Um voto de má vontade mas um voto
Ando nisto há muitos anos para desperdiçar a ida às urnas domingo.
Ando nisto deste que “andar nisto” significava ficar apontado pelo dedo vindicativo das polícias como “desafecto ao regime”.
Ando nisto com bem menor entusiasmo do que há quarenta ou mesmo trinta anos.
Dói-me a cobardia do parlamento, dói-me a cobardia dos partidos, dói-me a cobardia dos cidadãos, mas, mesmo assim, ando nisto.
Horrorizou-me a tacanhez do debate público, as caixas de Pandora que se abriram, a acusação gratuita e malévola que foi lançada (e quase não respondida) pela direita: que a esquerda e os partidários do sim eram pura e simplesmente assassinos.
Dói-me particularmente ver que uma direita acéfala e desmemoriada não perceba que tal acusação se pode virar contra ela: ou não é verdade que com todo o seu arsenal de leis, de polícias de juízes e de prisões, bom ano mau ano, aconteceram quarenta mil abortos clandestinos neste país?
Dói-me ver uma esquerda quase envergonhada fugir ao debate como o diabo na cruz, incapaz de responder à saloíce dos cartazes do “arrepender-se toda a vida”, do pagar impostos para as malvadas abortarem etc...
Ando nisto há muito tempo para, nem que seja por preguiça legítima, deixar de ter a maçada de ir meter um voto desencantado na urna.
Ando nisto há muito tempo para agora, por raiva a um partido socialista mais amarelo do que um carro eléctrico, incapaz e frouxo, deixar de ir votar um sim tristonho e murcho.
Ando nisto há muito tempo para, com o meu silêncio, a minha preguiça, o meu desprezo por toda essa deputadoria que gasta fundilhos e saliva em S. Bento (e se leva muito a sério, todos iguais nos seus fatinhos cinzentos de mau corte, nas suas impossíveis gravatas que nunca acertam com as camisas e muito menos com as peúgas, Jesus que gosto tão pindérico, tão bairro económico do antigo regime... que gente! ) achar que isto não é comigo. É! apesar de tudo é comigo, também.
Ando nisto há tanto tempo que me não posso esquecer que são os calados desta discussão, os excluídos deste debate, os únicos interessados de facto mesmo que, como boa parte dos marchantes histéricos pela vida videirinha, não saibam exactamente o que está em jogo. Ou melhor talvez saibam que talvez não seja necessário ir à “desmanchadeira” ou meter um par de agulhas de tricot vagina acima para evitar mais uma boca, mais uma desgraça mais um sinal inominável de violência.
Ando nisto há demasiado tempo para deixar que as coisas se resolvam sem o meu miserável voto. É só um voto, quase um zero à esquerda mas é também um grito, um uivo, uma vaga ideia de que ainda estou vivo.
Não sei se as minhas companheiras de blog mo permitem mas gostaria de lhes dedicar este texto. As mulheres dizia um certo Mao Zedong, de fraca memória, são a metade do céu. E nisso acreditei sempre, desde que ando nisto...
2 comentários:
Com o meu serão dois, ainda que continuem a ser, quase, zeros à esquerda.
Obrigada Marcelo.
Eu também lá estarei com o meu voto no SIM.
Um grande abraço
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