça melhores ou maiores do fomos e somos. Todavia, também não posso deixar de “olhar para trás angustiosamente” e esquecer um percurso marcado pelo entusiasmo, pelas causas em que acreditámos, pelos combates que travámos. E o Zé Bandeira, até onde me lembro, esteve em todas. Começou por apanhar com guerra a dobrar, anos de sobrevivência no capim alto, nas colunas emboscadas, na morte repentina, no tiro furtivo do guerrilheiro. Regressou a Coimbra para retomar o curso de direito e reaprender a viver. E reaprendeu a nosso lado, fraterno, enquanto ia fazendo as cadeiras que lhe faltavam naquele especial sistema de exames a que anos de(masiados) guerra lhe davam direito. Pelo meio enchia-se de cinema, paixão e devoção de que daria provas mais tarde como jornalista e como critico de cinema. Quando foi preciso, naturalmente que apareceu, conspirou, aconselhou e viveu as loucas esperanças dos anos de crise académica.
Foi do grupo inicial da “Centelha”, editora com a qual quisemos “incendiar toda a pradaria”. Fez parte do “conge” palavra esquisita para significar o alargado grupo que dirigiu a crise de 69 e os dias subsequentes em Coimbra. E que, mesmo depois de formados e dispersos por esse país nosso que nos doía, continuou. O Zé veio para o Porto, claro, como muitos dessa geração, e aqui começou a trabalhar como jornalista. O Direito dizia-lhe pouco e o diploma deve ter sido para ele uma inutilidade que se carrega porque é um presente da família. O Zé gostava de escrever, era curioso, culto e por isso mesmo um bom jornalista. Escreveu milhares de páginas, como devia, mas para nós, que o líamos, percebia-se que, por ele, nunca teria saído da temática cultural. Do cinema, sobretudo. Com tudo isso é evidente que andou pelos cineclubes a pregar a boa palavra, o gosto pelo cinema, a análise limpa e clara de quem não precisava de usar palavras esquisitas para dizer se uma fita era boa ou má. Nos preâmbulos do 25 de Abril aí estava ele. Primeiro balcão para não dizer que também dava uma perninha àquele filme de que fomos não direi actores mas seguramente figurantes. Figurantes que tinham lido o argumento e o tinham achado interessante ao ponto de se oferecerem para o que fosse preciso. Depois como quase todo o nosso grupo, entrou no MES do Porto, discutiu, conspirou e saiu como nós. Pela esquerda baixa e cabisbaixos. E continuou, com a sua gente, a sua tribo, os seus camaradas a que ele chamava sócios, sibilando um pouco como bom beirão que era. Envelheceu como nós todos, sem surpresa nem arrependimento. Melancolicamente, talvez, mas isso vinha-lhe de nascença, como o meio sorriso e o olhar míope e doce. E a teimosia que sempre o habitou. E o nervoso miudinho que nem sequer disfarçava. Até hoje. Até um AVC extenso como um filme de Syberberg o liquidar em meia dúzia de horas. The end.
Para trás ficam umas dúzias de amigos de toda a vida, a Lionida, uma filha que era o orgulho dele, um livro por acabar. E milhares de páginas narrando o efémero, perdidas numa qualquer hemeroteca onde alguém habitado pelo fogo do cinema as irá desencantar para escrever a história do modo como víamos cinema nos anos da cólera.
Ponhamos que o Zé não morreu, simplesmente entrou pelo ecrã de um qualquer cinema de bairro e tomou a yellow brick road no fim da qual entre fundidos e encadeados encontrará Fellini, Renoir, Ford, Murnau, Griffith e os outros. Adorava saber o que ele lhes vai dizer!
Vai esta para os amigos e companheiros de uma jornada começada em Coimbra nos anos sessenta e continuada até hoje mesmo que estejamos demasiadamente espalhados. Ó malta temos que nos encontrar mais vezes sem ter que ir a um cemitério.
2 comentários:
Tenho lido com agrado estes últimos postais de memórias recuperadas e recicladas literariamente. Ontem, por mero acaso, dei com um texto publicado no JL comemorativo dos 25 anos. Assinado por Assis Pacheco, contava numa página, a história de um petiz a quem foi dado o nome de J.J.
O estilo é semelhante a este que por aqui leio: corrido, envolvente de referências personalizadas e cativante por isso mesmo.
No caso, o pequeno JJ, falava dos pais e principalmente da mãe e de um professor maldito que marcou o petiz.
Ao ler aqui, uma pequena menção a um percurso em que "Bastos erros carregamos às costas", torna-se inevitável a pergunta:
Mas que erros, santo Deus?
Onde é que Vocês erraram?
Não me vai dizer que foi na inscrição ( mesmo simbólica)...no MES. Ou vai?
Para mim, poderá bem ter sido, mas não penso que o seja para Vós, porque a razão que eventualmente a sutenta, será talvez a raiz desses erros. E se o for, não há erros. Há enganos de alma, ledos e cegos que a fortuna não deixa durar muito.
No meu modesto entender, claro e plagiado.
Não, caro amigo e Leitor atentíssimo. Não foi o MES o erro grande ainda que com recuo talvez devessemos ter ido para o PS e fazer dele algo que valesse a pena.
Os erros da nossa geração foram o ter embarcado, às vezes de olhos fechados, num bom par de embustes da história com mais generosidade do que espírito crítico.
Erro grosso foi não termos sabido salvar a Centelha editora que poderia ser agora uma referência.
Uma enorme referência!
Outro ainda, mas quem não o comete, foi o termo-nos perdido de vista com os anos para de repente nos encontrarmos desconsolados e inconformados à volta de um morte que já não precisa de nós!
Ou seja: nos tempos duros e frios soubemos estar juntos e agora que tudo é mais fácil é o que se vê.
Caro José: fico-lhe grato, gratíssimo e vaidoso por comparar as minhas redacções com a escrita do Assis. Antes fosse verdade... mas de todo o modo sabe bem e conforta-me o ego. E minora-me o desanimo nesta época de fazer o balanço e enterrar os amigos. Um bom ano de 2007 para Si e todos os seus e, se me permite, para todos os leitores que me aturam as veniagas e os entusiasmos. Bem hajam!
Um abraço repartido por todos
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