06 fevereiro 2007

Au Bonheur des Dames 50

A honra, a amizade, exemplos de vida

O sénior Heinzelmann chegou a Coimbra para frequentar a Faculdade de Medicina nos meados dos anos trinta, provavelmente em 36/37 ano em que, segundo ele, não houve caloiros por via da guerra de Espanha. Esta de não haver caloiros no nosso ano de caloiro é "calista". Nunca ninguém foi caloiro em Coimbra por razões variadas, fantasiosas e fortíssimas. O Oliveirinha, meu colega de curso trinta anos depois, afirmava convictamente que, no nosso ano, não houve caloiros porque tinha sido o ano da grande revelação. Descansem as leitores que não é do 3º segredo de Fátima que lhes falo mas tão só do aparecimento em filme inominável, do seio atrevido da Brigitte Bardot, um esplendor, Jesus, Maria, José! Que pedaço de mau caminho era a BB nesse ano soturno em que aportámos à Coimbra de lavados ares! E logo nós, caloiros (caloiros não, primeiranistas!...) bisonhos a contas com o frio cortante dos invernos conimbricenses, as trupes, a lonjura de casa (nanja para mim que, vindo de um campo concentração colegial, aquilo parecia o paraíso em mais feio mas mais livre) e os apertos financeiros que eram moléstia juvenil mais forte que o acne.
Não sei se as leitorinhas gentis e perversas (ai o que eu gosto dessa perversidade, agora que caminho para a idade canónica!) passaram por estes apuros monetários quando andaram pelas universidades. Naquele tempo podia haver muito rock’n’roll, muito Domenico Modugno (“nell bli dipinto di blu”), muita balada coimbrã, mas o carcanhol (o taco, o pilim, o cacau, enfim o que lhe queiram chamar) era escasso. Mais escasso que a passagem do cometa de Haley e tão etéreo como ele. As famílias davam pouco e de má vontade, e a rapaziada suava forte e feio para chegar ao fim do mês (ao fim do mês? Ao fim da quinzena e já era bom).
Bem, depois de me ter perdido pelos ínvios caminhos da agonia financeira, eis-me de volta ao Heinzelmann sénior recém-chegado a Coimbra nos idos de 36/37.
Filho e neto de gente do vinho do Porto, conservador q.b., amante do desporto e da cantilena coimbrã, Heinzelmann sénior lá cumpriu o cursus honorum coimbrão com algum aprumo. Namoros, os possíveis, muito andebol, muito fado à noite, às meninas e aos gatos, uma breve passagem pela república “Penúria Constante” e um largo leque de amigos que incluíam alguns porto-riquenhos escapados da Espanha em plena guerra civil. E muita liberdade, que ele também passara pelo colégio Almeida Garrett, ali à praça Coronel Pacheco. Os tempos eram agitados, uma geração de jovens rebeldes assentava arraiais no neo-realismo, nos amanhãs que cantam, na aliança intelectuais-proletários e na oposição a Salazar. Heinzelmann sénior passou por tudo isso incólume. Vinha de meios conservadores, gastava a sua energia no desporto, nas ceatas com amigos e no gargantear faduncho coimbrão pelas claras noites da dos lavados ares.
Formou-se com uma nota suficientemente decente para poder ser convidado para assistente de um conhecido professor da Faculdade de Medicina e um dos pilares mais activos da nova ordem salazarista. Um convite destes, para quem acaba de se formar, quer casar e ser independente, era o paraíso. O convite porém vinha com uma condição sine qua non.
O impetrante havia de cessar relações, de resto não especialmente calorosas, com um companheiro de casa, tido por oposicrático, reviralhista e comunista (GVB dão-se só as iniciais do candidato a preso). Heinzelmann sénior (um conservadorão na expressão bem humorada de Joaquim Namorado que foi quem me contou esta historieta pela primeira vez) espantou-se com o pedido. GBV não passava de um colega ligeiramente mais novo, vivendo na mesma casa, com quem de vez em quando jogava uma bilharada, comia uma sardinhada na época dela, ou escorripichava um copinho de amêndoa amarga depois de alguma serenata dificultosa. A vulgata coimbrã: companheiros de casa, vagos amigos, nada mais do que isso. Cortar relações com um fulano assim parecia por um lado extraordinário por outro ridículo. Heinzelmann sénior desejoso de preencher o lugar de assistente do “grande professor” mas também de saber a razão de tanta sanha, pediu explicações. Que lhe foram dadas. O GVB é comunista!
Heinzelmann sénior ficou varado. À uma porque nunca percebera essa evidência. Depois porque era a primeira vez que se sabia colega de uma tal aventesma vermelhuça e comedora de criancinhas cruas. Finalmente porque, para ele desportista e cantor, coimbrinha dos quatro costados (Viva a Académica, efe-erre-á etc..) aquilo parecia-lhe contrário aos costumes académicos e à ruidosa e alegre solidariedade da Academia.
Foi para casa matutar. A prebenda assistencial daria para aguentar os primeiros tempos de casado, algum filho, estabelecer nome, criar freguesia, fazer a especialidade. Cortar relações com GVB, as poucas relações episódicas e meramente circunstanciais, poderia não ser coisa grave. Terá perdido o jantar (e logo ele pessoa de forte apetite!) e a noite, varando-a a pensar na vida, no mundo e no futuro.
Conhecendo, como conheci, Heinzelmann sénior e a sua pouca inclinação para a metafísica, avalio bem o que terá sido essa noite de Walpurgis.
De todo o modo, a verdade é que pela manhã, barba feita e vestido com o melhor fatinho, Heinzelmann sénior apresentou-se ao ilustre, grande e magnânimo professor, que o recebeu com a bonomia habitual.
Foi curta a entrevista. Heinzelmann comunicou pesaroso que não podia aceitar o convite dada a condição infamante com que vinha envolvido. O Grande Mestre bem lhe terá dito (Joaquim Namorado, sicut) “mas ó homem de deus V. nem sequer é grande amigo dele!”.
É verdade, respondeu Heizelmann sénior, mas sou meu amigo e daquilo que diariamente vejo ao espelho e isso me basta para não me atrever a ver-me de outra maneira”.
E assim se cumpriram os fados: Heinzelmann desterrou-se para uma pequena cidade costeira e, a pulso, começou a sua vida de João Semana. GBV curiosamente acabou por ir para a mesma cidade e com mais um par de médicos lá se foram encontrando aqui e ali até que a morte os juntou a todos sob a areia volátil que recobre a memória do mar e dos filhos.
Que trazem esta pequeníssima historieta de Heinzelmann como brasão familiar agora passada a croniqueta.
Vai esta em memória de RS, FT, GVB e MHCR médicos e amigos. E para os filhos deles. E para os filhos dos filhos...


Nota: GBV só soube destes acontecidos vinte e tal anos depois. Entretanto, tinha, como se deve, sido preso um par de vezes. Quis pôr à filha o nome de Natália mas não lho permitiram por ser muito russo. A rapariga acabou por ficar Olga!

4 comentários:

josé disse...

Ou seja e em resumo:

No tempo da música bailadeira do Cotugno (bailare..ô,ô,ô,ô!)o regime era eficiente: sabia que o incógnito GVB era comunista- e não se enganara.

O problema, aqui, é de perspectiva histórica: um comunista, nos anos sessenta, era perseguido politica e criminalmente. Ponto.
Quem o era, sabia que era assim. Ponto e parágrafo.
Quem o era, sabendo as regras do jogo, apostando na clandestinidade para trocar trunfos,corria o risco da vermelhinha: perder o coiro e o cabelo.

Aqueles que como o dito Heinzelman, arrostavam com o risco do opróbrio só por causa de serem amigos de comunistas na clandestinidade, terão muito que dizer a propósito das suas opções.
Não costumo embarcar muito em histórias mitológicas de proveito e exemplo, mas acredito quando me contam uma história com consequências práticas que não tem explicação coerente a não ser a pretendida.
Parece ser o caso.
Mas ainda se pode dizer alguma coisa mais: os GBV portugueses ( conheço um ou outro), se estivessem na terra cujo modelo político ansiavam por copiar e reproduzir por cá ( e só por isso eram perseguidos pelo regime, é com que se diga), teriam de se defrontar com os mesmíssimos problemas e dilemas morais que por cá viram e viveram. Só que de sinal contrário...

Será caso para pergunar, se um qualquer GBV, no caso disso suceder, teria feito o mesmo que o dito Heinzelman.
Sobre essa questão é que me interessa discutir: a probidade moral dos princípios éticos aplicados.

josé disse...

Era antes o Modugno, o tal do Bailare, mi pinto di blu...

Bonita cançoneta pop, por sinal.

M.C.R. disse...

O caso, caro José além de absolutamente verdadeiro passou-se entre 39 e 40 ou 41.
O H era conservador, católico, bom filho e respeitador das leis. Exigia-se ainda que fosse inimigo de um colega que pouco conhecia e com quem se dava de raspão. Sem isso adeus lugarzinho de asistente do Grande Professor...
E isso é o que tornava igual o país mirifico de CVB e o país real de H.
O Modugno veio mais tarde. Veio quando GVB soube da história...

ferreira disse...

fNa verdade a traição e a delação são os actos mais vis e rasteiros que existem.
Não vivi esse tempo, mas a integridade do Heinzelmann Sénior, só revela os Grandes Portugueses que não aparecem nos concursos televisivos;Para além de fazer o que fez ( o certo ), mesmo que ninguém estivesse a ver ( saber da hombridade do acto ); Isto sim, chegar-se ao fim da Vida e ser lembrados por ectos desta envergadura!
Longa vida e descendencia aos Heinzelmann!