24 dezembro 2006

O Natal, por António Gedeão

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

(in "Máquina de Fogo", 1961; "Poesias Completas", 1968)

8 comentários:

Sónia Sousa Pereira disse...

Feliz Natal, a si Kami e a toda a equipa incursionista.

S.

Kamikaze (L.P.) disse...

Votos de Bom Natal também para si, Sónia e para todos os colaboradores e leitores do Incursões.

Vexata Quaestio disse...

Votos de Feliz Natal para a Kamikaze e todos os incursionistas.

Primo de Amarante disse...

À Kamikase já manifestei os meus votos de um bom Natal e um Ano-Novo que corresponda às melhores expectativas. Faço, agora,com o espirito do poema de Gedeão, os mesmos votos a todos os incursionistas.

ferreira disse...

Festas Felizes a todos os incurs:)

«Natal á Beira- Rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o pequeno ponteiro a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! È o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais,tão novos no passado!
E o menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, á noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
á beira desse cais onde Jesusu nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia ?»



de David Mourão-Ferreira

M.C.R. disse...

Agradeço como incursionista os votos. E agradeço enquanto leitor os poemas que o caro leitor Ferreira (olha, como o David!) e carissima Kami puseram.

ferreira disse...

Nós é que agradecemos, Marcelo, ( como o David MF)

Um grande abraço,não pare de nos mimar...

Silvia Chueire disse...

Novamente atrasada , porém não menos investida de afeto, desejo aos companheiros e leitores do Incursões que seu Ano Novo seja anda melhor do que deve ter sido o Natal.

Meu carinho,

Silvia