08 janeiro 2007

Estes dias que passam 44

De delatione in partibus orientalis

O arcebispo metropolitano de Varsóvia demitiu-se da sua nova função em plena missa de investidura. Porque durante vinte anos, sob o pseudónimo de Greg, tinha colaborado com a polícia política do anterior regime. Como mais uma enorme multidão de polacos. A notícia em si só assume alguma importância porque, desta vez, é um arcebispo católico, na catolicíssima Polónia, quem serviu o anterior regime comunista de que, dizia-se, a Igreja era o mais formidável e encarniçado inimigo.
Indo por pontos. Os regimes tirânicos baseiam muito do seu poder numa extensa e labiríntica rede de informações. Muito mais do que na repressão pura e dura. O finado, e nunca assaz chorado, professor doutor Oliveira Salazar dizia mesmo que “bastavam uns safanões dados a tempo” para aquietar as massas. O resto era intendência: polícia e respectivos informadores e reserva de empregos públicos fossem eles quais fossem a quem mostrasse sinais de obediência absoluta. E assim funcionou o “suave” Estado Novo. A “oposicrática”, o “reviralho”, rosnava do seu canto, guardado por fora pelos bófias fardados e por dentro pelos delatores. Empregos na função pública, viste-os... E se, porventura, alguma rês se tresmalhava, rapidamente a expulsavam desse redil pobrete que era o emprego por conta do Estado. Sucedeu assim com a militaragem desassossegada, com um gordo grupo de professores universitários e mais uns quantos que se tinham infiltrado ou entretanto se tinham convencido das excelências da democracia. Quando veio o cataclismo (o 25 A) foi-se a ver e nem se acreditava: a bufaria tinha infectado o corpo da grei em dose cavalar. A legião, e apaniguados, criara uma gigantesca rede de dezenas de milhares de delatores. Com pormenores extraordinários como o de um solícito cidadão que, segundo o relatório da autoridade competente, estava a denunciar por ciúmes. Pelos vistos o/a denunciado/a punha-lhe uma desmedida cornadura!
Isto por cá. E no resto do mundo? Pois no resto do mundo, a começar pelos nuestros hermanos foi um vê se te avias. Ainda a guerra civil ia no princípio e já nas zonas”libertadas” pela “cruzada” salvadora de Franco se enchiam praças de touros com “vermelhos”, sindicalistas, anarquistas, mações, ateus e similares. Denunciados pelos bons. Com uma ligeira diferença: uma vez metidos no touril, raros eram os que escapavam ao famoso “paseo al campo”. O exército franquista achava que não se podia dar ao luxo de deixar para trás presos... Presos precisam de guardas, a cruzada não podia dar-se a esse luxo e além do mais aquela gentuça nunca teria serventia para o glorioso destino duma Espanha regida por Franco.
Isto não serve de desculpa a muito crime cometido na outra banda. Também por lá se limpou o sarampo a muito presumível inimigo, fosse frade, comerciante ou proprietário agrícola, empresário ou rico.
Na França ocupada, cidadãos zelosos e admiradores do Marechal (maréchal nous voilá!) encarregaram-se de indicar às autoridades muito judeu ou outros facciosos do mesmo gabarito. Na Alemanha foi o que se viu: os campos de concentração começaram por encher-se de oponentes políticos antes de começar a época de caça aos judeus. Na Itália havia um pequeno distinguo: os oponentes menores eram obrigados a beber uma litrada de óleo de rícino e isso por vezes bastava para divertir a rapaziada dos “fascii di combatimento”. Mas o sistema delatorial era o mesmo e tinha os mesmos resultados.
O sistema soviético levou o processo a requintes de perfeição. Conseguiram mesmo eliminar quase todos os primeiros comités centrais bolchevistas. Sobraram quatro ou cinco gatos pingados que nunca terão percebido que milagre lhes caíra em cima.
Dito isto, voltemos à amantíssima Polónia, filha abençoada da Igreja. Que um dos mais importantes hierarcas tenha durante vinte anos sussurrado aos ouvidos meigos da polícia política um par de informações não espanta. O mesmo fizeram dezenas ou centenas de milhares de polacos, igualmente católicos, apostólicos e romanos. Para sobreviver? Para chatear o indígena? Por dinheiro?
Por mil e tal razões! Porque o Estado tirânico inquina a sociedade, torna-a enfermiça, tacanha, miserável e delatora. Apenas me espanta que Monsenhor Wielguz não tenha sequer pensado na hipótese de alguém vir a saber do seu namoro com as autoridades.
Todavia, também isso faz parte do modus vivendi das sociedades que acabam de sair do sono da razão. A mera dignidade cívica é uma palavra desconhecida quando se é politicamente analfabeto e quando nos ensinam, ou tentam ensinar, a viver medrosamente abjectos. E isso, essa inércia, essa incapacidade de dar à liberdade um outro sentido mais alto e mais nobre do que olhar para o lado e invejar o vizinho, é maleita que só muitos anos de democracia plena podem fazer curar ou pelo menos reduzir a doença a um par de casos sem remédio.
E mesmo neste caso, na democracia plena e vivida durante gerações basta que algo suceda, um desastre, um atentado e logo aparece uma multidão capaz de passar da informação cívica e desinteressada à denúncia caluniosa e ao vício antigo do mexerico e da insídia.
Lembremo-nos deste caso apenas por isso: no melhor pano cai a nódoa. E num sistema de miséria intelectual, moral e social a doença pega de estaca e espalha-se como fogo em campo seco.

5 comentários:

josé disse...

A delação é um antivalor...mas só o passa a ser quando o delator se defronta com a ordem estabelecida pelos delatados. Antes, é apenas um valente patriota, um bravo e leal participante do processo revolucionário/democrático em curso...

Esta asserção parece-me aconselhar uma colocação posicional de observador não comprometido.

Só quem nunca aderiu a partidos, facções, lutas políticas, lutas pelo poder, poderá mesmo dizer algo sobre o que significa a delação.
Exolico: a delação é prática de sempre e portanto ainda agora é meio válido para conquista do poder.
O chamado oportunismo não é mais do que uma forma de delação encapotada: afastam-se uns concorrentes para que outros possam passar...à frente e tomar assento ou lugar.
E isso acontece em todo o lugar em que a luta por lugares aquece a ambição.

A partir daqui, a imaginação é o limite.

M.C.R. disse...

Caro José: eu também sei o que é ser delatado. E não poucas vezes. só em 69 foi um ver se te avias...
e garanto-lhe (e o meu texto não deixa lugar a dúvidas... suponho) que não privilegiei regimes ou ideologias. Os delatados (e são uma multidão) nem sempre acharam que o delator o só era porque eles eram os vencedores. Ou tão-pouco porque eram os vencidos. V. nem imagina o que é encontrarmos á noissa frente um tipo que nos lixou... E não lhe desejo tal conhecimento. Além do mais porque até nós nos sentimos envergonhados pelo delator.

O meu olhar disse...

Caro MCR, excelente texto!

Caro José, a lógica que apresentou para a delação pode utilizá-la para muita coisa e o resultado é sempre o mesmo. Ou seja, do seu ponto de vista, e segundo entendi, a valorização do acto depende, para o próprio, do seu próprio contexto. Mas se isso auto legitima, podendo mesmo valorizar positivamente o acto para o próprio e os que o apoiam, não faz contudo desse acto uma coisa boa em si. No caso da delação, tenho dificuldades medonhas, diria mesmo impossibilidades, de ver algo que seja minimamente positivo. Seja qual for o contexto, seja qual for a justificação, é um acto de traição a alguém.

josé disse...

Claro que é um acto de traição a alguém! E também pode aplicar-se a inúmeras situações da vida.
Aliás, todas as denúncias são delações.
E será por isso que assume uma natureza híbrida, mais associada ao carácter individual do que a razões políticas, como geralmente se costuma qualificar.
A delação é uma entrega de outrém a um poder adverso.

Isso pode acontecer na política e na vida social, familiar ou de grupo restrito, por exemplo religioso ou profissional.

O delator é aquele que denuncia o que deveria ficar resguardado em função da virtude da caridade ou da lealdade ou da simples camaradagem.
Sáo valores do carácter individual e que se podem de alguma forma ensinar aos pequenos.

Mas...vejamos: se um camarada comete um crime grave contra os interesses do partido, denunciando por exemplo outro camarada e só um outro mais o sabe, onde deverá ficar a lealdade deste último? Deverá por sua vez tornar-se delator do delator, ou calar em nome do princípio?

E que dizer das pequenas denúncias mascaradas de comentários com destino certo "para os chefes" e finalidade precisa em prejudicar o visado?
Uma dia destes, um qualquer comentador de blog que vem aqui ler o que escrevo, escreveu na sua estrebaria de letras, qualquer coisa como isto: "será que os magistrados do sine die e do grano salis não lêem o que se escreve naquele blog?" Tal delação, referindo-se ao que escrevo habitualmente, destinava-se segundo o pobre de espírito a sensibilizar os supostos superiores hierárquicos para os desmandos ideológicos...

Como disse,a delação, quanto a mim, é sempre uma questão de carácter.

Evidentemente, o valor, aqui, reside em quem resiste a tentações e sabe ser leal. Seja na política, seja na vida social ou profissional.

Aliás, para mim, não há grandes distinções nestes campos.
E não faço um grande caso das delações restritas a assuntos de política, nos anos de chumbo.

Mas por outro lado, percebo perfeitamente que quem foi vítima de delação, reaja de forma vigorosa contra tal espécie de sabujice.
As minhas observações destinam-se a apenas a alargar um pouco mais a semântica do tema...

Silvia Chueire disse...

A delação nas suas muitas formas é uma manifestação do humano no que o Homem tem de pequeno, submisso, covarde.

É um tema difícil, porque nos toca a todos e porque , por outro lado sob o rótulo de delação tenho visto com frequência situar-se o limite frágil entre ela e a omissão.

Gostei de ler este post e os comentários.

Abraços,
Silvia