12 fevereiro 2007

Diário Político 42

Serviço é serviço e cognac é cognac

A máxima que dá título a este postal vem direita dos meios castrenses, que é uma maneira fina de falar da tropa. Eu, que sou um paisano convicto, confesso que sempre achei que a servitude et grandeur militaires não era coisa assim tão despicienda como as “juventudes” partidárias entenderam fazer passar.
De facto, talvez por me considerar herdeiro directo dos princípios da revolução francesa, da ideia da Nação em armas, tempero o meu anti-militarismo com duas fortes colheradas de anti exército profissional. A meu ver, este, especializado, dependendo de voluntários é bem pior que o outro, o que juntava toda a malta durante um par de meses a marcar passo e a aprender outras inutilidades. Aprendia-se também a manejar uma arma, coisa que agora está reservada aos tais “voluntários”. Ora eu sempre pensei que isto de ser voluntário para “carne para canhão” trazia água no bico. Não consigo desfazer-me da ideia que os tais voluntários são gente violenta e por isso perigosa. Um exercito baseado nestes voluntários corre severos riscos de se transformar em casta repressora do civil. Coisa que parece mais fácil se os paisanos, como eu, não souberem sequer dar um tiro de pistola de alarme.
Feita esta introdução para explicar algumas idiossincrasias militares, convém dizer que a antiga tropa, altamente infectada de milicianos e de recrutas à força, averbava no seu especial léxico algumas pérolas dialectais tais como a que dá título ao post. E estoutra, maravilhosa: desenfiar-se. “Desenfiar-se” era ao fim e ao cabo um quiddam baldar-se sigilosamente, pé ante pé, como quem não quer à coisa. Não confundir com “passar à peluda” que apenas queria dizer, ser desmobilizado.
Portanto a tropa à antiga portuguesa, tudo como dantes quartel general em Abrantes: cognac é cognac e serviço é serviço queria dizer que não se devem confundir planos e muito menos misturar o prazer com o trabalho. A frase deve provir do antigo quadro de oficiais porque, o pé rapado que ia para soldado bebia –se bebia – bagaço vulgar do baratinho, vá lá uma ginginha com elas ou uma amêndoa amarga em dia de saída mais festiva. A oficialagem é que se podia dar ao luxo dos brandys Constantino, das “Carvalho, Ribeiro & Ferreira” (fortificante tónico que me foi apresentado por dois amigos em fim de comissão militar nos trópicos.) ou de uma que outra francesice caríssima ou então passada aos direitos. Aliás penso que muita messe militar tinha contrabandistas fornecedores para esses espirituosos mais internacionais.
Continuando: esta chamada da tropa antiga à colação vem apenas para tentar perceber o resultado do referendo sem ter de ler dúzia e meia de páginas dos jornais. Em poucas palavras: O sim ganhou forte e feio. Disto não restam dúvidas de qualquer espécie.
Vir dizer, como arengava um pobre diabo pediatra e parvo que os abstinentes devem ser contabilizados como votos a favor do statu quo antigo ou é burrice supina e incurável ou má fé peçonhenta. E mais perigosa. O anormal pediatra a quem uma tv qualquer concedeu um minuto para regorgitar a asneirola nem sequer se lembrou do voto referendário da Constituição de 33, onde de facto constava que que quem estivesse de acordo poderia não pôr os pés na secção de voto. Mas isso eram manhas do dr Salazar que, coitado, bem se deve arrepelar, ao ver os cretinos que lhe sucederam. Andou um homem quarenta anos a moldar um país, a tentar criar uma elite, a destroçar os oposicráticos com “uns safanões dados a tempo” e aparece agora uma azémola ajaezada de pediatria a burrificar o conceito!
Razão tinha o Joaquim Namorado, quando propunha um Código Civil com um artigo e um parágrafo únicos:
Artº Iº e único: É proibido ser burro.
§ único: fica revogada toda a legislação em contrário.

Infelizmente esta legislação breve não foi acolhida e o resultado está à vista: entram-nos em casa as parvoíces que qualquer cavalheiro sofrendo de dores de mau perdedor entende dizer.
Quem votou, votou e merece todo o respeito pelo acto praticado. Quem não votou apenas –e na melhor das hipóteses – veio dizer: estou de acordo com o que decidirem porque, ao fim e ao cabo me estou nas tintas para o assunto discutido. Ponto e parágrafo!
A segunda consequência do voto parece ser esta: o PS terá de apresentar em tempo útil um projecto de lei que ponha preto no branco, e sem astúcias parolas, este desiderato afirmado pelos portugueses. Claro que tudo isso poderia e deveria ter sido feito há muito no Parlamento mas como já tive oportunidade de dizer aquilo “deveria ser demasiada areia para a camioneta dos senhores deputados”. Pronto, não se fala mais disso e ao trabalho.
A terceira consequência que há a tirar disto é que de 98 até hoje diminuiu o número dos abstencionistas. Ou, se calhar, chegaram seis novas levas de jovens que, mais expeditos que os antepassados, acharam que era altura de nos pormos mais ou menos a par com a Europa, onde ficam a subsistir três únicos representantes do aborto igual a crime. Do aborto tal e qual está definido, com as competentes semaninhas e as condições já conhecidas. De todo o modo convém salientar que quer o sim quer o não beneficiaram deste aumento de eleitores.
A quarta consequência é esta: a Igreja foi desservida pelos seus apóstolos leigos, claramente mais papistas que o papa e, sobretudo menos prudentes que o Senhor Cardeal Patriarca. Com uma sub-consequência: boa parte dos católicos votaram sim. A secas e sem problemas de consciência. A menos que os tais noventa e tal por cento de católicos seja um mero voto piedoso sem correspondência com a realidade.
A quinta constatação é esta: o mapa do não restringe-se ao Minho e a Trás os Montes com umas bicadas no douro litoral e na Beira interior. E, ia-me esquecendo, boa parte do distrito de Aveiro. As grandes cidades votaram esmagadoramente sim e isso fez a diferença. Há um mundo rural cada vez menos visível onde a tradição, a religião, tem algum apoio. E basta!
Uma nota final: foi visível a disparidade de meios publicitários entre o sim e o não, pelo menos no que toca à publicidade pesada, grandes cartazes por todo o lado. O facto das empresas de “comunicação” que trabalharam para o não não terem levado nada pelos seus serviços não chega. Cada um daqueles outdoors custa a bagatela de quinhentos contos antigos e isso foi pago por alguém. A malta do sim ou estava muito convencida da vitória ( e também não era difícil tal convencimento, apesar de tudo isto anda...) ou estava mal de dinheiros porque não esteve à altura neste duelo.
O que permite juntar esta notinha final: o famoso período de reflexão das 24 horas sem propaganda parece perder cada vez mais importância: os cartazes aí estão imóveis mas visíveis a lembrar aos mais distraídos que a propaganda está lá nessas vinte e quatro horas abstinentes e infelizmente por mais um par de semanas como é costume.
Espera-se, com paciência mas também com alguma impaciência que o PS faça o trabalho de casa, se é que já não está feito para que daqui até à aprovação da lei não haja mais um par de pobres mulheres a passar pela vergonha do tribunal e anexos escândalos. Será pedir muito?

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