10 fevereiro 2007

Estes dias que passam 47

Correspondência entre dois amigos: os jornais deste fim de semana são abundantes no elogio ao Fernando Assis Pacheco que teria feito setenta anos. E pela pena de Inês Pedrosa, Jorge Silva Melo e Manuel de Freitas vem dizer o que eu sempre soube: que o Assis era um enorme poeta. Isto para mim era verdade desde o primeiro poema que lhe li na Via Latina em coimbra no meu ano de caloiro. Numa corrida pus-me em campo para o conhecer e ele, afável e generoso, lembrou-me que os nossos pais já eram amigos. Acho que também nós o fomos: amigos que só uma estúpida morte interrompeu o dialogo. Em 95 ano da tripla morte do Zé Valente, do Pedro Sá Carneiro Figueiredo e do Assis
Para esquecer as tristezas do presente aqui se dão à estampa mais duas cartas trocadas entre mcr e Assis no ano de 1994, por ocasião da operação do segundo.


À FAMÍLIA PACHECO
(MULHER, FILHAS, FILHO & CÃO
SEM FALAR NO IMPACIENTE DOENTE)



Constou que o vosso exemplar marido, estremoso pai, e afável dono teve que mudar, asinha,asinha, a canalização.

Dele esperava-se (e espera-se...) tudo, mas jamais um aneurisma. Não é doença para um cultor das belas letras e (antigo?...) olhador de mulheres bonitas. Ao que o Fernando metia para dentro esperar-se-ia uma britânica apoplexia (que teve os seus momentos de glória entre os literatos isabelinos..) ou uma aristocrática gota. Agora um sofisma em forma de aneurisma (e ainda por cima rebentado,,,) não passa pela cabeça de de qualquer leitor quanto mais de um amigo já tão antigo!

O único precedente que conheço para a operação sofrida pelo operoso jornalista, conversador impenitente e prolífico cidadão é o de Diogo Lopes Pacheco, matador da linda Inês, a quem Pedro o Cru terá mandado arrancar o coração pelas costas.

Há, porém, diferenças, e de peso! O Pacheco medievo limpou o sarampo (outra doença desaconselhável a quem já passou dos cinquenta...) à barregã do rei enquanto o mimoso Pacheco de que falamos não acerta numa perdiz a dez passos..

Sussuram-me, todavia, que, talvez, tudo isto (o sinapismo em forma de aneurisma neurasténico, as facadas no lombo luso-galego e o que mais vier...) é consequência daquele assado de andaluz à padeiro com que começa o romance do Prada

"Ai o gajo chamusca andaluzes?" -terá perguntado o senhor Deus dos Exércitos a quem se conhece o facataz pelo "cante Jondo"- . -"Entonces que lo jodan bien jodido, cortem-lhe os untos, remexam-lhe bem remexidas as vísceras nobres e demais miudezas que é para o maganão tomar juízo e não se desbocar!".

Como se verifica pelo celeste naco de prosa coloquiado que se reproduz, o criador dos poetas e dos enfermos hospitalizados é raiano, fronteiriço d'entre Melgaço e Ribadavia, terras muito dadas à produção de contrabandistas e "guardiñas"...

Mas voltemos às nossas devoções:
Convém significar -se possível com severidade- ao acamado vate, agora recauchutado, que se lembre da promessa feita, urbi et orbe, de produzir um romance sobre o avô negreiro para já não falar numa antecipadamente festejada colheita de poemas fesceninos que haveria de conhecer a glória da impressão, o rubor de escassas donzelas e o escândalo público, por estes meses mais próximos.

Dizem-me que está sentado e não prostado no leito de dor -boa posição para escrever, ou ditar (caso não queira utilizar o dedinho dactilográfico...), a versalhada licenciosa. Para isso lhe enviei, não faz ainda três meses, farta dose de cantáridas literárias sob o inocente título de "Romans Libertins"...


E agora, que a página se finda e a mão me doi, leiam-me bem cônjuge, filhos e demais clientela do Jazente (boa, esta...) aturem-no como puderem que o homem -se as informações são boas- deve estar com uma dose de mimo capaz de afogar um hipopótamo!

E Saúde (muita)

Vosso amigo Marcelo*

* Fornecedor de vinhos licorosos ao Assis e de aguardente reserva ao pide Fausto



PS
Assis, Velhão

Quem está aneurismático, pelo menos da corneta, sou eu que me esqueci desta página, toda em branco, digo em creme ou lá que raio de cor é esta! Põe-te bom, mano e depressa que o ano se afigura de boa pinta para o tinto e eu tenho em fumeiro um porradão enorme de alheiras (das verdadeiras, oh Assis Chateaubriand como o bife, das veras alheiras d' antanho com sua perdiz, sua galinha, seu coelho, seu porco -claro que sempre levaram porco e o resto...-) para já não falar em salpicões e outros mimos porcinos. O bicho que estas e outras especialidades vai dar era conhecido de uma das minhas enteadas. Foram elas quem sabiamente ajudaram a fazer de um cerdo de 15 arrobas um rosário infindável de acepipes.

Estás na lista das ofertas mais os teus editores -aproveita a ocasião para, se precisares, reforçar a dentição se ela te faltar.

Mais abraços do

Marcelo


Lisboa, 15.3.94

Doutor Subtil,

Conheço mal este papel que a minha filha Ana, a copista do Benito Prada, me confeccionou há anos; e tão-pouco o manuscrito sai a contento por influência dos vapores anestésicos, que deixam traço até no modo de a gente se pôr a mijar, quanto mais a escrever aos amigos. Razões por que peço alguma absolvição. E sigo.
Tem o Doutor Subtil toda a pertinência em falar da vingança divina: desde o princípio que eu mesmo lancei essa hipótese, certo de que o mais modesto destempero feito aos deuses é para pagar dobrado no mínimo. Não me alongo sobre tal item, mas à evidência que fui escoicinhado; resta saber se por Apolo , se por algum comparsa menor.
A marca do coice, vista aos raios X, aconselhou imediata correcção do alveitar. O qual no próprio dia e hora retalhou neste corpinho com toda a sanha, deixando-me um lanho do esterno ao coiso, que é maravilha de ver, e só não ando por aí a mostrar às pessoas porque não quero cair na crónica dos namorados tarados. Quem inventou o Latim Vulgar fottere sabia o que fazia!
Doutor, vossos cuidados são amavios, vossos conselhos ordens, vossas ofertas –em livros e derivados – reparos generosos à minha pouca educação. Tudo vo-lo agradeço, mais a promessa de uma extensão ao fumeiro que não sei como hei-de honrar, pois (ainda os deuses!) devo safar-me algo restringido no capítulo dentário. Deixemos ao futuro.
Aproveito para desejar-vos, a vós e a quem vos aqueceu no último inverno, alegria e força natural. Se olhardes bem, já os passarinhos correm de árvore em árvore fornicando velozes na posição romana: ontem, num breve passeio com minha senhora, foi o que mais vimos em Campo de Ourique. É a Primavera, caro Marcelo! Tenhamos fé.
O abraço certo deste que se identifica
Fernando Assis Pacheco, versejador, copista & fraca figura.

Nota: as referências que se fazem, andaluz chamuscado, Prada etc..., têm como alvo o romance de FAP, "Trabalhos e paixões de Benito Prada". A ler com urgência, leitoras atrevidas!

2 comentários:

josé disse...

Estas correspondências são dignas de leitura pública, mesmo que reservadas a assuntos dos particulares envolvidos.

O modo de escrita de quem se leva suficientemente a sério para saber que não aditanta afivelar constantemente máscaras de seriedade, tem o interesse da revelação de um estilo de escrever em português, mas ainda surpreende pela amostra de densidade humana que aprofunda.
Uma das coisas que mais aprecio em obras de ficção é a capacidade de mostrar a amizade em tonalidade original.
Sendo um sentimento de sempre, é com grande gosto que leio algo que consegue inovar pela apresentação através do uso do verbo.
V. por vezes, consegue lá chegar e isso é característica sua, intransmissível, para outros aprenderem, mas perfeitamente partilhável com quem lê.

M.C.R. disse...

Muito obrigado, leitor e amigo josé. apenas tentei celebrar o Assis e na verdade é que eramos dois verdadeiros amigos.