31 janeiro 2007

Estes dias que passam 46

37, 3 pela tarde

Eu sou um leitor de jornais assaz complicado. Detesto ler os casos de polícia menos ainda os ecos do jet set. Uma excelente (e bonita!) amiga atribuía esta minha incapacidade a um imenso super-ego que me levaria a só considerar o meu umbigo desdenhando os alheios mesmo incluindo partes pudendas. Aqui para nós, ela considerava-me um snob rematado e trazia à colação a minha ojeriza a grandes ajuntamentos, o meu princípio de comparecer nas festas e jantaradas com o meu carro (“para te poderes pirar quando quisesses sem dar cavaco à maralha...”) e a minha fraca propensão para contar amores e desamores (“que não contes aos teus amigos do peito, percebo perfeitamente, são uns fuxiqueiros e sobretudo os homens adoram gabar-se, dizia-me pesarosa, mas a uma amiga é diferente. Nós mulheres sabemos ouvir e tomamos normalmente o partido dos nossos confidentes”). Eu bem lhe dizia que a minha vida sentimental era quase tão chata quanto a descrição geográfica da Bélgica, mas ela não desamparava a loja. A certa altura desisti de refutar-lhe os argumentos. Pior a emenda que o soneto. Se até ali eu era o que era a partir daquele momento passei a ser uma versão pequeno burguesa do Sacher Masoch, versão lusitana.
Foi pelas razões acima aduzidas que tenho mantido silêncio sobre o estridente caso do sargento pai adoptivo e respectivo oponente. Primeiro, sabendo pouco ou nada do caso, achei que o sargento era um herói. Vejamos:
1. uma infeliz mãe solteira, vendo o fruto do seu pecado repudiado pelo presumível pai, entrega a criança para adopção
2. obrigado pelo MP a reconhecer a criatura, o pai biológico perfilha a criatura e
3. jura vingança. Assim
4. reivindica a criança
5. arrancando-a aos cuidados estremosos do casal que a queria adoptar.
6. o dito casal resolve num imenso acto de amor não entregar a criança.
7 . a mulher esconde-se com a criancinha e o homem arrosta sereno e altivo a prisão.
Contado assim, e foi assim que a imprensa contou o caso, eu, como a Dr.ª Maria Barroso, umas senhoras juristas e uns milhares de cidadãos conspurcámos o nome dos juízes que tinham decidido a favor de um pai biológico ausente e desinteressado.
Todavia, um amigo meu, zangado e vindicativo, veio informar-me que as coisas eram diferentes.
a. o pai biológico antes mesmo de ser convencido da paternidade, anunciou que assumiria integralmente o seu papel de pai no caso de se provar que a criança era filha dele
b. e de facto, no exacto momento, em que viu provada a sua paternidade imediatamente perfilhou a criatura
c. entretanto o casal “adoptante” que se fora “esquecendo” de desencadear o processo de adopção, logo que a vê perfilhada avança com o seu pedido, notoriamente inepto visto que havia pai, perfilhante e garante da educação da criança
d. tudo isto se passa durante o primeiro ano da criança
e. o que significa que se esta tivesse sido como se ordenava no primeiro de vários processos desencadeados pelo pai biológico entregue a este nada de grave ocorreria para o equilíbrio psicológico da bebé.
f. todavia os “adoptantes” recusaram entregar a criança e criaram toda a espécie de dificuldades ao pai biológico que nem sequer pode ver a criatura
g. o caso arrastou-se durante 3 ou 4 penosos anos e terminaram
h. com a condenação do sargento Gomes a um largo par de anos por sequestro.
Ponhamos que esta segunda versão é a mais conforme com a verdade. Estaríamos, assim, perante uma campanha histérica e imbecil, outra mais, contra a Justiça. Pior, estaríamos perante a manipulação descarada da opinião pública, coisa que poderia ser mesmo criminalizada se se verificasse ser comanditada pelo advogado do réu, por personalidades ligadas à protecção de menores e similares. Porque esses sabem bem o que passa.
Sempre esperando que o caso seja assim, a que vem agora um encontro entre as partes promovido pelo Ministério Público para transferência “gradual” da posse da criança? A que vem, se é que é verdade, a promessa de excarcerar o individuo justamente preso por sequestro? Que é que se prepara? Voltaremos a ver juízes contra procuradoria disputando por interpostos pais biológico e “pseudo-adoptante” a carninha frágil de uma criança de cinco anos? Pretender-se-á transformar uma sentença clara numa mascarada que, traduzindo em miúdos, devolva a propriedade da criaturinha aos pseudo-adoptantes fortalecidos por um apoio mediático e histérico que acabará por premiar o sequestro e desfavorecer o pai biológico, que tem contra ele a terra, o facto de ser pobre, de ser mulherengo e não sei que mais?
Sempre dentro da mesma ideia, que os factos relatados no acordão do tribunal são verdadeiros, parece-me meridiano de que foi a teimosia dos pseudo adoptantes que levou a este estúpido e trágico desfecho que não acaba na prisão do sargento mas continua na saga tonta de uma clandestinidade de mãe adoptante e criança que qualquer cabo de esquadra resolveria num par de horas, na reviravolta da mãe biológica que afinal também quer entrar na fotografia e na exposição canalha que se faz do pai biológico que, queira ou não, está definitivamente convertido num ogro se calhar pedófilo.
As leitoras terão verificado que ainda não me pronunciei sobre o aborto. São várias as minhas razões. E uma delas está já nesta história. Uma mulher engravidou. Engravidou sem possibilidades de criar a nova vida que trazia na barriga. Porque era muito religiosa manteve a gravidez. Talvez houvesse alguma alma caridosa que tomasse conta da criança. Depois foi o que se viu. Para a entregar mentiu sobre a paternidade. Os adoptantes foram-se distraindo e só deram o passo decisivo quando apareceu um pai. Ou quando acharam que a criança era perfeitinha e adoptável...
As razões seguintes basta ver o que a campanha vai trazendo ao de cima. Estas famosas questões fracturantes herdadas da falecida juventude socialista distinguiram-se pela estridência e pelo facto comezinho de com o barulho das luzes se evitarem temas bem mais graves e urgentes. Depois ainda não houve uma alminha gentil que me explicasse porque é que um tema deste género não foi debatido no seu local: o parlamento. Transferir a discussão para a população através do expediente do referendo é não só amesquinhar os pais da pátria mas sobretudo permitir que o populismo mais canalha, a argumentação mais miserável apareçam sob a luz forte da verdade sem sequer a protecção de um diáfano manto de inteligência. A única virtude, triste consolação, é mostrar, urbi et orbe, a nossa verdadeira face.
Como de certeza vou apanhar nas orelhas pelo meu tom tristonho convém dizer em minha defesa que ando com um pertinaz resfriado, alguns momentos de febre, a boca a saber a papel de música, dores no corpo, e a restante parafrenália própria da época. A culpa deste longo estádio semi-febril deve-se ao facto de ter interrompido a convalescença do primeiro resfriado para com mais uma centena de amigos celebrar os primeiros cinquenta anos da Regina Valente. Valeu a pena, apesar de tudo. Rever amigos de que não tinha notícias há dez ou quinze anos (e vivemos todos na mesma pequena cidade). Olhem companheiras e companheiros, podíamos todos estar bem pior. Atrevo-me mesmo a dizer que estamos muito melhor do que esperava. Então o mulherio está que ferve!
A latere: depois do último boletim sobre o meu peso, tenho a grata notícia de relatar que com o resfriado e respectiva dieta perdi mais dois quilos. Ou seja: faltam quatro quilos para me converter num modelo.
A latere de novo: O Público apresenta a história do blues. Oito dvd imperdíveis que há mais de um ano a farmácia de serviço noticiava em primeira mão. Demorou a chegar a um preço popular mas a partir de agora não há desculpas.

2 comentários:

ferreira disse...

Desejo-lhe rápidas melhoras, MCR.No entanto há males que vêm ( estará correcto ? )por bem.Menos 2 Kls.
Um abraço.

M.C.R. disse...

É verdade. Mas assim não posso ir a Lisboa à homenagem que a Casa Fernando Pessoa faz a Fernando Assis Pacheco, outra vítima de quilos a mais. Mas ele fazia por isso porque era um gourmet e um amador de grandes vinhos.