06 fevereiro 2007

Diário Político 41

O pior debate dos últimos anos

Começo a estar farto de ler os jornais. E isto torna-se mais grave porque não oiço rádio há anos e vejo a televisão nacional em dose mais que homeopática. Digamos que já não me lembro de olhar para a SIC e para a TVI, que só muito longinquamente é que me recordo que há o canal 1 e que não passarão de duas as meias horas que dedico semanalmente à 2.
Já sei que isto é uma falta de patriotismo estrondosa, que eu devia ser azorragado três vezes ao dia enquanto recitava padres nossos e salvé rainhas na proporção de 3 para 1. Nasci assim: anti-patriota, feio, porco e mau. Porco não, que tomo banho todos os dias, lavo a dentuça depois de cada refeição e pratico as restantes abluções obrigatórias ou facultativas sempre que necessário. Mas mau e feio não tenho dúvidas. À uma porque no meu tempo os homens queriam-se feios e com pelos no peito. A minha pilosidade é escassa mas enfim, aceita-se pelo que tive de redobrar em fealdade para poder estar bem na pele do macho lusitano, edição da 2ª guerra mundial, mais exactamente último ano do avanço alemão. Depois porque tenho este vício malsão de não tomar por certo tudo o que me vendem sobretudo se embrulhado em papel de lustro verde e vermelho. Nada tenho contra as cores da bandeira republicana mas, sem cair em excessos legitimistas, não a acho melhor do que as anteriores fossem elas quais fossem.
Portanto, e voltando à vaca fria, pouco tenho visto, lido e respigado, sobre o instante problema do aborto. Francamente aquilo para mim nem é discussão que mereça mais de dois bocejos. A questão com que a população se irá defrontar brevemente é algo que desde há muito está nos costumes europeus. E mais que está nos costumes das classes dominantes, nacionais, indígenas.
Direi mesmo que nesta discussão há dois pontos que qualificaria de vergonhosos se não fossem pura e simplesmente escandalosos.
O primeiro tem a ver com a cobardia dos partidos políticos maioritários que, esquecidos dos lugares que ocupam no Parlamento, transferiram a discussão para a praça pública, sujeitando-a a toda a espécie de truques populistas como não podia deixar de ser. O parlamento deu mais uma vez, graças ao PS e ao PSD, mostras de ser incapaz de discutir qualquer coisa que não seja o preço dos genéricos ou a compra de duas fragatas em segunda mão. Esta discussão incumbia aos pais da pátria (Deus nos livre!) a essa tropa fandanga que elegemos à molhada e de quem as mais das vezes não sabemos sequer o nome. Os ilustres par(a)lamentares baldaram-se à discussão com medo do que as “bases” lhes poderiam dizer. E vai daí, toma lá referendo. O referendo é uma instituição sem qualquer tradição que se veja no nosso sistema político se é que de sistema se pode falar. Serve para lavar as mãos e evitar berbicachos.
Uma vez um mal intencionado amigo, o José Luís Nunes, apanhou-me numa almoçarada por ele paga no “Tavares” e disparou-me: E você não gostava de ser deputado? Ia-me dando uma coisa má: então o safado convida-me para comer bem e caro e no fim está-me a cravar para deputado? Fiz das tripas coração e propuz-me pagar a minha parte da refeição desde que o convite fatal não viesse: Ó Zé Luís, por quem é? Eu? A Deputar? Antes um ataque de carraças!
O Zé, aviou mais umas sardinhas de escabeche (ainda estávamos nos entrantes) e concordou: “Não. V não. Era maldade a mais!
Mas sempre me foi dizendo que aquilo de deputar, era tiro e queda. O Parlamento era manso e não tinha uma especial obrigação patriótica para legislar a sério. Isso era com o governo. Ou com o referendo, poderia ter dito se se tivesse lembrado.
Portanto esta finta parlamentar que endossa para as massas, em nome de uma inominável democracia, certas escolhas é truque de segunda que deve ser denunciado.
A segunda questão é ainda mais canalha: a despenalização anda a ser discutida por uma gentinha que se está nas tintas. São as classes altas, “cultas”(?) e educadas quem discute algo que finalmente ocorre entre a ralé, os pobres, os ignorantes, os que desconhecem que em Badajoz há a clínica dos Arcos e na Avª da Boavista do Porto uma outra que também faz anjinhos aos milhares. O Dr Rebelo de Sousa pode dizer tudo o que lhe vier à cabeça mas se olhar para o lado, para as meninas e madames do seu meio, logo encontrará farta dose de idas discretas a essas clínicas, quando tudo o resto falhou desde a camisinha, à pílula do dia seguinte ou o dispositivo intra-uterino.
Nestas classes ( e sei do que falo porque são as minhas e dos meus) o aborto é apenas um incómodo que se paga com umas dezenas de contos, cá ou lá consoante se quer decoro e privacidade ou apenas mais uma operaçãozita.
Um cavalheiro chamado Karl dizia há cento e tal anos que a Europa era percorrida por um fantasma que entre outras maldades advogava a luta de classes, ou pior: a existência de classes. E isso significava interesses contraditórios. Como os de hoje: os ricos cagam postas de pescada mas são as pobres que vão à abortadeira. Os ricos filosofam e as pobres abortam num vão de escada. As ricas viajam para as clínicas e as pobres respondem em tribunal.
Eu não queria, juro, sequer deter-me cinco minutos nisto. Mas o “arruído” dos que chegam aos jornais, à rádio e à televisão, dos mesmos de sempre, trate-se de aborto, de corrupção ou de medalhas para pagar favores, é tal que me surpreendo a vir a terreiro pedindo em nome dos que nem sequer tem acesso a um blogue, um pouco de silêncio. Pela minha parte já disse tudo o que tinha a dizer. Boa tarde, senhoras e senhores.

1 comentário:

AM disse...

Parabéns
Excelente e sério texto.
Obrigado

AM